Art. 28 - Cível

 

Autos n. 35618/10 (Protocolado n. 142.310/2010)

2ª Vara da Fazenda Pública de Guarulhos

Requerente: (...)

Requerido: (...)

 

Ementa:

1) Ação cominatória. Negativa de intervenção do Ministério Público. Remessa dos autos pelo Magistrado com fundamento, por analogia, no art. 28 do CPP.

2) Pretensão exclusivamente individual. Notícia de ocorrência de eventuais ilícitos transindividuais, de múltipla incidência normativa. Identificação dos casos de intervenção do MP em função do “interesse público” evidenciado pela “natureza da lide”. Hipótese de atuação que deve decorrer da pretensão deduzida em juízo, que se configura com o pedido, ilustrado pela causa de pedir.

3) Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do Parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo. Não é a existência de notícia da prática de crimes que justificará, por si só, atuação do Ministério Público como fiscal da lei, v.g., em processo cível no qual não haja previsão de hipótese de intervenção. Do mesmo modo, não é a notícia da ocorrência de lesão a interesse transindividual, exclusivamente, que justificará a atuação do Ministério Público como custos legis em ação em que se deduz pretensão de cunho individual. 

4) Notícia de ofensa à esfera da infância e juventude. Faculdade que o sistema concede ao Magistrado de determinar a extração de cópias dos autos e remetê-las ao Ministério Público, para adoção de providências nas esferas próprias (art. 40 do CPP e art. 7º da Lei n. 7347/85). Ademais, a proteção – sob o aspecto transindividual – já vem sendo realizada pelo membro do Ministério Público com atribuição na esfera da infância e juventude.

5) Remessa conhecida e não provida.

1) Relatório.

Tratam estes autos de ação de preceito cominatório proposta por (...) em face de (...).

Noticia o autor que o imóvel do réu foi alugado pela Prefeitura de Guarulhos para abrigar menores de zero a dezessete anos, oriundos do abrigo de menores da Vila Augusta. Descreve inúmeras situações irregulares, que confirmam o uso nocivo da propriedade e a impossibilidade de se manter uma casa de abrigo de menores no imóvel do réu.

Ao final, requer a concessão de liminar para que o réu se abstenha de executar qualquer atividade ruidosa no local indicado, sob pena de multa; no mérito, requer seja o réu condenado à obrigação de não fazer consistente em se abster de executar qualquer atividade que cause poluição sonora, seja por meio de instrumentos sonoros, seja por meio de algazarra.

No curso do feito, o d. Magistrado determinou que fosse aberta vista dos autos ao Ministério Público, oportunidade em que o DD. Promotor de Justiça, Dr. (...) se manifestou, negando-se a intervir no feito em função de a causa versar entre pessoas maiores e capazes, litigando acerca do uso nocivo da propriedade. Requereu, ainda, que fosse aberta “vista” à Promotora de Justiça da Infância e Juventude, diante do interesse reflexo existente na demanda (fls. 30).

Recebidos os autos, a Ilustre Promotora de Justiça da Infância e Juventude de Guarulhos, Dra. (...), esclareceu que “as providências referentes à atuação específica na área da infância e da juventude não serão tomadas no presente caso e já o foram, aliás, em procedimento específico, com vistas à preservação dos interesses das crianças e adolescentes”(fls. 34). Novamente encaminhados os autos ao DD. Promotor de Justiça com atribuição cível na 2ª Vara da Fazenda Pública de Guarulhos, este reiterou manifestação anterior, declinando da intervenção.

O Excelentíssimo Juiz de Direito, então, determinou a expedição de ofício à Procuradoria Geral de Justiça para que seja verificada a presença de eventual interesse público que justifique a intervenção do Parquet. Diante de tal posicionamento, o i. magistrado determinou a extração de cópias e remessa à Procuradoria Geral de Justiça.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, muito embora a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art.28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.73.

A Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art.127 caput da CR/88).

Para exercer tais funções na esfera cível o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo respeito aos Poderes Públicos e aos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Carta; bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art.129 II e III da CR/88).

Assim, embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel tradicional na esfera cível, ou seja, de intervir como custos legis em processos de natureza individual, é inegável que, por opção político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu o incremento de sua atuação, na condição de autor, em defesa de interesses de ordem supra-individual.

Em uma sociedade de massa, em que os conflitos de natureza intersubjetiva se coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei, nos processos de natureza coletiva. Sua atuação clássica como fiscal da lei, nos processos de natureza singular, deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

Em outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do Ministério Público, não basta a interpretação literal do CPC ou da legislação extravagante: é indispensável verificar se estão presentes, no caso concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação, nos moldes dos arts. 127 e 129 da CR/88 e do art. 82 do CPC.

Essa é a adequada compreensão, em perspectiva moderna, da afirmação doutrinária de que a atuação do MP como custos legis é ditada pela lei (cf. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, O Ministério Público no processo civil e penal, 6ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p. 12), desde que identificado o interesse público qualificado pela natureza da lide ou qualidade das partes (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 559).

Assim, fora dos casos em que há previsão específica de intervenção do MP (v.g. causas em que haja interesses de incapazes, as concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; e ainda nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural), é necessário compreender a dimensão dessa atuação fundada na cláusula genérica do interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte (art. 82, III, do CPC).

Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do Parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo.

É o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da intervenção ou não está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1991, p. 214-215).

É verdade que a inicial noticiava a possível ocorrência de dano aos interesses da infância e juventude. Entretanto, no caso em exame, a pretensão deduzida pelo autor é de natureza cominatória, sendo que é da pretensão deduzida pelo autor que se pode extrair, em cada caso concreto, a existência ou não de fundamento para a intervenção ministerial.

Com a devida vênia, não é a existência de notícia da prática de crimes que justificará, por si só, atuação do parquet como fiscal da lei, v.g., em processo cível no qual não haja previsão de hipótese de intervenção. Do mesmo modo, não é a notícia da ocorrência de lesão a interesse transindividual, exclusivamente, que justificará a atuação do Ministério Público como custos legis em ação em que deduzida pretensão de cunho individual.

Em situações assim, não há dúvida de que o ordenamento processual confere ao Magistrado que preside o feito a possibilidade de determinar a extração de cópias dos autos e remessa ao Ministério Público, tanto para a apuração de eventual ilícito penal (art. 40 do Código de Processo Penal), como para adoção de providências tendentes à proteção dos interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos (art. 7º da Lei n. 7347/85).

Essa é, por assim dizer, a correta compreensão da questão: afora os casos em que o Ministério Público intervém por disposição legal específica, nos demais só se legitimará a atuação como fiscal da lei quando o interesse público, evidenciado pela natureza da lide, decorrer diretamente da pretensão deduzida, ou seja, do pedido, ilustrado pela causa de pedir.

É isso o que pretendeu o legislador ao tornar indispensável a atuação ministerial nos casos em que haja “interesse público evidenciado pela natureza da lide” (art. 82, III, do CPC).

A esse propósito, anota Antônio Cláudio da Costa Machado que “a natureza da lide que evidencia o interesse público é o atributo de indisponibilidade que o ordenamento positivo haja outorgado à relação jurídica em torno da qual tenha surgido o litígio ou lide, e que tenha sido deduzida em juízo” (A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p.347).

Ao vincular a atuação do custos legis ao interesse público decorrente da natureza da lide, o legislador determinou que a identificação da hipótese de atuação é indissociável do mérito, ou seja, do objeto litigioso do processo, que é representado, como se sabe, pela pretensão deduzida em juízo, ilustrada pela causa de pedir (A propósito do conceito de mérito no processo civil, confira-se: Cândido Rangel Dinamarco, Fundamentos do processo civil moderno, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 182-220; Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, vol.1, 10ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.424-425; Sydney Sanches, “Objeto do processo e objeto litigioso do processo”, Ajuris 16 [1979]).

No caso em exame não há razão para a intervenção do Ministério Público. A pretensão deduzida, de cunho individual, é de natureza disponível.

Assim, nada obstante as respeitáveis ponderações formuladas pelo i. Magistrado mostrou-se adequado o posicionamento adotado pelo DD. Promotor de Justiça, Dr. (...). Nada impede, contudo, que seja determinada, caso necessário, a extração de cópias dos autos e sua remessa ao parquet, para adoção de providências na esfera da infância e juventude ou mesmo criminal.

3) Decisão.

Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa, mas deixo de acolher as ponderações formuladas pelo MM. Juiz de Direito, declarando não ser necessária a intervenção do Ministério Público no feito referido nesta decisão.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 25 de novembro de 2010.

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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