Art. 28 – Cível – Recusa de Intervenção

Protocolado MP nº 0039389/2011 (autos n. 587.01.2010.004018-5/000000-000)

Interessado: Juiz de Direito da Corregedoria Permanente da Comarca de São Sebastião

Objeto: Procedimento de dúvida inversa – recusa de intervenção ministerial.

Ementa:

1. Recusa de intervenção. Procedimento de dúvida inversa intentado pela COMPANHIA DE SANEAMENTO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO (SABESP), diante da Nota de Devolução expedida pelo Oficial do Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de São Sebastião. Órgão ministerial que, ao receber o feito com vista, recusa-se a intervir.

2. A racionalização somente será possível quando, no caso concreto, o interesse jurídico subjacente não revelar hipótese que guarde relação com o novo perfil constitucional do parquet. Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo, pela identificação do pedido, iluminado pela causa de pedir.

3. Presença de fundamento da intervenção. Relação jurídica subjacente: dúvida acerca do registro de área adquirida pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP- para a construção de Estação Elevatória de Esgotos no bairro de Maresias, município de São Sebastião. Controvérsia sobre a possibilidade ou não de registro de imóveis em desapropriação que recaiu sobre direitos possessórios. Presença de interesse público.

4. Dirimida a questão, determinando-se a intervenção do Ministério Público, com designação de outro membro da instituição para prosseguir no feito.

 

1)   Relatório.

Trata o feito de procedimento de dúvida inversa intentado pela COMPANHIA DE SANEAMENTO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO –SABESP-, diante da Nota de Devolução expedida pela Oficiala do Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de São Sebastião.

Foi determinada a abertura de vista ao órgão do Ministério Público (fls. 72), sendo certo que o DD. Promotor de Justiça de São Sebastião lançou manifestação afirmando, em síntese, inexistir interesse que justifique a intervenção ministerial no feito (fls. 73/75).

Diante de tal manifestação, a DD. Juíza de Direito determinou a remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, aduzindo que no caso em discussão a intervenção do Ministério Público decorre de comando legal, expresso no art. 200 da Lei de Registros Públicos; ademais, afirmou que a matéria de fundo versada nos autos consiste no registro imobiliário de área adquirida pela COMPANHIA DE SANEAMENTO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO – SABESP -, para a construção de estação elevatória de esgoto.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, em que pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 73.

A Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput da CR/88).

Para exercer tais funções na esfera cível o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Carta; bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 129, II e III da CR/88).

Assim, embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel tradicional na esfera cível, ou seja, de intervir como custos legis em processos de natureza individual, é inegável que, por opção político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu o incremento de sua atuação, na condição de autor, em defesa de interesses de ordem supra-individual.

Em uma sociedade de massa, em que os conflitos se coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei, nos processos de natureza metaindividual. Sua atuação clássica como fiscal da lei, nos processos de natureza singular, deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

Em outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do Ministério Público, não basta a interpretação literal do CPC ou a legislação extravagante: é indispensável verificar se estão presentes, no caso concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação nos moldes dos art. 127 e 129 da CR/88, e do art. 82 do CPC.

Essa é a adequada compreensão, em perspectiva moderna, da afirmação doutrinária de que a atuação do MP como custos legis é ditada pela lei (cf. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, O Ministério Público no processo civil e penal, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p.12), desde que identificado o interesse público qualificado pela natureza da lide ou qualidade das partes (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime jurídico do Ministério Público, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.559).

Assim, fora dos casos em que há previsão específica de intervenção do MP (v.g. causas em que haja interesses de incapazes, as concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; e ainda nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural), é necessário compreender a dimensão dessa atuação fundada na cláusula genérica do interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte (art. 82, III do CPC).

Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo, ou seja, pela identificação do pedido, iluminado pela causa de pedir.

É o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da intervenção está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 214/215).

Pois bem.

No caso em exame, o que se tem é procedimento de dúvida inversa proposto pela COMPANHIA DE SANEAMENTO BÁSICO DO ESTADO DE SÃO PAULO  SABESP -, diante da Nota de Devolução expedida pelo Oficial do Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de São Sebastião (fls. 10).

Com efeito, consta que na ação de desapropriação movida pela SABESP foi deferida carta de adjudicação de determinada área. Contudo, o Cartório de Registro de Imóveis de São Sebastião devolveu a carta de adjudicação porque a desapropriação recaiu sobre posse exercida por pessoa diversa do proprietário, inviabilizando o registro, à medida que os direitos possessórios são insuscetíveis de registro.

Definidos os contornos da demanda, deve-se ter presente que é sempre a partir da pretensão deduzida pelo autor que se pode extrair, em cada caso concreto, a existência ou não de fundamento para a intervenção ministerial. Esse é o correto entendimento da disposição legal que prevê a obrigatoriedade da atuação do parquet nos casos em que haja “interesse público evidenciado pela natureza da lide” (art. 82, III do CPC).

A esse propósito, anota Antônio Cláudio da Costa Machado que “a natureza da lide que evidencia o interesse público é o atributo de indisponibilidade que o ordenamento positivo haja outorgado à relação jurídica em torno da qual tenha surgido o litígio ou lide, e que tenha sido deduzida em juízo” (A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1998, p. 347).

Ao vincular a atuação do custos legis ao interesse público decorrente da natureza da lide, o legislador determinou que a identificação da hipótese de atuação é indissociável do mérito, ou seja, do objeto litigioso do processo, que é representado, como se sabe, pela pretensão deduzida em juízo, ilustrada pela causa de pedir (A propósito do conceito de mérito no processo civil, confira-se: Cândido Rangel Dinamarco, Fundamentos do processo civil moderno, São Paulo, RT, 1986, p. 182/220; Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, vol.1, 10. ed., São Paulo, RT, 2006, p. 424/425; Sydney Sanches, “Objeto do processo e objeto litigioso do processo”, Ajuris 16 [1979]).

No caso em exame, como bem notou o Magistrado oficiante, “a controvérsia posta sob exame tem por pano de fundo o registro de um terreno adquirido pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo – SABESP para a construção de uma estação elevatória de esgoto, e na formalização do domínio, ou não, do dito imóvel, o qual foi adquirido com recursos públicos e que será destinado a um serviço essencial” (fls. 78,v).

Registre-se que a desapropriação efetivada pela SABESP objetivava a construção de Estação Elevatória de Esgotos no bairro de Maresias, município de São Sebastião. A dúvida está na possibilidade ou não de registro de imóveis em desapropriação que recaiu sobre direitos possessórios.

Assim, nada obstante as respeitáveis ponderações formuladas pelo  DD. Promotor de Justiça de São Sebastião, mostra-se apropriado o posicionamento adotado pela DD. Juiz de Direito Corregedor de São Sebastião. Com efeito, o interesse jurídico subjacente revela hipótese que guarda relação com o novo perfil constitucional do Ministério Público, a exigir sua intervenção no feito.

3)   Decisão.

Diante do exposto, e por analogia do disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa, e acolho as ponderações formuladas pelo d. Magistrado, determinando a intervenção ministerial no procedimento de dúvida inversa em epígrafe.

Providencie-se designação de outro membro do Ministério Público para prosseguir nos autos e apresentar as manifestações cabíveis, caso ainda atue no referido cargo o membro da instituição que se negou, inicialmente, a oficiar.

Publique-se a ementa no Diário Oficial, na parte reservada ao Ministério Público, para conhecimento. Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

Providencie-se a devolução dos autos à origem, com as cautelas de estilo.

São Paulo, 04 de abril de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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