Art. 28 – Cível

Protocolado nº 72.488/09

Autos nº 2233/07

Vara da Infância e da Juventude e do Idoso de Santos

Pedido de Guarda

Requerentes: (...)

Crianças: A. A. S; C. E. S. T; G. S. T; G. S. T..

Ementa:

1)Pedido de guarda provisória. Remessa dos autos ao Ministério Público. Manifestação ministerial requerendo diligência complementar.

2)Recusa de intervenção. Inexistência. Manifestação ministerial que não examinou a questão da necessidade ou não da propositura de ação de destituição ou perda do poder familiar.

3)Remessa para controle da recusa da intervenção não conhecida.

1)Relatório.

Trata-se de feito encaminhado a esta Procuradoria-Geral de Justiça pelo Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da Infância e da Juventude e do Idoso da Comarca de Santos, tendo em vista a suposta recusa de intervenção apresentada pelo DD. Promotor de Justiça oficiante.

Da leitura dos autos verifica-se que se trata de pedido de guarda provisória, formulado com fundamento nos art. 19 e 33 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90), tendo em vista a notícia de que, em razão de problemas relacionados ao uso de drogas pelos genitores das crianças acima indicadas, encontravam-se estas em situação de risco.

Uma vez concedida a guarda provisória aos requerentes (fls. 16), foi determinada a realização de subseqüentes estudos e relatórios psicológicos e sociais, a fim de aferir-se com maior pormenor a situação de risco das crianças envolvidas no caso (cf. relatórios de fls. 26/28, 42/45, 97/98, 113/116, 117/119, 161/165, 179/183, 184/185).

Após o último laudo social e laudo psicológico serem juntados ao feito (fls. 179/182 e 184/195), o membro do Ministério Público que oficia nos autos lançou manifestação assim vazada: “à frente de eventual ação de destituição do poder familiar, opino pelo acolhimento da sugestão de fls. 183”.

A sugestão referida, contida no laudo social por último realizado, foi assim consignada pela Sra. Assistente Social do Poder Judiciário: “Entretanto, sugerimos, salvo melhor juízo, avaliação neurológica e geriátrica do genitor, com indicação das condições e aptidão deste quanto ao cuidado dos filhos na faixa etária de 3 a 10 anos sem auxílio de terceiros, considerando-se a doença de Parkinson e possibilidade de outras doenças associadas” (fls. 183).

Diante da manifestação ministerial, decidiu o i. Magistrado pela remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, com amparo, por analogia, no art. 28 do CPP e no art. 182, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Cumpre, para maior clareza, transcrever a deliberação judicial:

“O programa Família Acolhedora é um programa instituído por lei municipal, de maneira que o governo paga determinado valor mensal por criança a um casal acolhedor, para fins de guarda temporária, enquanto a situação jurídica da criança é definida, ou seja, se volta para a família biológica ou se é destituída.

O programa, assim, é mero substituto do abrigamento. Os guardiães temporários recebem para cuidar de crianças. Em princípio, não têm nenhuma ligação afetiva mais duradoura com as crianças e nem a intenção de adotá-las ou obter guarda definitiva.

Feitas estas considerações e considerando a drogadição da mãe, o estudo social a fls. 185 (pai de registro doente, sem tratamento, que assume ser pai biológico de uma das crianças apenas) e que sempre se esquiva de suas obrigações, vide relatório a fls. 164 da técnica Maria Luiza Ferraz de Campos, e que as crianças há quatro anos são acompanhadas pelo programa sem solução razoável, não obstante douta manifestação do Ministério Público a fls. 186, encaminho os autos ao Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral de Justiça, solicitando o ajuizamento de destituição do poder familiar em favor dos menores, em analogia com o artigo 28 do CPP e artigo 181 parágrafo primeiro do ECA” (fls. 187).

É o relato do essencial.

Passa-se ao exame do caso.

2)Fundamentação.

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito não deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, em pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art.28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 73.

Entretanto, não se pode afirmar, a rigor, que tenha ocorrido a recusa à intervenção ministerial neste feito.

Ao contrário, o que se infere dos autos é que a intervenção ministerial vem ocorrendo, e com o necessário zelo. Tanto que em sucessivas manifestações, o órgão ministerial recebeu os autos com vista, analisou os laudos de cunho social e psicológico que foram juntados, e apresentou manifestações postulando novas providências.

Na última oportunidade em que o DD. Promotor de Justiça se manifestou nos autos, antes da determinação da respectiva remessa à Procuradoria-Geral de Justiça, postulou nova diligência, acolhendo sugestão formulada no laudo social, a fim de que seja realizada “avaliação neurológica e geriátrica do genitor, com indicação das condições e aptidão deste quanto ao cuidado dos filhos na faixa etária de 3 a 10 anos sem auxílio de terceiros”.

Essa diligência, é possível inferir do teor da manifestação ministerial, teve por escopo trazer mais um elemento de informação aos autos, útil à apreciação de eventual pedido de destituição ou suspensão do poder familiar.

Dessa forma, com a devida vênia com relação à iniciativa do zeloso magistrado que promoveu a remessa dos autos com amparo no art. 28 do CPP, e 181, § 2º, do ECA, não é viável conhecer do pedido de análise de recusa de intervenção.

Não tendo havido discordância expressa, por parte do órgão ministerial de execução, quanto à necessidade e oportunidade da propositura da ação de destituição ou suspensão do poder familiar, não se abre o ensejo para a definição da hipótese pelo Procurador-Geral de Justiça.

Se, por um lado, o princípio hierárquico que anima toda e qualquer organização administrativa – inclusive o Ministério Público – justifica o controle quando da indevida negativa de atuação do membro do parquet, é necessário que esta reste devidamente caracterizada, sob pena de configuração da usurpação de atribuição e consequentemente da própria independência funcional, princípio institucional assentado no art. 127, § 1º da CR/88.

O problema, então, reside nessa peculiaridade: o Procurador-Geral de Justiça só deverá intervir se a questão se apresentar concretamente; não poderá, em contrapartida, ser examinada situação específica sem que o órgão ministerial de execução tenha, quanto a ela, inegavelmente se negado a agir.

É oportuno recordar que o fundamento que tem sido adotado para o controle da negativa de atuação é o art.28 do Código de Processo Penal, mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores, que, no plano estritamente administrativo, possuem, em relação àqueles, poderes que caracterizam a Administração Pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica”(Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer em princípio como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro que o fará, diante de situações de incerteza concretamente configurada quanto às atribuições dos órgãos ministeriais de execução envolvidos, ou mesmo diante da recusa de atuação.

Ocorre que, como já anotado, a premissa para que seja possível o controle é que tenha ocorrido claramente a recusa de atuação. Se esta não se verificou, a intervenção do Procurador-Geral significaria invasão das atribuições, e em última análise violação da independência funcional do membro do parquet.

Assim, é necessário que seja apreciado pelo i. Juiz de Direito o requerimento de diligências formulado pelo DD. Promotor de Justiça, e que, aberta nova oportunidade para apreciação quanto à propositura ou não de ação de destituição ou suspensão do poder familiar, haja manifestação expressa sobre o tema, para aí sim, eventualmente, ocorrer a remessa com fundamento, por analogia, no art. 28 do CPP, e no art. 181, § 2º do ECA.

3)Conclusão.

Por todo o exposto, não se conhece da remessa, restituindo-se o feito à origem, para que o MM. Juiz aprecie o pedido de diligência formulado pelo Ministério Público, e seja reaberta a oportunidade para que o órgão ministerial formule análise a respeito da propositura ou não de ação de destituição ou suspensão do poder familiar.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos à origem.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 25 de junho de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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