Art. 28 – Cível

Protocolado n. 56085/10

Autos nº 173/09

Vara da Infância e Juventude da Comarca de Fernandópolis

Apuração de Infração Administrativa

 

 

 

Ementa:

1) Apuração de infração administrativa - arts. 148, VI e 194 a 197 da Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Notícia de fato que demonstra eventual necessidade de aplicação de medida de proteção (ECA, art. 98, II).

2) Manifestação ministerial no sentido da improcedência da representação, sem tomar outras providências, sob o argumento de que a representação não narra fato da alçada do Ministério Público.

3) Criança de quatro anos de idade e adolescentes com quinze e dezesseis anos que, reiteradamente, são colocadas em situação de risco por omissão da genitora.

4) Medidas de proteção à criança e ao adolescente que são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos no ECA forem ameaçados ou violados por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável (art. 98, II). Legitimidade do Ministério Público, em tese, para apurar se é o caso ou não de requerer a perda ou a suspensão do poder familiar (art. 155 do ECA).

5) Caso concreto que se distingue de outros pela gravidade, em tese, dos fatos narrados. Situação, portanto, que se equipara a recusa de intervenção.

6) Remessa conhecida e provida.

 

1)   Relatório

Trata-se de feito encaminhado a esta Procuradoria-Geral de Justiça pelo MM. Juiz de Direito da Infância e da Juventude de Fernandópolis, tendo em vista a manifestação ministerial que requereu a improcedência da representação e afirmou que a representação não narra fato da alçada do Ministério Público.

Notícia nos autos de que criança de quatro anos de idade e adolescentes com quinze e dezesseis anos são, reiteradamente, colocadas em situação de risco por omissão da genitora. Notícia de reiteração da conduta.

Diante disso, o MM. Juiz de Direito determinou a remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, por analogia do disposto no art. 181, § 2º, do ECA.

É o relato do essencial.

Passa-se ao exame do caso.

2) Fundamentação

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida. No mérito, merece acolhimento.

É pacífico o entendimento de que, em pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art.28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.73.

Se, por um lado, o princípio hierárquico que anima toda e qualquer organização administrativa – inclusive o Ministério Público – justifica o controle quando da indevida negativa de atuação do membro do parquet, é necessário que esta reste devidamente caracterizada, sob pena de configuração da usurpação de atribuição e, consequentemente, da própria independência funcional, princípio institucional assentado no art. 127, § 1º da CR/88.

É oportuno recordar que o fundamento que tem sido adotado para o controle da negativa de atuação é o art. 28 do Código de Processo Penal, mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores, que, no plano estritamente administrativo, possuem, em relação àqueles, poderes que caracterizam a Administração Pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica”(Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer em princípio como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro que o fará, diante de situações de incerteza concretamente configurada quanto às atribuições dos órgãos ministeriais de execução envolvidos, ou mesmo diante da recusa de atuação.

Possibilidade, ainda, de aplicação analógica do art. 28 do CPP, bem como do art. 181, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Registre-se que os autos narram fatos, em tese, que podem sujeitar a genitora a pedido de perda ou suspensão do poder familiar, ou de outra medida de proteção.

Por isso, com todo o respeito que é devido ao ilustre membro do Ministério Público, não há como dizer que a representação narra fato que não é da alçada do Parquet.

Não se nega que também é o caso de o Conselho Tutelar exercer as suas atribuições. Aliás, se elas não vêm sendo exercidas de acordo com o mandamento legal, tal fato também reforça e justifica a intervenção do Ministério Público, até para eventual pedido de providências em face do Conselho ou de algum membro.

Portanto, houve uma discordância expressa quanto à necessidade da medida por parte do órgão ministerial de execução, à luz dos fatos narrados na representação inicial com a qual não se pode concordar, no presente momento, por se vislumbrar a necessidade de que sejam colhidos outros elementos de convicção que permitam deliberar sobre a necessidade ou não da propositura da ação de destituição do poder familiar.

As manifestações anteriores da Procuradoria-Geral de Justiça foram lançadas diante de outro contexto fático. Caso concreto que se distingue de outros pela gravidade, em tese, dos fatos narrados. Situação, portanto, que se equipara a recusa de intervenção.

Afinal, há notícia de que criança de quatro anos de idade e adolescentes com quinze e dezesseis anos são, reiteradamente, colocadas em situação de risco por omissão da genitora.

De outro lado, não há como esquecer que as medidas de proteção à criança e ao adolescente devem ser aplicadas sempre que os direitos reconhecidos no ECA forem ameaçados ou violados por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável (art. 98, II).

Também é importante ter presente que há legitimidade do Ministério Público, em tese, para apurar se é o caso ou não de requerer a perda ou a suspensão do poder familiar (art. 155 do ECA) ou a aplicação de outra medida de proteção, sem prejuízo de se verificar eventual omissão do Conselho Tutelar.  

 

3. Conclusão

Diante do exposto, e opor analogia do que determina o art. 28 do Código de Processo Penal e o art. 181, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, conheço da remessa, e acolho as ponderações formuladas pelo MM. Juiz de Direito de Fernandópolis, determinando a intervenção ministerial no feito em epígrafe.

Providencie-se designação de outro membro do Ministério Público para prosseguir nas diligências e avaliar se é o caso de promover ou não a ação de destituição do poder familiar ou de requerer a aplicação de outra medida de proteção.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos, com as cautelas de estilo.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 4 de maio de 2010.

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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