Art. 28 – Cível

Protocolado MP nº 133.104/2011 (autos n. 597.01.2011.004490-6; controle 776/11)

Interessado: Juízo de Direito da 1ª Vara Cível de Sertãozinho

Objeto: Mandado de Segurança – recusa de intervenção ministerial

Ementa:

1)      Mandado de Segurança. Recusa de intervenção. Impetração para fins de fornecimento de medicamento por parte do Poder Público.

2)      O mandado de segurança constitui ação civil de eficácia potenciada, com assento constitucional, dirigida contra atos ilegais e abusivos do Poder Público, o que implica, em regra, interesse na intervenção do Ministério Público.

3)      A racionalização em processo de mandado de segurança, todavia, é possível quando, no caso concreto, o interesse jurídico subjacente à impetração não revelar hipótese que guarde relação com o perfil constitucional do parquet.

4)      Intervenção do Ministério Público que deve ser interpretada à luz de seu perfil constitucional (art. 127 e 129 da CR/88 e art. 82 do CPC). Incidência de regulamentação interna quanto à racionalização da atuação do Ministério Público, como custos legis, no processo civil (art. 3º, VI do Ato nº 313-PGJ/CGMP, de 24 de junho de 2003).

5)      Identificação dos casos de intervenção do MP em função do “interesse público” evidenciado pela “natureza da lide”. Hipótese de atuação que deve decorrer da pretensão deduzida em juízo, que se configura com o pedido, ilustrado pela causa de pedir.

6)      Relação jurídica subjacente. Impetração cujo escopo consiste em compelir o Poder Público a fornecer medicamentos. Direito à vida e à saúde, cuja indisponibilidade e relevância social decorrem da sistemática constitucional. Zelo, pelo MP, do efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Constituição. Hipótese em que a atuação ministerial é imperativa, à luz do art. 127, caput, e art. 129, II, da CR.

7)      Remessa conhecida e provida para determinar a intervenção ministerial no feito.

1)  Relatório

Trata o feito de Mandado de Segurança impetrado contra ato do Secretário Municipal de Saúde de Sertãozinho tendo como escopo o fornecimento de medicamento que, segundo a impetrante, é indispensável à sua saúde e quiçá à sua vida.

Foi determinada a abertura de vista ao órgão do Ministério Público, sendo certo que o DD. Promotor de Justiça oficiante lançou manifestação afirmando, em síntese, inexistir interesse que justifique a intervenção ministerial no feito (fls. 62/63).

Diante de tal manifestação, a DD. Juíza de Direito determinou a remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, aduzindo que há necessidade de intervenção do MP (fls. 65/65-v).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, em pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 73.

A Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da CR/88).

Para exercer tais funções na esfera cível o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Carta; bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 129, II e III, da CR/88).

Assim, embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel tradicional na esfera cível, ou seja, de intervir como custos legis em processos de natureza individual, é inegável que, por opção político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu o incremento de sua atuação, na condição de autor, em defesa de interesses de ordem supraindividual.

Em uma sociedade de massa, em que os conflitos se coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei, nos processos de natureza metaindividual. Sua atuação clássica como fiscal da lei, nos processos de natureza singular, deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

Em outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do Ministério Público, não basta que a interpretação literal do CPC ou a legislação extravagante: é indispensável verificar se estão presentes, no caso concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação, nos moldes dos art. 127 e 129 da CR/88, e do art. 82 do CPC.

Essa é a adequada compreensão, em perspectiva moderna, da afirmação doutrinária de que a atuação do MP como custos legis é ditada pela lei (cf. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, O Ministério Público no processo civil e penal, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p.12), desde que identificado o interesse público qualificado pela natureza da lide ou qualidade das partes (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime jurídico do Ministério Público, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 559).

Assim, fora dos casos em que há previsão específica de intervenção do MP (v.g. causas em que haja interesses de incapazes, as concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; e ainda nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural), é necessário compreender a dimensão dessa atuação fundada na cláusula genérica do interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte (art. 82, III, do CPC).

Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo, ou seja, pela identificação do pedido, iluminado pela causa de pedir.

Em outros termos, é necessário indagar quais as reais dimensões da ação mandamental, a partir da relação jurídica a ela subjacente, e das possibilidades decorrentes das projeções que de algum modo afetem os interesses a cargo da proteção do MP.

É o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da intervenção está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 214/215).

Pois bem.

No caso em exame, o que se tem é a dedução, pela autora, de pretensão nitidamente indisponível e de notória relevância social, na medida em que, segundo afirma a inicial, trata-se de iniciativa voltada ao fornecimento de medicamento indispensável à manutenção de sua saúde e quiçá da sua própria vida.

Definidos os contornos da demanda, deve-se ter presente que é sempre a partir da pretensão deduzida pelo autor que se pode extrair, em cada caso concreto, a existência ou não de fundamento para a intervenção ministerial.

É verdade que o mandado de segurança constitui ação civil de eficácia potenciada, com assento constitucional, dirigida contra atos ilegais e abusivos do Poder Público, o que implica, em regra, interesse na intervenção do Ministério Público.

Todavia, a racionalização em processo de mandado de segurança é possível quando, no caso concreto, o interesse jurídico subjacente à impetração não revelar hipótese que guarde relação com o novo perfil constitucional do parquet (art. 127 e 129 da CR/88 e art. 82 do CPC).

Daí a existência de regulamentação interna quanto à racionalização da atuação do Ministério Público, como custos legis, no processo civil, nos termos de Atos Normativos editados pela Procuradoria-Geral de Justiça.

Esse é o correto entendimento da disposição legal que prevê a obrigatoriedade da atuação do parquet nos casos em que haja “interesse público evidenciado pela natureza da lide” (art. 82, III do CPC).

Ao vincular a atuação do custos legis ao interesse público decorrente da natureza da lide, o legislador determinou que a identificação da hipótese de atuação é indissociável do mérito, ou seja, do objeto litigioso do processo, que é representado, como se sabe, pela pretensão deduzida em juízo, ilustrada pela causa de pedir (A propósito do conceito de mérito no processo civil, confira-se: Cândido Rangel Dinamarco, Fundamentos do processo civil moderno, São Paulo, RT, 1986, p. 182/220; Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, vol.1, 10. ed., São Paulo, RT, 2006, p. 424/425; Sydney Sanches, “Objeto do processo e objeto litigioso do processo”, Ajuris 16 [1979]).

Assim, a impetração por meio da qual se pretende o fornecimento de medicamento tem relevância para a saúde e a vida. Estão presentes, nesta situação tanto a indisponibilidade do interesse como sua relevância social, nos termos do art. 127, caput, da CR.

Além disso, a impetração envolve a discussão sobre efetivo respeito do Poder Público e dos serviços de relevância pública ao direito à saúde e à vida, que são notoriamente assegurados pela CR. E dessa forma, também se justifica a atuação ministerial, na medida em que, de acordo com o art. 129, II, da CR, cabe à instituição “zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”.

Não é por outra razão que o Col. STF tem reconhecido a legitimidade do Ministério Público, inclusive, para ajuizar ações individuais em defesa do interessado em situações análogas.

Confira-se, a título de exemplificação:

“(...)

O Ministério Público é parte legítima para ingressar em juízo com ação civil pública visando a compelir o Estado a fornecer medicamento indispensável à saúde de pessoa individualizada. (RE 407.902, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 26-5-2009, Primeira Turma, DJE de 28-8-2009.)

(...)”

No Col. STJ, igualmente, tem sido adotada essa mesma posição. Confira-se:

“(...)

MP. LEGITIMIDADE. ACP. SAÚDE.  Prosseguindo o julgamento, a Turma, por maioria, decidiu que o parquet tem legitimidade ativa para propor ação civil pública (ACP) referente a direito indisponível, mesmo para tutelar direito à saúde de uma única pessoa física carente de atendimento médico-hospitalar para realização de cirurgia, tal como nos casos de fornecimento de medicamento de uso contínuo. Precedentes citados: REsp 688.052-RS, DJ 17/8/2006; REsp 819.010-SP, DJ 2/5/2006; REsp 699.599-RS, DJ 26/2/2007; EDcl no REsp 662.033-RS, DJ 13/6/2005, e REsp 830.904-RS. REsp 716.712-RS, Rel. originária Min. Eliana Calmon, Rel. para acórdão Min. Herman Benjamin, julgado em 15/9/2009. (Informativo nº 0407, 14 a 18 de setembro de 2009)

(...)”

MP. LEGITIMIDADE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REMÉDIOS. FORNECIMENTO. DOENÇA GRAVE. A Seção, por maioria, entendeu que o Ministério Público tem legitimidade para defesa de direitos individuais indisponíveis em favor de pessoa carente individualmente considerada, na tutela dos seus direitos à vida e à saúde (CF/1988, arts. 127 e 196). Precedentes citados: REsp 672.871-RS, DJ 1º/2/2006; REsp 710.715-RS, DJ 14/2/2007, e REsp 838.978-MG, DJ 14/12/2006. EREsp 819.010-SP, Rel. originária Min. Eliana Calmon, Rel. para acórdão Min. Teori Albino Zavascki, julgados em 13/2/2008. (Informativo nº 0344, 11 a 15 de fevereiro de 2008)

(...)”

Anote-se ainda, a título de observação, que diante da controvérsia atualmente existente relativamente ao tema, esta Procuradoria-Geral de Justiça editou o Ato nº 26/2011-PGJ, de 6 de abril de 2011 (Protocolado nº 144.186/2008), a fim de que seja aprofundado o exame dessa questão, com a criação de “Comissão para estudos sobre a intervenção do Ministério Público em Mandados de Segurança”.

3)  Decisão

Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa para acolhê-la, determinando que ocorra a intervenção ministerial no feito em epígrafe.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

Restituam-se os autos à origem.

São Paulo, 30 de setembro de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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