Art. 28 - Cível

 

 

Autos n. 624.01.2008.008613-0

Ação de Mandado de Segurança

1ª Vara Cível da Comarca de Tatuí

Impetrante: Sigma Dataserv Informática S/A

Impetrados: Presidente da Comissão Permanente de Licitação da Prefeitura Municipal de Tatuí, Moderna Assessoria Empresarial Ltda., Prefeito Municipal de Tatuí e Município de Tatuí

 

 

 

Ementa:

1) Art. 28 - Cível. Mandado de segurança. Negativa de intervenção. Remessa pelo magistrado para reexame.

2) Art. 10 da Lei 1533/51. Intervenção do Ministério Público como custos legis. Interpretação em conformidade com os art. 127 e 129 da CR/88, e art. 82 do CPC. Novo perfil institucional do Ministério Público.

3) Presença de fundamento da intervenção. Relação jurídica subjacente. Pretensão deduzida para anulação de ato do Poder Público, em procedimento licitatório, que poderá resultar na obtenção de fundamentos para eventual ação de improbidade administrativa pelo Ministério Público.

4) Dirimida a questão, determinando-se a intervenção do Ministério Público, com designação de outro membro da instituição para prosseguir no feito.

 

Tratam estes autos de Mandado de Segurança impetrado por Sigma Dataserv Informática S/A contra atos praticados pela Presidente da Comissão Permanente de Licitação da Prefeitura Municipal de Tatuí, (...), e homologados pelo Prefeito Municipal de Tatuí, (...). No pólo passivo, como litisconsorte necessária, foi incluída a empresa Moderna Assessoria Empresarial Ltda.

Alega a impetrante, em síntese, que:

a) Participou de procedimento licitatório, na modalidade “Tomada de Preços”, tendo como objeto a aquisição de licença de uso de software;

b) “Na fase de habilitação dos licitantes, a Comissão Especial de Licitação optou por inabilitar a impetrante, sob a alegação de que a representante legal da empresa (constituída na forma requerida pelo Edital) não teria poderes para assinar as declarações anexadas aos documentos de habilitação”;

c) Houve interposição de recurso administrativo, para rever a citada decisão, bem como para pleitear a inabilitação da empresa litisconsorte, que deixou de apresentar documentação imprescindível que acabou indeferido;

d) O recurso administrativo foi indeferido.

O pedido principal formulado pela impetrante é no sentido de que seja considerada habilitada a impetrante e inabilitada a empresa litisconsorte.

A decisão de fls. 226/227 concedeu liminar para suspender o procedimento licitatório e determinou a requisição de informações.

As informações do Prefeito Municipal e da Presidente da Comissão de Licitação estão a fls. 237/267.

O Ministério Público, a fls. 293/295, requereu a citação da empresa Moderna, para integrar o pólo passivo da relação processual.

A empresa Moderna Assessoria Empresarial Ltda. apresentou contestação a fls. 305/316.

Em nova intervenção, o órgão de execução do Ministério Público, a fls. 321/332, entendeu que “falece interesse e legitimidade para a atuação do Ministério Público”, pois “na espécie, não há motivo para que o Ministério Público intervenha neste conflito, sendo uma questão que só interessa diretamente à Administração e à impetrante e para cuja solução não é necessário que o Ministério Público contribua com seu parecer”.

Sobreveio, então, o R. Despacho de fls. 368/369, em que se determinou a remessa dos autos, por aplicação analógica do art. 28 do Código de Processo Penal, sob o seguinte argumento: “Há motivo para a intervenção do Ministério Público nestes autos, mormente diante da alegação da impetrante no sentido de que a autoridade impetrada declarou ilegalmente a habilitação da licitante vencedora no processo licitatório 04/2008, embora ela tenha deixado de apresentar documentos imprescindíveis, ou seja, deixou de designar equipe técnica, situação que, se constatada, pode acarretar, inclusive, eventual prática de ato de improbidade administrativa”.

É o relato do essencial.

Inicialmente impõe consignar que a remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, em pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli (Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo: Saraiva, 1991, p. 537) e Emerson Garcia (Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 73).

Quanto ao mérito, com a devida vênia ao entendimento apresentado pelos nobres Promotores de Justiça que lançaram anteriormente manifestação nos autos, justifica-se a intervenção do Ministério Público, na condição de fiscal da lei, neste feito.

Em brevíssima síntese, deduz-se no presente Mandado de Segurança pretensão anulatória de relevante ato do Poder Público, proferido em procedimento licitatório.

De outro lado, é inegável que, apesar da lei determinar a intervenção ministerial, existe quem defenda uma interpretação restritiva dessa atuação.

A propósito, assim ensina Márcio Fernando Elias Rosa: “A despeito da imposição legal da atuação ministerial, tem-se optado pela restrição da atuação apenas quando presente inegável interesse público ou interesses sociais ou individuais indisponíveis. A racionalização da atuação ministerial justifica a não-intervenção em mandado de segurança que versar exclusivamente sobre direito disponível” (Direito administrativo: licitação, contratos administrativos e outros temas, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 175).

De fato, quando a causa versar sobre direito disponível é justificável a não intervenção do Ministério Público.

É da Constituição Federal que decorre a delimitação precisa dos parâmetros da atuação do parquet, na medida do que contém o art. 127 e o art. 129 da Carta. Estes qualificam a instituição como permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbida da defesa da ordem jurídica, do regime democrático, e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, bem como dos interesses difusos e coletivos.

Antes mesmo da promulgação da Constituição, em 1988, o Código de Processo Civil, editado em 1973, já prenunciava esse novo papel ministerial, ao definir, no art. 82, a cláusula geral para a intervenção do Ministério Público na condição de fiscal da lei. E a redação do referido artigo, com pequena modificação que lhe foi operada posteriormente, identifica como fundamentos para a intervenção: (a) a existência de interesses de incapazes; (b) tratar-se de causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; (c) ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural, e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte.

Em outros termos, não há dúvida no sentido de que, em última análise, em conformidade com a perspectiva constitucional do novo perfil atribuído ao Ministério Público, o que legitima sua intervenção na qualidade de custos legis é o interesse público e social evidenciado seja pela natureza da causa, seja pela qualidade das partes.

Nesse sentido, por exemplo, é o posicionamento de Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da intervenção ou não está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo: Saraiva, 1991, p.214/215).

Do mesmo sentir é Antônio Cláudio da Costa Machado, ao tratar da atuação do fiscal da lei, aduzindo que “é longe da incômoda posição de parte parcial que melhor pode o Ministério Público cumprir o desiderato de responsável, perante o Judiciário, pela ‘defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis’, assim como previsto pelo caput do art.127 da Constituição Federal de 1988” (A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1998, p. 283).

Pois bem. É necessário realizar a leitura contemporânea de dispositivos da legislação extravagante que prevêem a intervenção do Ministério Público na condição de custos legis. Deve-se levar em conta tanto o perfil constitucional moderno da instituição, como o próprio art.82 do CPC, que, no plano infraconstitucional, especifica e concretiza a regra geral que delimita os interesses que legitimam referida atuação.

Essa diretriz decorre, ademais, do relevante papel que vem sendo atribuído ao parquet tanto pela Constituição Federal, como pelas normas infraconstitucionais, na defesa dos interesses supra-individuais: em uma sociedade de massa, em que os conflitos intersubjetivos se coletivizam, nada mais adequado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei, nos processos de natureza coletiva. Sua atuação tradicional como custos legis nos processos de natureza individual deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

Em outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do Ministério Público, não basta que o CPC ou a legislação especial determine a intervenção: é indispensável verificar se estão presentes, no caso concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação, nos moldes dos art.127 e 129 da CR/88, e do art. 82 do CPC.

Esta vem sendo a interpretação conferida, no Ministério Público de São Paulo, à sua atuação como fiscal da lei, em hipóteses tradicionais de intervenção, diante do novo papel que lhe foi atribuído.

A propósito, a própria Administração Superior vem acolhendo e regulamentando tal pensamento, coerente com o cumprimento das relevantes missões modernas da instituição, como se infere dos vários atos normativos que têm contemplado a racionalização da intervenção ministerial no processo civil (v.g. Ato nº286-PGJ/CGMP/CPJ, de 22 de julho de 2002; Ato nº289-PGJ/CGMP/CPJ, de 30 de agosto de 2002; Ato nº295-PGJ/CGMP/CPJ, de 12 de novembro de 2002; Ato nº313-PGJ/CGMP, de 24 de junho de 2003; Ato nº 536/2008-PGJ/CGMP, de 07 de maio de 2008).

Por isso, a intervenção do Ministério Público no mandado de segurança, prevista no art. 10 da Lei n. 1533/51, deve ser corretamente compreendida.

A ação de mandado de segurança, de extração constitucional, tem por finalidade assegurar a proteção de direito líquido e certo do impetrante, contra ato abusivo de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (art.5º LXIX CR/88).

Haverá sempre, na hipótese da impetração de mandado de segurança, situações em que não se justificará a intervenção do Ministério Público como fiscal da lei. Outras existirão, entretanto, em que ela será indispensável. Trata-se de verificar se, no caso concreto, o interesse jurídico subjacente à impetração revela hipótese que, de todo modo, guarda relação ou não com o novo perfil constitucional do parquet, e desta forma torna indispensável sua presença como custos legis.

Anota, a propósito, Maurício Augusto Gomes, que a presença do Ministério Público no mandado de segurança deve ser “orientada pela defesa incondicional e imparcial do interesse público, diretamente relacionado ao cumprimento de sua destinação institucional, prescrita em norma constitucional, que estabelece ser de sua incumbência a defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, art. 127 caput)” (Ministério Público, mandado de segurança e ação popular, in “Funções institucionais do Ministério Público”, org. Airton Buzzo Alves, Almir Guasquez Rufino, José Antônio Franco da Silva, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 221).

Análise lapidar é formulada por Hugo Nigro Mazzilli, cuja transcrição mostra-se inteiramente pertinente: “Assim, por exemplo, num mandado de segurança que discuta uma sanção administrativa individual, pode não se vislumbrar, num caso concreto, interesse social relevante a justificar a atuação do Ministério Público, em que pese a dicção de antigas leis que não fazem distinções a respeito. Da mesma forma, não há razão jurídica suficiente para justificar a presença ministerial num processo apenas porque nele se esteja procedendo à cobrança da dívida ativa da Fazenda. Por igual, não se justificará sua presença num mandado de segurança que tenha o mesmo objeto que seria possível numa ação ordinária na qual não devesse atuar o Ministério Público. Agora, ao contrário, num mandado de segurança impetrado por algumas pessoas portadoras de deficiência visando à garantia de acessibilidade a espaços públicos, a ação dirá respeito ao interesse de toda a coletividade, e a intervenção do Ministério Público será indispensável.” (Regime jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 567).

Em síntese, pode-se concluir afirmando que duas situações podem se verificar, com soluções distintas: (a) a questão subjacente à ação mandamental é de cunho estritamente individual, não se justificando a atuação do Ministério Público como custos legis; (b) a situação subjacente envolve interesse relevante, seja por ter cunho social, coletivo, ou mesmo individual indisponível, tornando indispensável a atuação do parquet.

No caso em exame, os fatos deduzidos na impetração (pretensão à anulação de ato do Poder Público em procedimento licitatório) poderão ensejar, como observou a nobre magistrada de primeiro grau de jurisdição, ação civil pública por ato de improbidade administrativa.

Isso é suficiente para justificar a intervenção do Ministério Público no feito.

A hipótese da intervenção quando há possibilidade de anulação de atos do Poder Público é expressamente citada, de forma incensurável, por Maurício Augusto Gomes: “A intervenção como custos legis nessa ação, assentada que é na defesa imparcial do interesse público, deve ser mantida, dada a relevância das questões debatidas, sua natureza de garantia constitucional e a possibilidade de invalidação de atos do Poder Público em procedimento abreviadíssimo mediante simples prova documental (o denominado direito líquido e certo)” (Ministério Público, mandado de segurança e ação popular, in “Funções institucionais do Ministério Público”, org. Airton Buzzo Alves, Almir Guasquez Rufino, José Antônio Franco da Silva, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 221).

Portanto, a análise da situação específica evidencia a presença de interesse público que justifica a intervenção do Ministério Público.

Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa, e acolho as ponderações formuladas pelo MM. Juiz de Direito, determinando caber ao órgão de execução do Ministério Público intervir no feito na condição de fiscal da lei.

Providencie-se designação de outro membro do Ministério Público para prosseguir nos autos e apresentar as manifestações cabíveis.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 25 de março de 2009.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

/md