Art. 28 – Cível – Recusa de Intervenção

Protocolado MP nº 153.364/2009

Interessado: Juiz de Direito da 1ª Vara Judicial de Votuporanga

Objeto: Inventário – recusa de intervenção ministerial – art. 28 cível

Ementa:

1)     Recusa de intervenção. Inventário. Órgão ministerial que, ao receber o feito com vista, emite manifestação sintética.

2)     Recusa de intervenção. Inexistência. Manifestação ministerial que, afinal, implica efetiva intervenção como custos legis. Obrigatoriedade da intervenção do MP como fiscal da ordem jurídica.

3)     Recusa inexistente. Devolução dos autos para prosseguimento.

1)Relatório.

Trata-se de feito cujas cópias foram encaminhadas a esta Procuradoria-Geral de Justiça pelo DD. Juízo de Direito da 1ª Vara de Votuporanga, sob a afirmação de que teria ocorrido recusa de intervenção pelo DD. Promotor de Justiça oficiante.

Da leitura dos autos, verifica-se que se trata de inventário (autos nº 2009.007263-1 – ordem nº 728/2009), tendo havido remessa ao Ministério Público para apreciação antes da homologação do plano de partilha.

Ao receber os autos com vista, o DD. Promotor de Justiça que atua no caso lançou manifestação, manifestando sua concordância com o plano de partilha.

Diante desse posicionamento, o DD. Juiz de Direito, vislumbrando inconsistência na manifestação ministerial, por não ter havido análise específica quanto à possibilidade de instituição de usufruto vitalício do imóvel existente em benefício do cônjuge supérstite, determinou a expedição de ofício a esta Procuradoria-Geral de Justiça, para designação de outro Promotor de Justiça para oficiar nos autos.

Eis o trecho relevante da deliberação judicial:

“(...)

          O Ministério Público (...) consultado por três vezes (...) opinou favoravelmente a homologação do plano de partilha (...), porém, apesar da insistência do Juízo, manteve-se inerte sobre questão de que não poderia escusar-se. O ponto crucial é o estabelecimento de gravame sobre o imóvel, que passaria a ter usufruto vitalício em benefício do viúvo, que se manifestou em nome próprio e do filho menor. O Ministério Público ou não enxergou o alcance da situação ou optou por não opinar diretamente sobre o fato, não deixando ao Juízo outra alternativa, a não ser aplicar, por analogia, a norma do art. 28 do Código de Processo Penal. Oficie-se a Sua Excelência, Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, para que confirme as manifestações da 1ª Promotoria ou designe outro Promotor que se manifeste de forma simples e direta sobre a instituição do usufruto vitalício em favor do viúvo-meeiro.

(...)”

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito não deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, em pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 73.

Entretanto, não se pode afirmar, a rigor, que tenha ocorrido a recusa de intervenção do órgão ministerial neste feito.

Note-se que ao lançar sua manifestação nos autos, o DD. Promotor de Justiça, ainda que de forma singela, emitiu posicionamento, pugnando pela homologação do plano de partilha apresentado pelo inventariante, embora não tenha analisado, especificamente, a questão da instituição do usufruto em favor do cônjuge supérstite.

Nesse contexto, não é possível afirmar que tenha havido recusa de intervenção ministerial, o que impede seja conhecida a remessa formulada pelo DD. Magistrado que preside o feito.

A Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput da CR/88).

E uma das hipóteses em que a lei determina a intervenção ministerial é, precisamente, aquela em que há debate em torno de interesses de incapazes (art. 82, I do CPC).

Entretanto, tendo havido manifestação do DD. Promotor de Justiça oficiante, ainda que sucinta, não fica caracterizada a recusa de intervenção, não sendo viável a designação de outro membro do Ministério Público para emissão de novo parecer.

Se, por um lado, o princípio hierárquico que anima toda e qualquer organização administrativa – inclusive o Ministério Público – justifica o controle quando da indevida negativa de atuação do membro do parquet, é necessário que esta reste devidamente caracterizada, sob pena de configuração da usurpação de atribuição e consequentemente da própria independência funcional, princípio institucional assentado no art. 127, § 1º da CR/88.

O problema, então, reside nessa peculiaridade: o Procurador-Geral de Justiça só deverá intervir se a questão se apresentar concretamente; não poderá, em contrapartida, ser examinada situação específica sem que o órgão ministerial de execução tenha, quanto a ela, inegavelmente se negado a agir.

É oportuno recordar que o fundamento que tem sido adotado para o controle da negativa de atuação é o art. 28 do Código de Processo Penal, mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores, que, no plano estritamente administrativo, possuem, em relação àqueles, poderes que caracterizam a Administração Pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer em princípio como deve o membro do Ministério Público atuar, ou mesmo indicar qual conteúdo deverá ter sua manifestação, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro que o fará, diante de situações de incerteza concretamente configurada quanto às atribuições dos órgãos ministeriais de execução envolvidos, ou mesmo diante da recusa de atuação.

Ocorre que, como já anotado, a premissa para que seja possível o controle é que tenha ocorrido claramente a recusa de atuação. Se esta não se verificou, a intervenção do Procurador-Geral significaria invasão das atribuições, e em última análise violação da independência funcional do membro do parquet.

3)Decisão.

Por todo o exposto, considerando que não houve recusa de intervenção, não se conhece da remessa.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se. Arquivem-se os autos posteriormente.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 14 de dezembro de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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