Art. 28 – Cível – Recusa de Intervenção
Protocolado nº
36353/09
Processo nº
189.01.2008.009876-9
2ª Vara Cível
de Fernandópolis
Pedido de
Interdição
Requerente: (...)
Interditando: (...)
Ementa:
1)Recusa de intervenção. Processo de interdição. Determinação judicial no sentido de que o órgão ministerial interveniente assuma a defesa do interditando. Promotor de Justiça que oficia como fiscal da lei, e se nega a assumir a representação judicial do requerido.
2)Recusa de intervenção. Inexistência. Divergência que diz respeito à qualidade (modo de intervir) da intervenção, e não quanto a esta.
3)Perfil constitucional do Ministério Público. Releitura dos dispositivos aplicáveis à espécie (art. 1770 do CC/02, e art. 1182, § 1º do CPC). Atuação do parquet que deve limitar-se à intervenção como custos legis.
1)Relatório.
Trata-se de feito encaminhado a esta Procuradoria-Geral de Justiça pelo Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da 2ª Vara Cível de Fernandópolis, tendo em vista a recusa de intervenção apresentada pelo DD. Promotor de Justiça oficiante.
Como se infere dos autos, foi proposto pedido de interdição pela requerente em face da interditanda, tendo sido postulada, pelo zeloso Promotor de Justiça oficiante, a nomeação de curador especial à requerida, nos termos do art. 9º, I do CPC.
Subsequentemente, o i. magistrado em primeiro grau indeferiu a nomeação de curador especial, assentando em síntese que: (a) o Ministério Público já oficia no feito como custos legis; (b) não há no caso concreto necessidade da nomeação.
Inconformado, o DD. Promotor de Justiça interpôs agravo de instrumento, sendo proferida decisão liminar, pelo Exmo. Des. Relator, Morato de Andrade, determinando que “a defesa da interditanda deve ser exercida, nos termos dos dispositivos mencionados, pelo representante do Ministério público, não se divisando, a este primeiro exame, incompatibilidade com as atribuições constitucionais deste órgão, entre as quais se incluir a defesa de interesses individuais indisponíveis (art. 127 ‘caput’ da Carta Magna)” (fls. 65).
Ao receber os autos com vista, o DD. Promotor de Justiça lançou nova manifestação, recusando-se atuar como curador especial, assentando, em síntese, que tal função é incompatível com o atual perfil institucional e constitucional do Ministério Público (fls. 67/68).
Diante disso, o MM. Juiz de Direito determinou a remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, por analogia do disposto no art. 28 do CPP, a fim de que o próprio Promotor de Justiça, ou outro membro da Instituição, assuma a atribuição de curador especial no feito em questão.
É o relato do essencial.
Passa-se ao exame do caso.
2)Fundamentação.
A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida.
É
pacífico o entendimento de que, em pese a independência funcional do Ministério
Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo
Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art.28 do Código de Processo
Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual
do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson
Garcia, Ministério Público, 2ª ed.,
Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.73.
A
Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis (art.127 caput
da CR/88).
Para
exercer tais funções na esfera cível o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo
respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos
assegurados pela Carta; bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil
pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais
homogêneos (art.129 II e III da CR/88).
Assim,
embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel
tradicional na esfera cível, ou seja, de intervir como custos legis em processos de natureza individual, é inegável que,
por opção político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu
o incremento de sua atuação na condição de autor, em defesa de interesses de
ordem supra-individual.
Em
uma sociedade de massa, em que os conflitos de natureza intersubjetiva se
coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote
primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei,
nos processos de natureza coletiva. Sua atuação clássica como fiscal da lei,
nos processos de natureza singular, deve ser reservada apenas aos casos em que
reste essencialmente indispensável sua presença.
Esse
novo perfil afeta também as hipóteses em que, anteriormente, se dava a atuação
anômala do Ministério Público, na condição de substituto processual de
determinada parte em processo individual.
Em
outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do
Ministério Público, não basta que a interpretação literal do CPC ou a
legislação extravagante: é indispensável verificar se estão presentes, no caso
concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação, nos moldes dos art.127
e 129 da CR/88, e do art.82 do CPC.
Além
disso, é imprescindível que o modo de
intervenção se desenvolva em conformidade com esse novo perfil
institucional.
Essa
é a adequada compreensão, em perspectiva moderna, da afirmação doutrinária de
que a atuação do MP como custos legis é
ditada pela lei (cf. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, O Ministério Público no processo civil e penal, 6ªed., Rio de
Janeiro, Forense, 2001, p.12), desde que identificado o interesse público
qualificado pela natureza da lide ou qualidade das partes (cf. Hugo Nigro
Mazzilli, Regime jurídico do Ministério
Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.559).
Assim,
fora dos casos em que há previsão específica de intervenção do MP (v.g. causas
em que haja interesses de incapazes, as concernentes ao estado da pessoa,
pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e
disposições de última vontade; e ainda nas ações que envolvam litígios
coletivos pela posse da terra rural), é necessário compreender a dimensão dessa
atuação fundada na cláusula genérica do interesse público evidenciado pela
natureza da lide ou qualidade da parte (art.82 III do CPC).
Para
saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que
justifique a intervenção do parquet, é
imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo.
É
o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da
intervenção ou não está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente
que aflora do caso concreto (Manual do
Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.214/215).
Mas
não é só.
Além
de saber se é o caso ou não de
intervir, é necessário verificar, também, como
deve se dar tal intervenção.
Em
outras palavras, a qualidade da
intervenção Ministerial é questão cuja solução é imprescindível quando a dúvida
concreta se apresenta.
Tornemos
então ao caso concreto.
Não
se pode afirmar, a rigor, que tenha ocorrido a recusa à intervenção ministerial
neste feito.
Ao
contrário, o que se infere dos autos é que a intervenção ministerial vem
ocorrendo, e com o necessário zelo. Tanto que: (a) houve manifestação inicial
do DD. Promotor de Justiça pugnando pela nomeação de curador especial, em
prestígio ao devido processo legal e à defesa dos interesses da requerida (fls.
26); (b) foi interposto agravo de instrumento contra a r. decisão que negou a
nomeação de curador especial em pessoa diversa da requerente (fls. 28/38); (c)
foram apresentados quesitos para o estudo social e para a perícia (fls. 44/60).
Tais
manifestações justificam a conclusão no sentido de que a intervenção
ministerial vem ocorrendo de forma adequada.
Ocorre,
contudo, que há dissenso a respeito do modo
como deve se desenvolver a intervenção do parquet.
Decisão
proferida em sede de agravo de instrumento, em caráter liminar, determinou que
assuma a condição de curador especial o membro do parquet que vem oficiando no feito. Como houve recusa por parte do
DD. Promotor de Justiça a atuar desse
modo, foram os autos remetidos a esta Procuradoria-Geral.
Ocorre,
com a devida vênia quanto aos argumentos apresentados na decisão proferida em
caráter liminar nos autos do agravo de instrumento nº 628.891-4/9-00, pelo
Exmo. Des. Rel. Morato de Andrade, bem como pelo posicionamento adotado pelo r.
Magistrado que oficia perante a 2ª Vara Cível de Fernandópolis, que adequada à
hipótese foi a posição assumida pelo DD. Promotor de Justiça.
O
Ministério Público deve efetivamente
atuar nos casos de interdição.
Sua
atuação, entretanto, deve necessariamente desenvolver-se como fiscal da lei,
não sendo viável que assuma a representação do interditando, na condição de
substituto processual.
Não
se trata, nesse particular, de negar o disposto no art. 127 caput da CR/88, que confere ao
Ministério Público a defesa de interesses “individuais
indisponíveis”, e tampouco de afirmar a revogação do art. 1770 do Código
Civil em vigor, ou mesmo do art. 1182, § 1º do CPC, dispositivos que prevêem
que nos casos em que não propuser o pedido de interdição o Ministério Público “representará o interditando”. Esses
preceitos legais devem apenas ser compreendidos adequadamente.
Em
outras palavras, é imprescindível, nessa matéria, a interpretação sistemática
dos dispositivos do CPC que regulam a intervenção do parquet na qualidade de custos
legis, na medida em que essa atuação deve ser compreendida à luz do papel
moderno do Ministério Público.
A
esse propósito, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, analisando o
preceito contido no art. 1182, § 1º do CPC, anotam que “o juiz dará advogado sempre ao interditando, quando este ou parente seu
(CPC 1182 § 3º) não o tenha constituído. As razões são as que seguem: a) a CF
5º LV garante aos litigantes em processo judicial e administrativo ampla
defesa; b) a nova fisionomia jurídica do MP (CF 127 e 129) impede que seus
integrantes façam a representação judicial da parte ou interessado (CF 129 IX);
c) é indispensável a nomeação de advogado ao réu ou interessado como órgão
essencial à administração da justiça (CF 133); d) é obrigatória a prestação de
assistência jurídica (e não meramente judiciária) aos necessitados (CF 5º LXXIV
e 134); e) é grave a medida que o procedimento visa impor ao interditando,
limitando seus direitos fundamentais.” (CPC
Comentado e legislação extravagante, 9ª ed., São Paulo, RT, 2006, p. 1082,
nota n. 2 ao art. 1182 do CPC).
Idêntico
é o posicionamento de Antônio Carlos Marcato a respeito desse tema, afirmando
que após a edição da Constituição em 1988, não é mais possível ao Ministério
Público assumir a representação judicial da parte ou do interessado, invocando,
a esse propósito, por analogia, a vedação expressa contida no art. 129, IX da
CR/88 (Procedimentos especiais, 12ª
ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 400).
Em
reforço a tais afirmações, é oportuno recordar que o CPC prevê a nomeação de
curador especial (curador ad litem)
nos casos de incapaz sem representante legal, de colisão entre os interesses do
incapaz e os de seu representante legal, bem como nos casos de réu preso e de
revel citado com hora certa ou por edital (art. 9º e incisos).
Além
disso, o parágrafo único do referido art. 9º do CPC estabelece que “nas comarcas onde houver representante
judicial de incapazes ou de ausentes, a este competirá a função de curador
especial”.
Ocorre
que a Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (Lei Complementar Federal nº
80/94), que tratou não só de organizar a Defensoria Pública da União, mas
também de estabelecer normas gerais de organização das Defensorias Públicas dos
Estados (nos termos prescritos pelo art. 134, § 1º da CR/88), outorgou aos
defensores públicos a função de curador especial (ou seja, a substituição
processual) naquelas hipóteses previstas no art. 9º do CPC, às quais se
assemelha, por identidade de razões, a representação judicial dos interesses do
requerido no processo de interdição.
Nesse
sentido, estabelece o art. 4º, inciso VI da Lei Complementar nº 80/94 que é
função institucional do Defensor Público “atuar
como Curador Especial, nos casos previstos em lei”.
Do
mesmo modo, no Estado de São Paulo a Lei Complementar nº 988/2006, Lei Orgânica
Estadual da Defensoria Pública, prevê, entre suas funções institucionais, a de “atuar como Curador Especial nos casos
previstos em lei” (art. 5º, inciso VIII).
Dessa
forma, por todos os motivos acima alinhados, com o devido respeito ao
entendimento do r. Juízo, bem como do i. Desembargador relator do agravo de
instrumento tirado nos autos, deve o Ministério Público intervir no feito como fiscal
da lei, mas não representar os interesses do incapaz.
3)Conclusão.
Por
todo o exposto, e por analogia ao disposto no art.28 do Código de Processo
Penal, conheço da remessa, e deixo de acolher as ponderações
formuladas pelo MM. Juiz de Direito 2ª Vara Cível de Fernandópolis,
determinando caber ao DD. Promotor de Justiça intervir no feito exclusivamente na
condição de fiscal da lei.
Publique-se
a ementa. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos à origem.
Providencie-se
a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de
Tutela Coletiva.
São Paulo, 02 de abril de
2009.
Fernando
Grella Vieira
Procurador-Geral
de Justiça
rbl