Art. 28 – Cível

Protocolado nº 74.359/09

Autos nº 262/08

Vara da Infância e da Juventude e do Idoso de Santos

Pedido de Providências

Requerente: Conselho Tutelar de Santos

Criança: K.R.B.

 

Ementa:

1)Pedido de providências. Remessa dos autos ao Ministério Público. Manifestação ministerial requerendo diligência complementar.

2)Recusa de intervenção. Inexistência. Manifestação ministerial que não examinou a questão da necessidade ou não da propositura de ação de destituição ou perda do poder familiar.

3)Remessa para controle da recusa da intervenção não conhecida.

1)Relatório.

Trata-se de feito encaminhado a esta Procuradoria-Geral de Justiça pelo Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito da Infância e da Juventude e do Idoso da Comarca de Santos, tendo em vista a suposta recusa de intervenção apresentada pelo DD. Promotor de Justiça oficiante.

Da leitura dos autos verifica-se que se trata de pedido de providências, requerido pelo Conselho Tutelar de Santos, em razão da situação em que se encontra o menor K.R.B. Da análise dos autos constata-se que foi determinada a realização de estudos e relatórios psicológicos e sociais, a fim de aferir-se com maior pormenor a situação de risco da criança envolvida no caso (cf. relatórios de fls. 20/24/, 25/26, 29/30, 57/59, 80/82, 150/152, 113/114; cf. pareceres psicossociais de fls. 32/33,69/72, 89/95 e 165/168).

O membro do Ministério Público que oficia nos autos lançou manifestação a fls. 47,60,67,78,102,108,158,184.  Com efeito, afirmou o zeloso Promotor de Justiça: “1) Com base nas avaliações técnicas, entendo necessária a manutenção da criança sob os cuidados da família acolhedora, ao menos por ora. 2)Fls. 147 verso: requeiro nova tentativa de realização de avaliação técnica. Sem prejuízo, requeiro justifiquem os guardiões o não comparecimento”(fls.158)

Diante da manifestação ministerial, decidiu o i. Magistrado pela remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, com amparo, por analogia, no art. 28 do CPP e no art. 182, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

É o relato do essencial.

Passa-se ao exame do caso.

2)Fundamentação.

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito não deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, em pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art.28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 73.

Entretanto, não se pode afirmar, a rigor, que tenha ocorrido a recusa à intervenção ministerial neste feito.

Ao contrário, o que se infere dos autos é que a intervenção ministerial vem ocorrendo, e com o necessário zelo. Tanto que em sucessivas manifestações, o órgão ministerial recebeu os autos com vista, analisou os laudos de cunho social e psicológico que foram juntados, e apresentou manifestações postulando novas providências.

Dessa forma, com a devida vênia com relação à iniciativa do zeloso magistrado que promoveu a remessa dos autos com amparo no art. 28 do CPP, e 181, § 2º, do ECA, não é viável conhecer do pedido de análise de recusa de intervenção.

Não tendo havido discordância expressa, por parte do órgão ministerial de execução, quanto à necessidade e oportunidade da propositura da ação de destituição ou suspensão do poder familiar, não se abre o ensejo para a definição da hipótese pelo Procurador-Geral de Justiça.

Se, por um lado, o princípio hierárquico que anima toda e qualquer organização administrativa – inclusive o Ministério Público – justifica o controle quando da indevida negativa de atuação do membro do parquet, é necessário que esta reste devidamente caracterizada, sob pena de configuração da usurpação de atribuição e consequentemente da própria independência funcional, princípio institucional assentado no art. 127, § 1º da CR/88.

O problema, então, reside nessa peculiaridade: o Procurador-Geral de Justiça só deverá intervir se a questão se apresentar concretamente; não poderá, em contrapartida, ser examinada situação específica sem que o órgão ministerial de execução tenha, quanto a ela, inegavelmente se negado a agir.

É oportuno recordar que o fundamento que tem sido adotado para o controle da negativa de atuação é o art.28 do Código de Processo Penal, mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores, que, no plano estritamente administrativo, possuem, em relação àqueles, poderes que caracterizam a Administração Pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica”(Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer em princípio como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro que o fará, diante de situações de incerteza concretamente configurada quanto às atribuições dos órgãos ministeriais de execução envolvidos, ou mesmo diante da recusa de atuação.

Deve-se observar, ademais, que a moderna concepção do princípio do contraditório submete o juiz, como parte da relação processual (não da relação de direito material objeto do processo), ao caráter dialético que deve caracterizar o procedimento em juízo. Nesse sentido, a regra expressa do art. 16 do Code de Procédure Civile francês: “Le juge doit, en toutes circonstances, faire observer et observer lui-même le principe de la contradiction”.

Com efeito, o contraditório já tem sido abordado como uma decorrência do regime democrático, que abarca todos os participantes do processo. Os partícipes do processo civil atuam em regime de permanente cooperação. Por conta disso, muito embora caiba ao judiciário dar a resposta jurisdicional, não há qualquer hierarquia entre juízes, promotores e advogados. Calha reconhecer que o processo não é um monólogo, mas um diálogo, uma conversação entre as partes, e a prestação jurisdicional é o resultado desse diálogo. Em suma: “Dal costume giudiziario, creato dalla colaborazione dei giudici e degli avvocati, è governato il corso del processo: essi, secondo il ritmo della loro alacrità o della loro pigrizia, possono diventarne gli acceleratori o i rallentatori (CALAMANDREI, Piero. Processo e democrazia. In Opere Giuridiche, p. 686).

Ocorre que, como já anotado, a premissa para que seja possível o controle é que tenha ocorrido claramente a recusa de atuação. Se esta não se verificou, a intervenção do Procurador-Geral significaria invasão das atribuições, e em última análise violação da independência funcional do membro do parquet.

Assim, é necessário que seja apreciado pelo i. Juiz de Direito o requerimento de diligências formulado pelo DD. Promotor de Justiça, e que, aberta nova oportunidade para apreciação quanto à propositura ou não de ação de destituição ou suspensão do poder familiar, haja manifestação expressa sobre o tema, para aí sim, eventualmente, ocorrer a remessa com fundamento, por analogia, no art. 28 do CPP, e no art. 181, § 2º do ECA.

3)Conclusão.

Por todo o exposto, não se conhece da remessa, restituindo-se o feito à origem, para que o MM. Juiz aprecie o pedido de diligência formulado pelo Ministério Público, e seja reaberta a oportunidade para que o órgão ministerial formule análise a respeito da propositura ou não de ação de destituição ou suspensão do poder familiar.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos à origem.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 26 de junho de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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