Art. 28 - Cível

 

Autos n. 1409/09

Mandado de Segurança

Impetrante: Raia S.A.

Impetrado: Secretário Municipal de Saúde de Sertãozinho e Diretor da Vigilância Sanitária

 

Ementa:

1) Art. 28 - Cível.  Mandado de segurança. Negativa de intervenção. Remessa pelo magistrado para reexame. 2) Aplicação imediata da Nova Lei do Mandado de Segurança (Lei n. 12.016/2009). Regra do tempus regit actum: a lei processual provê para o futuro. Os processos pendentes sujeitar-se-ão imediatamente à Lei n. 12.016, de 07 de agosto de 2009. 3) Intervenção do Ministério Público como custos legis. Interpretação em conformidade com os art.127 e 129 da CR/88, e art.82 do CPC. Novo perfil institucional do Ministério Público. O mandado de segurança constitui ação civil de eficácia potenciada, com assento constitucional, dirigida contra atos ilegais e abusivos do Poder Público, o que implica, em regra, interesse na intervenção do Ministério Público. A racionalização em processo de mandado de segurança deverá ser interpretada cum granum salis. 4) Presença de fundamento da intervenção. Relação jurídica subjacente. Definição de produtos a serem comercializados em drogarias. Direito difuso constatado. 5) Dirimida a questão, determinando-se a intervenção do Ministério Público, com designação de outro membro da instituição para prosseguir no feito.

1) Relatório

Trata-se de mandado de segurança impetrado por Raia S.A em face do Secretário Municipal de Saúde e do Diretor da Vigilância Sanitária do Município de Sertãozinho.

A impetrante afirma exercer o comércio do ramo de drogarias há mais de cem anos.  Afirma que, no dia 02 de junho de 2009, recebeu o Ofício Circular 01/09 – VISA, do qual constava uma lista de produtos que não poderiam ser oferecidos à venda. Em virtude deste ato - apontado como coator pela impetrante - ajuizou-se a segurança, com pedido liminar.

A ilustre Juíza de Direito da Primeira Vara da Comarca de Sertãozinho indeferiu a liminar, sustentando não haver relevância nos fundamentos expostos na inicial (fls. 102/103).

Informações prestadas a fls. 108/117.

Instado a se manifestar, o DD. Promotor de Justiça deixou de emitir parecer de mérito por não vislumbrar hipótese de intervenção ministerial (fls. 119/120).

Todavia, a d. magistrada entendeu que o mandado de segurança n. 1409/09 versa sobre direito difuso (consumidor) e, por isso, necessária a intervenção do parquet, a saber: “Ora, a impetrante é empresa do ramo de drogarias e medicamentos, sendo o seu público alvo os consumidores, a população em geral desta comarca. E se a discussão travada aqui nestes autos diz respeito à comercialização de produtos e mercadorias estranhos à atividade primordial da referida empresa, é evidente a necessidade de intervenção do Parket (sic)” (fls. 122).

É o relato do essencial.

2)  Nova Lei do Mandado de Segurança (Lei n.12.016/2009): aplicação imediata da lei processual civil

Nos termos do art. 28 da Nova Lei do Mandado de Segurança (Lei n.12.016/2009), a partir de 07 de agosto de 2009 o ordenamento jurídico brasileiro passa a dispor de uma nova legislação a respeito da matéria, estando revogada a Lei n. 1.533/1951. Seguindo a orientação do art. 21 da Lei n.1.533/1951, o art. 28 do novo diploma fixou que a Lei n.12.016/2009 entrou em vigor na data de sua publicação. É a regra do tempus regit actum: a lei processual provê para o futuro.

Para os processos de mandado de segurança findos, nenhuma alteração produzirá a nova lei, uma vez que intangíveis. Os processos a serem iniciados seguirão naturalmente a Lei n.12.016/2009. Os processos pendentes sujeitar-se-ão imediatamente à Lei n.12.016/2009, considerando-se válidos os atos já realizados sob a égide da Lei n.1.533/1951.

No caso dos autos, impetrou-se o mandado de segurança sob a égide da lei anterior; porém, no seu curso, entrou em vigor a nova lei. No que se refere à intervenção do parquet, a nova legislação dispõe:

Art. 12. Findo o prazo a que se refere o inciso I do caput do art. 7º desta Lei, o juiz ouvirá o representante do Ministério Público, que opinará, dentro do prazo improrrogável de 10 (dez) dias.

Parágrafo único. Com ou sem o parecer do Ministério Público, os autos serão conclusos ao juiz, para a decisão, a qual deverá ser necessariamente proferida em 30 (trinta) dias.

3)  Fundamentação

É pacífico o entendimento de que, em que pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli (Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo: Saraiva, 1991, p. 537) e Emerson Garcia (Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 73).

De fato, com a devida vênia ao entendimento apresentado pelo nobre Promotor de Justiça que lançou anteriormente manifestação nos autos, justifica-se a intervenção do Ministério Público, na condição de fiscal da lei, neste feito.

É da Constituição Federal que decorre a delimitação precisa dos parâmetros da atuação do parquet, na medida do que contém o art.127 e o art.129 da Carta. Estes qualificam a instituição como permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático, e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, bem como dos interesses difusos e coletivos.

Antes mesmo da promulgação da Constituição, em 1988, o Código de Processo Civil, editado em 1973, já prenunciava esse novo papel ministerial, ao definir, no art.82, a cláusula geral para a intervenção do Ministério Público na condição de fiscal da lei. E a redação do referido artigo, com pequena modificação que lhe foi operada posteriormente, identifica como fundamentos para a intervenção: (a) a existência de interesses de incapazes; (b) tratar-se de causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; (c) ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural, e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte.

Em outros termos, não há dúvida no sentido de que, em última análise, em conformidade com a perspectiva constitucional do novo perfil atribuído ao Ministério Público, o que legitima sua intervenção na qualidade de custos legis é o interesse público e social evidenciado seja pela natureza da causa, seja pela qualidade das partes.

Nesse sentido, por exemplo, é o posicionamento de Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da intervenção ou não está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.214/215).

Do mesmo sentir é Antônio Cláudio da Costa Machado, ao tratar da atuação do fiscal da lei, aduzindo que “é longe da incômoda posição de parte parcial que melhor pode o Ministério Público cumprir o desiderato de responsável, perante o Judiciário, pela ‘defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis’, assim como previsto pelo caput do art.127 da Constituição Federal de 1988” (A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1998, p.283).

Pois bem. É necessário realizar a leitura contemporânea de dispositivos da legislação extravagante que prevêem a intervenção do Ministério Público na condição de custos legis. Deve-se levar em conta tanto o perfil constitucional moderno da instituição, como o próprio art.82 do CPC, que, no plano infraconstitucional, especifica e concretiza a regra geral que delimita os interesses que legitimam referida atuação.

Essa diretriz decorre, ademais, do relevante papel que vem sendo atribuído ao parquet tanto pela Constituição Federal, como pelas normas infraconstitucionais, na defesa dos interesses supra-individuais: em uma sociedade de massa, em que os conflitos intersubjetivos se coletivizam, nada mais adequado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei, nos processos de natureza coletiva. Sua atuação tradicional como custos legis nos processos de natureza individual deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

Em outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do Ministério Público, não basta que o CPC ou a legislação especial determine a intervenção: é indispensável verificar se estão presentes, no caso concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação, nos moldes dos art.127 e 129 da CR/88, e do art.82 do CPC.

Esta vem sendo a interpretação conferida, no Ministério Público de São Paulo, à sua atuação como fiscal da lei, em hipóteses tradicionais de intervenção, diante do novo papel que lhe foi atribuído.

A propósito, a própria Administração Superior vem acolhendo e regulamentando tal pensamento, coerente com o cumprimento das relevantes missões modernas da instituição, como se infere dos vários atos normativos que têm contemplado a racionalização da intervenção ministerial no processo civil (v.g. Ato nº286-PGJ/CGMP/CPJ, de 22 de julho de 2002; Ato nº289-PGJ/CGMP/CPJ, de 30 de agosto de 2002; Ato nº 295-PGJ/CGMP/CPJ, de 12 de novembro de 2002; Ato nº 313-PGJ/CGMP, de 24 de junho de 2003; Ato nº 536/2008-PGJ/CGMP, de 07 de maio de 2008).

Tornemos então ao caso em exame.

Bem apontou a i. Magistrada, na deliberação em que determinou a remessa dos autos à Procuradoria-Geral de Justiça (fls.122), “a impetrante é empresa do ramo de drogarias e medicamentos, sendo o seu público alvo os consumidores, a população em geral desta comarca. E se a discussão travada aqui nestes autos diz respeito à comercialização de produtos e mercadorias estranhos à atividade primordial da referida empresa, é evidente a necessidade de intervenção do Parket (sic)” (fls. 122).

A intervenção do Ministério Público no mandado de segurança, prevista no art. 12 da Lei nº 12.016/2009, deve ser corretamente compreendida.

A ação de mandado de segurança, de extração constitucional, tem por finalidade assegurar a proteção de direito líquido e certo do impetrante, contra ato abusivo de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (art. 5º LXIX CR/88).

Haverá sempre, na hipótese da impetração de mandado de segurança, situações em que não se justificará a intervenção do Ministério Público como fiscal da lei. Outras existirão, entretanto, em que ela será indispensável. Trata-se de verificar se, no caso concreto, o interesse jurídico subjacente à impetração revela hipótese que, de todo modo, guarda relação ou não com o novo perfil constitucional do parquet, e desta forma torna indispensável sua presença como custos legis.

Anota a propósito Maurício Augusto Gomes que a presença do Ministério Público no mandado de segurança deve ser “orientada pela defesa incondicional e imparcial do interesse público, diretamente relacionado ao cumprimento de sua destinação institucional, prescrita em norma constitucional, que estabelece ser de sua incumbência a defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art.127 caput)” (“Ministério Público, mandado de segurança e ação popular”, “in” Funções institucionais do Ministério Público, org. Airton Buzzo Alves, Almir Guasquez Rufino, José Antônio Franco da Silva, São Paulo, Saraiva, 2001, p.221).

Análise lapidar é formulada por Hugo Nigro Mazzilli, cuja transcrição mostra-se inteiramente pertinente: “Assim, por exemplo, num mandado de segurança que discuta uma sanção administrativa individual, pode não se vislumbrar, num caso concreto, interesse social relevante a justificar a atuação do Ministério Público, em que pese a dicção de antigas leis que não fazem distinções a respeito. Da mesma forma, não há razão jurídica suficiente para justificar a presença ministerial num processo apenas porque nele se esteja procedendo à cobrança da dívida ativa da Fazenda. Por igual, não se justificará sua presença num mandado de segurança que tenha o mesmo objeto que seria possível numa ação ordinária na qual não devesse atuar o Ministério Público. Agora, ao contrário, num mandado de segurança impetrado por algumas pessoas portadoras de deficiência visando à garantia de acessibilidade a espaços públicos, a ação dirá respeito ao interesse de toda a coletividade, e a intervenção do Ministério Público será indispensável.” (Regime jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 567).

Em síntese, pode-se concluir afirmando que duas situações podem se verificar, com soluções distintas: (a) a questão subjacente à ação mandamental é de cunho estritamente individual, não se justificando a atuação do Ministério Público como custos legis; (b) a situação subjacente envolve interesse relevante, seja por ter cunho social, coletivo, ou mesmo individual indisponível, tornando indispensável a atuação do parquet.

No caso em exame, os fatos deduzidos na impetração referem-se a interesse dos consumidores, na modalidade difusa. Com efeito, trata-se de saber quais produtos poderão ser oferecidos aos consumidores em drogarias. Ora, tal questão, no aspecto objetivo, mostra-se indivisível. O bem tutelado não pertence a esse ou àquele grupo, a essa ou àquela pessoa. Pertence a toda a comunidade. Não se trata da justaposição de litígios menores que, uma vez reunidos, formariam um litígio maior; são indivisíveis por sua própria natureza. Incabível satisfazer o interesse ou direito de um dos membros da comunidade sem, ao mesmo tempo, satisfazer o interesse ou direito de toda a comunidade (MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Ações coletivas na Constituição Federal de 1988”, Revista de Processo, São Paulo, v. 16, n. 61, p. 187-200, jan./mar. 1991, p. 188). São interesses supraindividuais porque se referem aos interesses de uma comunidade de pessoas indeterminadas ou, pelo menos, indetermináveis do ponto de vista prático. Isso torna indispensável a intervenção do Ministério Público no feito.

 

4) Decisão.

        Diante do exposto, e opor analogia do disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa, e acolho as ponderações formuladas pelo d. Magistrado, determinando a intervenção ministerial no mandado de segurança em epígrafe.

Providencie-se designação de outro membro do Ministério Público para prosseguir nos autos e apresentar as manifestações cabíveis, caso ainda atue no referido cargo o membro da instituição que se negou, inicialmente, a oficiar.

Publique-se a ementa no Diário Oficial, na parte reservada ao Ministério Público, para conhecimento.

Providencie-se a devolução dos autos à origem, com as cautelas de estilo.

São Paulo, 31 de agosto de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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