Art. 28 - Cível

Protocolado MP nº 94.931/2011 (autos n. 654.01.2011.001698-0; controle 909/11)

Interessado: Juiz de Direito da Vara Única de Vargem Grande Paulista

Objeto: Mandado de Segurança – recusa de intervenção ministerial

Ementa:

1)      Mandado de Segurança. Recusa de intervenção. Impetração em face da decisão, em processo licitatório, que inabilitou o concorrente a continuar no certame. 

2)      O mandado de segurança constitui ação civil de eficácia potenciada, com assento constitucional, dirigida contra atos ilegais e abusivos do Poder Público, o que implica, em regra, interesse na intervenção do Ministério Público.

3)      A racionalização em processo de mandado de segurança, todavia, é possível quando, no caso concreto, o interesse jurídico subjacente à impetração não revelar hipótese que guarde relação com o perfil constitucional do parquet.

4)      Intervenção do Ministério Público que deve ser interpretada à luz de seu perfil constitucional (art. 127 e 129 da CR/88 e art. 82 do CPC). Incidência de regulamentação interna quanto à racionalização da atuação do Ministério Público, como custos legis, no processo civil (art. 3º, VI do Ato nº 313-PGJ/CGMP, de 24 de junho de 2003).

5)      Identificação dos casos de intervenção do MP em função do “interesse público” evidenciado pela “natureza da lide”. Hipótese de atuação que deve decorrer da pretensão deduzida em juízo, que se configura com o pedido, ilustrado pela causa de pedir.

6)      Relação jurídica subjacente. Alegação de vício no certame licitatório (inabilitação de concorrente) que pode em última análise acarretar vício na licitação e no contrato por ausência de efetiva disputa. Caso em que a situação subjacente indica possibilidade, ao menos em tese, de risco para interesses metaindividuais relacionados à boa gestão pública.

7)      Remessa conhecida e provida para determinar a intervenção ministerial no feito.

1)  Relatório

Trata o feito de Mandado de Segurança impetrado por licitante contra ato do Senhor Prefeito Municipal de Vargem Grande Paulista que o inabilitou na concorrência pública nº 001/2011, edital nº 002/2011, cujo objeto é a concessão de serviços de transporte coletivo público de passageiro no Município, com valor anual estimado para o contrato de R$ 2.730.199,90 (dois milhões, setecentos e trinta mil, cento e noventa e nove reais e noventa centavos).

Segundo narra a inicial, a inabilitação do impetrante teria ocorrido por interpretação equivocada das normas aplicáveis, fazendo com que, em consequência, haja restrição quanto à amplitude do procedimento licitatório, em detrimento da possibilidade de melhor escolha para o Município.

Foi determinada a abertura de vista ao órgão do Ministério Público, sendo certo que a DD. Promotora de Justiça oficiante lançou manifestação afirmando, em síntese, inexistir interesse que justifique a intervenção ministerial no feito (fls. 348/351).

Diante de tal manifestação, o DD. Juiz de Direito determinou a remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, aduzindo que há necessidade de intervenção do MP (fls. 353/354).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, em pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 73.

A Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da CR/88).

Para exercer tais funções na esfera cível o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Carta; bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 129, II e III, da CR/88).

Assim, embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel tradicional na esfera cível, ou seja, de intervir como custos legis em processos de natureza individual, é inegável que, por opção político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu o incremento de sua atuação, na condição de autor, em defesa de interesses de ordem supraindividual.

Em uma sociedade de massa, em que os conflitos se coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei, nos processos de natureza metaindividual. Sua atuação clássica como fiscal da lei, nos processos de natureza singular, deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

Em outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do Ministério Público, não basta que a interpretação literal do CPC ou a legislação extravagante: é indispensável verificar se estão presentes, no caso concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação, nos moldes dos art. 127 e 129 da CR/88, e do art. 82 do CPC.

Essa é a adequada compreensão, em perspectiva moderna, da afirmação doutrinária de que a atuação do MP como custos legis é ditada pela lei (cf. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, O Ministério Público no processo civil e penal, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p.12), desde que identificado o interesse público qualificado pela natureza da lide ou qualidade das partes (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime jurídico do Ministério Público, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.559).

Assim, fora dos casos em que há previsão específica de intervenção do MP (v.g. causas em que haja interesses de incapazes, as concernentes ao estado da pessoa, poder familiar, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; e ainda nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural), é necessário compreender a dimensão dessa atuação fundada na cláusula genérica do interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte (art. 82, III, do CPC).

Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo, ou seja, pela identificação do pedido, iluminado pela causa de pedir.

Em outros termos, é necessário indagar quais as reais dimensões da ação mandamental, a partir da relação jurídica a ela subjacente, e das possibilidades decorrentes das projeções que de algum modo afetem os interesses a cargo da proteção do MP.

É o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da intervenção está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 214/215).

Pois bem.

No caso em exame, o que se tem é a dedução, pelo autor, de pretensão nitidamente individual, relacionada, porém, à regularidade de procedimento licitatório em que está em jogo elevado valor econômico, relativo à escolha da empresa que receberá a concessão para a prestação de serviços de transporte público no Município de Vargem Grande Paulista.

Definidos os contornos da demanda, deve-se ter presente que é sempre a partir da pretensão deduzida pelo autor que se pode extrair, em cada caso concreto, a existência ou não de fundamento para a intervenção ministerial.

É verdade que o mandado de segurança constitui ação civil de eficácia potenciada, com assento constitucional, dirigida contra atos ilegais e abusivos do Poder Público, o que implica, em regra, interesse na intervenção do Ministério Público.

Todavia, a racionalização em processo de mandado de segurança é possível quando, no caso concreto, o interesse jurídico subjacente à impetração não revelar hipótese que guarde relação com o novo perfil constitucional do parquet (art. 127 e 129 da CR/88 e art. 82 do CPC).

Daí a existência de regulamentação interna quanto à racionalização da atuação do Ministério Público, como custos legis, no processo civil, nos termos de Atos Normativos editados pela Procuradoria-Geral de Justiça.

Esse é o correto entendimento da disposição legal que prevê a obrigatoriedade da atuação do parquet nos casos em que haja “interesse público evidenciado pela natureza da lide” (art. 82, III do CPC).

Ao vincular a atuação do custos legis ao interesse público decorrente da natureza da lide, o legislador determinou que a identificação da hipótese de atuação é indissociável do mérito, ou seja, do objeto litigioso do processo, que é representado, como se sabe, pela pretensão deduzida em juízo, ilustrada pela causa de pedir (A propósito do conceito de mérito no processo civil, confira-se: Cândido Rangel Dinamarco, Fundamentos do processo civil moderno, São Paulo, RT, 1986, p. 182/220; Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, vol.1, 10. ed., São Paulo, RT, 2006, p. 424/425; Sydney Sanches, “Objeto do processo e objeto litigioso do processo”, Ajuris 16 [1979]).

Assim, o questionamento sobre a regularidade do procedimento licitatório, mormente com a possibilidade de restrição à amplitude do certame, indica a necessidade de intervenção do MP para zelar pelo interesse na boa gestão pública, velando pelos princípios constitucionais da Administração Pública.

Como afirma com acerto Eurico Ferraresi, a partir do raciocínio acima consignado, “nas hipóteses de segurança envolvendo licitação ou contratos administrativos, por exemplo, não seria medida de bom alvitre a dispensa de intervenção” (Do mandado de segurança, Rio de Janeiro, Forense, 2009, p. 63).

Anote-se ainda, a título de observação, que diante da controvérsia atualmente existente relativamente ao tema, esta Procuradoria-Geral de Justiça editou o Ato nº 26/2011-PGJ, de 6 de abril de 2011 (Protocolado nº 144.186/2008), a fim de que seja aprofundado o exame dessa questão, com a criação de “Comissão para estudos sobre a intervenção do Ministério Público em Mandados de Segurança”.

3)  Decisão

Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa para acolhê-la, determinando que ocorra a intervenção ministerial no feito em epígrafe.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

Restituam-se os autos à origem.

São Paulo, 18 de julho de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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