Art. 28 – Cível – Recusa de Intervenção

 

Processo n. 2549/0046770-72.2012.8.26.0053

Interessado: Juiz de Direito da 8ª Vara da Fazenda Pública

Objeto: Ação de obrigação de não fazer cumulada com reparação civil – recusa de intervenção ministerial.

 

Ementa:

1)   Recusa de intervenção. Ação de reparação civil de danos materiais e morais. Órgão ministerial que, ao receber o feito com vista, se recusa a intervir.

2)   Pretensão deduzida em juízo de natureza exclusivamente individual.

3)   Identificação dos casos de intervenção do Ministério Público em função do “interesse público” evidenciado pela “natureza da lide”. Hipótese de atuação que deve decorrer da pretensão deduzida em juízo, que se configura com o pedido, ilustrado pela causa de pedir.

4)   Possível lesão a interesses metaindividuais. Faculdade que o sistema processual concede ao Magistrado de determinar a extração de cópias dos autos e remetê-las ao Ministério Público, para adoção de providências na esfera própria, tanto para a investigação quanto a infrações penais, como para análise da repercussão transindividual (art. 40 do CPP, e art. 7º da Lei nº 7.347/85).

5)   Remessa conhecida e não provida.

 

 

1) Relatório.

Trata o feito de ação de obrigação de não fazer cumulada com reparação civil, ajuizada por Green Roof Clínica Médica S/C LTDA, Luiz Carlos do Prado e Claudia Cristina Rodrigues de Mendonça Prado em face da Fazenda do Estado de São Paulo, em que se afirma, em síntese, que referida clínica foi fiscalizada irregularmente por membro da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o qual teria acarretado danos materiais e morais.

Assentou a inicial que a Defensora Pública Coordenadora Auxiliar do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, arbitrariamente, ingressou na Green Roof Clínica Médica S/C LTDA, entrevistando-se inadequadamente com as pessoas que se encontravam internadas, o que teria causado sérios danos ao tratamento terapêutico lá realizado.

Pediu-se que a Defensoria Pública se abstivesse de fazer uso das fotos, dos depoimentos gravados e filmados, especificamente quanto a Vitor Mendonça Prado, filho dos demandantes Luiz Carlos do Prado e Claudia Cristina Rodrigues de Mendonça Prado; pediu-se, ainda, que a Defensoria se abstivesse de utilizar eventual procuração obtida dos pacientes; por derradeiro, consta o pedido de condenação por valor não inferior a 200 (duzentos) salários mínimos para cada autor.

Em sede de agravo de instrumento tirado no curso do procedimento, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo determinou ao juízo monocrático que fosse dada ciência da demanda ao Ministério Público do Estado de São Paulo (cf. Acórdão de fls. 560/563).

Foi determinada a abertura de vista ao órgão do Ministério Público (fl. 564), sendo certo que a DD. 7º. Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital lançou manifestação afirmando, em síntese, não se tratar de ação civil pública, postulando, pois, a abertura de vista à Promotoria Cível Central da Capital (fl. 564,v.).

Ocorre que o 7º Promotor de Justiça Cível da Capital, ao receber os autos com vista, também declinou da intervenção, ao argumento de não haver menores e incapazes no feito (fl. 565).

Diante do quadro acima descrito, o DD. Juiz de Direito oficiante na 8ª Vara da Fazenda Pública lançou a seguinte manifestação:

“1. O V. Acórdão de fls. 460/563 determinou a remessa dos autos, para ciência dos fatos narrados na ação, ao Ministério Público.

No entanto, remetidos ao Ministério Público, tanto a Promotoria de Justiça da Cidadania (fls. 564, verso), bem como a Promotoria de Justiça Cível (fls. 565) noticiaram a inexistência de justa causa para intervenção.

Destarte, para que se cumpra a r. determinação contida no v. Acórdão, abra-se vista ao Exmo. Sr. Procurador Geral de Justiça para as providências que entender cabíveis.

2. Após, tornem cls.”

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, em que pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 73.

A Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput da CR/88).

Para exercer tais funções na esfera cível o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Carta; bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 129, II e III, da CR/88).

Assim, embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel tradicional na esfera cível, ou seja, de intervir como custos legis em processos de natureza individual, é inegável que, por opção político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu o incremento de sua atuação, na condição de autor, em defesa de interesses de ordem supraindividual.

Em uma sociedade de massa, em que os conflitos se coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei, nos processos de natureza metaindividual. Sua atuação clássica como fiscal da lei, nos processos de natureza singular, deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

Em outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do Ministério Público, não basta a interpretação literal do CPC ou da legislação extravagante: é indispensável verificar se estão presentes, no caso concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação nos moldes dos art. 127 e 129 da Constituição Federal,  e do art. 82 do CPC.

Essa é a adequada compreensão, em perspectiva moderna, da afirmação doutrinária de que a atuação do Ministério Público como custos legis é ditada pela lei (cf. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, O Ministério Público no processo civil e penal, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p.12), desde que identificado o interesse público qualificado pela natureza da lide ou qualidade das partes (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime jurídico do Ministério Público, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.559).

Assim, fora dos casos em que há previsão específica de intervenção do Ministério Público (v.g. causas em que haja interesses de incapazes, as concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; e ainda nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural), é necessário compreender a dimensão dessa atuação fundada na cláusula genérica do interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte (art. 82, III, do CPC).

Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo, ou seja, pela identificação do pedido, iluminado pela causa de pedir.

É o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da intervenção está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 214/215).

Pois bem.

No caso em exame, o que se tem é a dedução, pelos demandantes, de pretensão indenizatória por eventuais danos causados por membro da Defensoria Pública no exercício de sua atividade funcional.

Definidos os contornos da demanda, deve-se ter presente que é sempre a partir da pretensão deduzida pelos autores que se pode extrair, em cada caso concreto, a existência ou não de fundamento para a intervenção ministerial.

As discussões a respeito da regularidade ou não da conduta da referida profissional, ocorrência ou não de danos aos autores, situam-se no plano estritamente individual.

Com a devida vênia, a notícia de que eventual ocorrência de irregularidade ou ilegalidade na conduta do membro da Defensoria Pública não justifica, por si só, a atuação do parquet como fiscal da lei em processo cível no qual não haja previsão de hipótese específica de intervenção.

Do mesmo modo, não é a notícia da ocorrência de lesão a interesse supraindividual, exclusivamente, que justificará a atuação do Ministério Público como custos legis em ação em que deduzida pretensão de cunho individual.

Em situações assim, não há dúvida de que o ordenamento processual confere ao Magistrado que preside o feito a possibilidade de determinar a extração de cópias dos autos e remessa ao Ministério Público, tanto para a apuração de eventual ilícito penal, quando for o caso (art. 40 do Código de Processo Penal), como ainda para fins de adoção de providências tendentes à proteção dos interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos (art. 7º da Lei nº 7.347/85).

Em outros termos: se em ação individual, na qual inexiste causa de intervenção ministerial, o Juiz identifica situação apta a permitir a iniciativa ministerial em sede coletiva (instauração de inquérito civil e eventual propositura de ação coletiva), é possível que de ofício determine a extração de cópias do referido feito, encaminhando-as ao órgão de execução do Ministério Público, provocando assim a iniciativa deste último. Não haverá, entretanto, fundamento legítimo para a intervenção do custos legis na ação individual.

Esse é o correto entendimento da disposição legal que prevê a obrigatoriedade da atuação do parquet nos casos em que haja “interesse público evidenciado pela natureza da lide” (art. 82, III, do CPC).

A esse propósito, anota Antônio Cláudio da Costa Machado que “a natureza da lide que evidencia o interesse público é o atributo de indisponibilidade que o ordenamento positivo haja outorgado à relação jurídica em torno da qual tenha surgido o litígio ou lide, e que tenha sido deduzida em juízo” (A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1998, p. 347).

Ao vincular a atuação do custos legis ao interesse público decorrente da natureza da lide, o legislador determinou que a identificação da hipótese de atuação é indissociável do mérito, ou seja, do objeto litigioso do processo, que é representado, como se sabe, pela pretensão deduzida em juízo, ilustrada pela causa de pedir (A propósito do conceito de mérito no processo civil, confira-se: Cândido Rangel Dinamarco, Fundamentos do processo civil moderno, São Paulo, RT, 1986, p. 182/220; Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, vol.1, 10. ed., São Paulo, RT, 2006, p. 424/425; Sydney Sanches, “Objeto do processo e objeto litigioso do processo”, Ajuris 16 [1979]).

No caso em exame não há razão para a intervenção do Ministério Público.

A pretensão deduzida, de cunho individual, é de natureza estritamente patrimonial, sendo absolutamente disponível.

Assim, nada obstante as respeitáveis ponderações formuladas, foi adequado o posicionamento adotado pelos membros do Ministério Público que declinaram de atuar no presente feito.

 Nada impede, contudo, que seja determinada, caso necessário, a extração de cópias dos autos e sua remessa ao parquet, para adoção de providências na esfera cível ou mesmo criminal.

3) Decisão.

Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa, mas deixo de acolhê-la, declarando não ser necessária a intervenção do Ministério Público no feito referido nesta decisão.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 5 de abril de 2013.

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

ef