Art.28 – Cível

 

Protocolado nº 120.039/08

Autos nº 583.00.07.263862-6

36ª Vara Cível da Capital

Requerente: Associação Nacional dos Participantes de Fundos de Pensão (ANAPAR)

Requerido: ECONOMUS – Instituto de Seguridade Social – entidade fechada de previdência complementar

 

 

 

Ementa:

1)Associação Nacional dos Participantes de Fundos de Pensão (ANAPAR). Ação proposta em face de entidade privada de previdência complementar, que congrega servidores da Nossa Caixa S/A. Pretensão condenatória, a fim de que seja recomposto o capital do Fundo de Assistência Social dos participantes, indevidamente desfalcado. Negativa de intervenção do Ministério Público. Remessa dos autos pelo Magistrado com fundamento, por analogia, no art.28 do CPP.

2)Identificação das hipóteses de intervenção do Ministério Público, na condição de custos legis, que deve decorrer dos contornos da lide deduzida em juízo.

3)Associação que pretende defender interesses dos participantes do Fundo de Assistência Social, vinculado à entidade de previdência complementar. Pretensão de natureza coletiva. Identificação de hipótese de tutela de interesses coletivos (art.81, parágrafo único II do CDC).

4)Planos de previdência e assistência complementar. Relação entre o participante e a entidade que administra o plano. Relação de consumo (art.2º e art.3º §2º do CDC). Súmula nº321 do E. STJ.

5)Remessa conhecida e provida, com designação de outro membro da Promotoria do Consumidor para oficiar no feito.

 

 

 

 

Vistos,

 

 

 

1)Relatório.

 

         Tratam estes autos de ação proposta pela Associação Nacional dos Fundos de Pensão (ANAPAR), em face da ECONOMUS – Instituto de Seguridade Social (entidade fechada de previdência complementar), com pedido de condenação da requerida: (a) à “obrigação de aportar em espécie (moeda corrente), no FEAS (Fundo Economus de Assistência Social) ou plano sucessor, o valor equivalente ao que lhe foi retirado para utilização em depósitos(s) judicial (is) nos autos da Ação Anulatória de Débito Tributário, processo nº2002.61.00.026666-6, da 19ª Vara Cível Federal de São Paulo, que em dezembro de 2006 correspondia ao montante de R$ 89.823.000,00 (oitenta e nove milhões, oitocentos e vinte e três mil reais), tudo de forma atualizada monetariamente e com incidência de juros legais”; e (b) “a aportar no FEAS ou plano sucessor, os valores correspondentes ao custo de oportunidade correspondente à rentabilidade que a parcela do patrimônio do fundo de assistência à saúde teria produzido no período de desfalque ilegal, tomando-se como parâmetro a rentabilidade efetiva obtida pelos ativos administrados pelo réu no respectivo período” (cf. fls.20/21).

 

         Por determinação do juízo, que identificou na espécie ação coletiva (fls.147), foram os autos com vista ao DD. 125º Promotor de Justiça da Capital, que exerce funções na Promotoria de Justiça Cível, que se negou a intervir, postulando a remessa dos autos à Promotoria de Justiça do Consumidor (fls.148).

 

         Remetidos os autos à Promotoria do Consumidor, o DD. 5º Promotor de Justiça do Consumidor declinou de oficiar no feito, aduzindo que não identifica “a necessidade de providências para a tutela de interesses metaindividuais de consumidores” (fls.149/v).

 

         Discordando desse posicionamento, o MM. Juiz de Direito da 36ª Vara Cível determinou a remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, para exame da recusa à intervenção.

 

         Anotou o magistrado que “em que pese as judiciosas razões invocadas pelos órgãos do parquet, a intervenção ministerial, in casu, é imperativa. Nessa esteira, tem por objeto a hipótese sub judice direito de natureza coletiva, ex vi do artigo 81, parágrafo único, inciso II do Código de Defesa do Consumidor. Com efeito, tem por alvo o processo a defesa do patrimônio do FEAS – Fundo Economus de Assistência Social, o que vai ao encontro dos interesses de todo o grupo de segurados do réu, que se constitui em entidade fechada de previdência privada complementar patrocinada pelo Banco Nossa Caixa S/A. Logo, está-se diante de direito indivisível de titularidade de grupo ligado à parte adversa por relação jurídica, a qual se consubstancia no instrumento de adesão ao ente firmado pelo segurado”. Acrescentou ainda que “a solução da ação produzirá efeitos sobre toda a gama de segurados, o que engloba servidores estatutários e empregados celetistas, entre outras categorias de funcionários, em sentido amplo, da instituição financeira patrocinadora” (fls.151).

 

         É o relato do essencial.

 

2)Fundamentação.

 

         A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida.

 

         É pacífico o entendimento de que, em pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art.28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.73.

 

         A Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art.127 caput da CR/88).

 

         Para exercer tais funções na esfera cível o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Carta; bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art.129 II e III da CR/88).

 

         Assim, embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel tradicional na esfera cível, ou seja, de intervir como custos legis em processos de natureza individual, é inegável que, por opção político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu o incremento de sua atuação em defesa de interesses de ordem supra-individual.

 

         Em uma sociedade de massa, em que os conflitos de natureza intersubjetiva se coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei, nos processos de natureza coletiva. Sua atuação clássica como fiscal da lei, nos processos de natureza singular, deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

 

         Em outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do Ministério Público, não basta que a interpretação literal do CPC ou a legislação extravagante: é indispensável verificar se estão presentes, no caso concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação, nos moldes dos art.127 e 129 da CR/88, e do art.82 do CPC.

 

         Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo.

 

         É o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da intervenção ou não está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.214/215).

 

         A esse propósito, anota Antônio Cláudio da Costa Machado que “a natureza da lide que evidencia o interesse público é o atributo de indisponibilidade que o ordenamento positivo haja outorgado à relação jurídica em torno da qual tenha surgido o litígio ou lide, e que tenha sido deduzida em juízo” (A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1998, p.347).

 

         Ao vincular a atuação do custos legis ao interesse público decorrente da natureza da lide, o legislador determinou que a identificação da hipótese de atuação é indissociável do mérito, ou seja, do objeto litigioso do processo, que é representado, como se sabe, pela pretensão deduzida em juízo, ilustrada pela causa de pedir (A propósito do conceito de mérito no processo civil, confira-se: Cândido Rangel Dinamarco, Fundamentos do processo civil moderno, São Paulo, RT, 1986, p.182/220, p.; Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, vol.1, 10ªed., São Paulo, RT, 2006, p.424/425; Sydney Sanches, “Objeto do processo e objeto litigioso do processo”, Ajuris 16 [1979]).

 

         Esse raciocínio é inteiramente aplicável tanto às hipóteses em que a legislação prevê a intervenção do custos legis no processo civil de natureza individual, como ainda no processo coletivo. Impende recordar que, nesse sentido, o §1º do art.5º da Lei nº 7347/85 (aplicável inclusive às ações decorrentes do Código do Consumidor por força do art.90 da Lei nº 8078/90), prevê que “O Ministério Público, se não intervier no processo como parte, atuará obrigatoriamente como fiscal da lei”.

 

         E para verificar, em cada situação específica, se a demanda é coletiva ou não, pouco importa o nome que lhe tenha atribuído o autor, ou que haja ou não invocado a aplicação da legislação de regência do processo coletivo: o que importa, reafirme-se, são os contornos da lide deduzida em juízo.

 

         Examinemos, pois, o caso concreto.

 

         A requerente se apresenta como associação formada para a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos de participantes, ativos e assistidos, de fundos de pensão.

 

         Com amparo nisso, propôs esta demanda, objetivando a condenação da requerida – que é entidade fechada de previdência complementar patrocinada pela instituição financeira Nossa Caixa S/A – a recompor o patrimônio do FEAS (Fundo Economus de Assistência Social), tendo em vista indevido levantamento de valores da respectiva carteira.

 

         Tais valores teriam sido utilizados para caucionar ação anulatória de débito tributário que tramita junto à Justiça Federal, o que, segundo afirma a autora, deveria ter ocorrido com recursos da entidade patrocinadora (Nossa Caixa S/A ou mesmo Fazenda do Estado), e não com recursos pertencentes, em última análise, à coletividade de participantes do referido fundo de assistência social (titulares dos benefícios relativos à assistência na inatividade, ou seja, ex-funcionários do da Nossa Caixa S/A).

 

         Em outras palavras, a requerente, na condição de legitimada extraordinária, sustenta pretensão coletiva (recomposição de patrimônio de fundo de assistência social complementar) em benefício dos participantes do referido fundo.

 

         A natureza coletiva do interesse tutelado decorre de que o proveito em decorrência de eventual êxito da demanda alcançará o grupo formado pelos titulares dos benefícios (direito indivisível: o benefício aproveita a todos, e a lesão a todos toca), ligados à parte contrária por uma relação jurídica base (adesão, por contrato, aos planos de benefícios de previdência e saúde complementar), encaixando-se perfeitamente na moldura normativa prevista no art.81 parágrafo único II do CDC.

 

         Assim, afasta-se a dúvida, com o devido respeito às ponderáveis razões externadas em sentido contrário: tratando-se de demanda em que deduzida pretensão coletiva, cujo beneficiário, em caso de êxito, será grupo titular de interesse coletivo (participantes do plano de assistência complementar administrado pela requerida), deve o Ministério Público intervir como fiscal da lei.

 

         Ademais, está configurada na hipótese relação de consumo.

 

         Como se sabe, de acordo com o art.2º do CDC, consumidor é “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”, sendo certo que o parágrafo único do mesmo dispositivo equipara a tal condição “coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis”, desde que “haja interesse nas relações de consumo”.

 

         Por outro lado, definindo o conceito de serviço, o §2º do art.3º do CDC qualifica como tal “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista” (g.n.).

 

         Tratando do tema, José Geraldo Brito Filomeno anota, a respeito da aplicação do Código do Consumidor aos serviços nele conceituados, que “o mencionado código fala expressamente em atividades de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, ao definir ‘serviços’ de modo geral (§2º do art.3º), aqui se incluindo, também, os planos de previdência privada em geral, além dos seguros propriamente ditos, e de qualquer natureza” (Manual de direitos do consumidor, 9ªed., São Paulo, Atlas, 2007, p.43).

 

         No mesmo sentido, pondera Cláudia Lima Marques que “apresentam características semelhantes os contratos envolvendo planos de previdência privada, aos quais se aplica hoje o CDC. Esses contratos de previdência privada suplementar deveriam merecer maior atenção por parte da doutrina jurídica, pois são responsáveis por grande número de disputas judiciais e muitas vezes, em virtude da defasagem do valor das prestações e pensões pagas, atentam contra a dignidade do consumidor ou beneficiário” (Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 4ªed., São Paulo, RT, 2002, p.422/423).

 

         Oportuno ainda recordar que a jurisprudência do E. STJ é francamente favorável ao reconhecimento de relação de consumo entre o participante do plano de previdência ou assistência complementar e a entidade gestora, tendo cristalizado sua posição com a edição da súmula nº 321, com o seguinte teor:

 

“Súmula nº 321: O Código de Defesa do Consumidor é aplicável à relação jurídica entre a entidade de previdência privada e seus participantes.”

 

            Em síntese: respeitadas as razões declinadas na negativa de intervenção, deve o parquet atuar neste feito na condição de custos legis, cabendo à Promotoria de Justiça do Consumidor o exercício de tal função.

 

3)Decisão.

 

         Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art.28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa, e acolho as ponderações formuladas pelo MM. Juiz de Direito da 36ª Vara Cível do Foro Central da Capital, determinando caber ao Promotor de Justiça do Consumidor intervir no feito na condição de fiscal da lei.

 

Providencie-se designação de outro membro do Ministério Público para prosseguir nos autos e apresentar as manifestações cabíveis.

 

         Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se.

 

         Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 03 de outubro de 2008.

 

 

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça