Art. 28 - Cível

Protocolado MP nº 0036585/11 (autos n. 001.01.2010.006123-3 / controle nº 1074/10)

Interessada: Juíza de Direito da 3ª Vara de Adamantina

Objeto: Mandado de Segurança – recusa de intervenção ministerial

 

Ementa:

1)     Mandado de Segurança. Recusa de intervenção. Impetração em face do indeferimento, por decisão fundamentada da autoridade, do pedido de transferência de sete pontos. 

2)     Pretensão deduzida em juízo de natureza exclusivamente individual. Conclusão da Magistrada de que a situação noticiada “versa sobre a regularidade da atuação de órgão público (CIRETRAN)”.

3)     Remessa pelo magistrado para reexame.

4)      O mandado de segurança constitui ação civil de eficácia potenciada, com assento constitucional, dirigida contra atos ilegais e abusivos do Poder Público, o que implica, em regra, interesse na intervenção do Ministério Público.

5)      A racionalização em processo de mandado de segurança, todavia, é possível quando, no caso concreto, o interesse jurídico subjacente à impetração não revelar hipótese que guarde relação com o novo perfil constitucional do parquet.

6)     Intervenção do Ministério Público que deve ser interpretada à luz de seu moderno perfil constitucional (art. 127 e 129 da CR/88 e art. 82 do CPC). Incidência de regulamentação interna quanto à racionalização da atuação do Ministério Público, como custos legis, no processo civil (art. 3º, VI, do Ato nº 313-PGJ/CGMP, de 24 de junho de 2003).

7)     Identificação dos casos de intervenção do MP em função do “interesse público” evidenciado pela “natureza da lide”. Hipótese de atuação que deve decorrer da pretensão deduzida em juízo, que se configura com o pedido, ilustrado pela causa de pedir.

8)     Impetração que discute direito individual.

9)     Sistema processual que concede ao Magistrado a faculdade de determinar a extração de cópias dos autos e remetê-las ao Ministério Público para adoção de providências na esfera própria, inclusive para a investigação de eventuais infrações penais, como para análise da repercussão transindividual (art. 40 do CPP, e art. 7º da Lei nº 7.347/85).

10) Remessa conhecida e não provida.

 

1)   Relatório

Trata o feito de Mandado de Segurança impetrado por J. P. B. M. apontando como ilegal e abusivo o ato do Diretor da 68ª CIRETRAN de Adamantina, que indeferiu pedido de transferência de pontos de prontuários.

Foi determinada a abertura de vista ao órgão do Ministério Público, sendo certo que a DD Promotora de Justiça oficiante lançou manifestação afirmando, em síntese, inexistir interesse que justifique a intervenção ministerial no feito (fls. 44/49).

Diante de tal manifestação, a DD. Juíza de Direito determinou a remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, aduzindo que “a causa versa sobre a regularidade da atuação de órgão público (CIRETRAN), bem como a efetiva aplicação das normas de trânsito” (fls. 63).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, em pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 73.

A Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da CR/88).

Para exercer tais funções na esfera cível o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Carta; bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 129, II e III, da CR/88).

Assim, embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel tradicional na esfera cível, ou seja, de intervir como custos legis em processos de natureza individual, é inegável que, por opção político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu o incremento de sua atuação, na condição de autor, em defesa de interesses de ordem supraindividual.

Em uma sociedade de massa, em que os conflitos se coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei, nos processos de natureza metaindividual. Sua atuação clássica como fiscal da lei, nos processos de natureza singular, deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

Em outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do Ministério Público, não basta que a interpretação literal do CPC ou a legislação extravagante: é indispensável verificar se estão presentes, no caso concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação, nos moldes dos art. 127 e 129 da CR/88, e do art. 82 do CPC.

Essa é a adequada compreensão, em perspectiva moderna, da afirmação doutrinária de que a atuação do MP como custos legis é ditada pela lei (cf. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, O Ministério Público no processo civil e penal, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p.12), desde que identificado o interesse público qualificado pela natureza da lide ou qualidade das partes (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime jurídico do Ministério Público, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 559).

Assim, fora dos casos em que há previsão específica de intervenção do MP (v.g. causas em que haja interesses de incapazes, as concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; e ainda nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural), é necessário compreender a dimensão dessa atuação fundada na cláusula genérica do interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte (art. 82, III, do CPC).

Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo, ou seja, pela identificação do pedido, iluminado pela causa de pedir.

É o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da intervenção está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 214/215).

Pois bem.

No caso em exame, o que se tem é a dedução, pelo autor, de pretensão nitidamente individual.

Definidos os contornos da demanda, deve-se ter presente que é sempre a partir da pretensão deduzida pelo autor que se pode extrair, em cada caso concreto, a existência ou não de fundamento para a intervenção ministerial.

É verdade que o mandado de segurança constitui ação civil de eficácia potenciada, com assento constitucional, dirigida contra atos ilegais e abusivos do Poder Público, o que implica, em regra, interesse na intervenção do Ministério Público.

Todavia, a racionalização em processo de mandado de segurança é possível quando, no caso concreto, o interesse jurídico subjacente à impetração não revelar hipótese que guarde relação com o novo perfil constitucional do parquet.

Afinal, a intervenção do Ministério Público deve ser interpretada à luz de seu moderno perfil constitucional (art. 127 e 129 da CR/88 e art. 82 do CPC).

Daí a existência de regulamentação interna quanto à racionalização da atuação do Ministério Público, como custos legis, no processo civil.

De outro lado, não há dúvida de que o ordenamento processual confere ao Magistrado que preside o feito a possibilidade de determinar a extração de cópias dos autos e remessa ao Ministério Público, tanto para a apuração de eventual ilícito penal, quando for o caso (art. 40 do Código de Processo Penal), como ainda para fins de adoção de providências tendentes à proteção dos interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos (art. 7º da Lei nº 7.347/85).

Em outros termos: se em ação individual, na qual inexiste causa de intervenção ministerial, o Juiz identifica situação apta a permitir a iniciativa ministerial em sede coletiva (instauração de inquérito civil e eventual propositura de ação coletiva), é possível que de ofício determine a extração de cópias do referido feito, encaminhando-as ao órgão de execução do Ministério Público, provocando, assim, a iniciativa deste último. Não haverá, entretanto, fundamento legítimo para a intervenção do custos legis na ação individual.

Esse é o correto entendimento da disposição legal que prevê a obrigatoriedade da atuação do parquet nos casos em que haja “interesse público evidenciado pela natureza da lide” (art. 82, III, do CPC).

A esse propósito, anota Antônio Cláudio da Costa Machado que “a natureza da lide que evidencia o interesse público é o atributo de indisponibilidade que o ordenamento positivo haja outorgado à relação jurídica em torno da qual tenha surgido o litígio ou lide, e que tenha sido deduzida em juízo” (A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1998, p. 347).

Ao vincular a atuação do custos legis ao interesse público decorrente da natureza da lide, o legislador determinou que a identificação da hipótese de atuação é indissociável do mérito, ou seja, do objeto litigioso do processo, que é representado, como se sabe, pela pretensão deduzida em juízo, ilustrada pela causa de pedir (A propósito do conceito de mérito no processo civil, confira-se: Cândido Rangel Dinamarco, Fundamentos do processo civil moderno, São Paulo, RT, 1986, p. 182/220; Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, vol.1, 10. ed., São Paulo, RT, 2006, p. 424/425; Sydney Sanches, “Objeto do processo e objeto litigioso do processo”, Ajuris 16 [1979]).

No caso em exame não há razão para a intervenção do Ministério Público.

A pretensão deduzida, de cunho individual, é de natureza absolutamente disponível.

Assim, nada obstante as respeitáveis ponderações formuladas pela DD. Juíza de Direito da 3ª Vara da Comarca de Adamantina, foi adequado o posicionamento adotado pela DD. Promotora de Justiça da Comarca. Nada impede, contudo, seja determinada, caso necessário, a extração de cópias dos autos e sua remessa ao parquet, para adoção de providências na esfera cível ou mesmo criminal.

Anote-se ainda, a título de observação, que diante da controvérsia atualmente existente relativamente ao tema, esta Procuradoria-Geral de Justiça editou o Ato nº 26/2011-PGJ, de 6 de abril de 2011 (Protocolado nº 144.186/2008), a fim de que seja aprofundado o exame dessa questão, com a criação de “Comissão para estudos sobre a intervenção do Ministério Público em Mandados de Segurança”.

3)   Decisão

Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa, mas deixo de acolher as ponderações formuladas pela Magistrada, declarando não ser necessária a intervenção do Ministério Público no feito referido nesta decisão.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 14 de abril de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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