Recusa de Intervenção

 

Protocolado n. 0100.902/2014 (Processo n. 1009851-41.2013.8.26.0309)

Interessado: Juízo de Direito da 5ª Vara Cível da Comarca de Jundiaí

Objeto: Recusa de intervenção ministerial em ação declaratória de inexistência de débito cumulada com danos morais

 

 

Ementa:

1.   Recusa de intervenção. Idoso. Ação declaratória de inexistência de débito cumulada com danos morais. Remessa com fundamento na aplicação, por analogia, do disposto no art. 28 do CPP.

2.   Intervenção ministerial na condição de custos legis. Adequada compreensão, à luz do disposto no art. 74, II, c.c. o art. 75 da Lei n. 10.742/2003. Intervenção limitada aos casos de idoso em situação de risco.

3.   Remessa conhecida, mas não acolhida.

 

 

1. Relatório.

Trata-se de ação declaratória de inexistência de débito cumulada com danos morais ajuizada por Marcia Tonet em face do Banco BMG S/A. Argui a autora que foi celebrado, indevidamente e por terceira pessoa, contrato de empréstimo consignado em seu nome, com descontos em valores provenientes da Previdência Social, no valor mensal de R$110,00 (cento e dez) reais.

Ocorre que o membro do Ministério Público oficiante declinou de atuar no processo. Com efeito, aduziu, em síntese, o seguinte:

“No caso, o idoso está bem representado, envolvendo aspectos patrimoniais, não se vislumbrando situação de risco, até porque possui renda própria e adequada à própria subsistência.

 Em relação à questão que envolve a Defesa do Consumidor, também não cabe intervenção do Ministério Público, posto que ainda não comprovada situação de dano difuso, coletivo ou individual homogêneo. Oportunamente, havendo maiores elementos quanto a um dano de natureza “coletiva”, lato sensu, pode-se representar ao Ministério Público através da Promotoria de Defesa do Consumidor (atribuições atualmente do 12° PJ de Jundiaí), com cópia da documentação pertinente. Ademais, o PROCON já teve ciência da situação para fins de eventual defesa coletiva. Quanto ao aspecto em tese criminal, já está comprovado que foi registrado BO de ocorrência em relação aos fatos, não cabendo outras apurações criminais além da já iniciada (fl. 52/53).”

Diante de tal manifestação, o Juiz de Direito, discordando de tal entendimento, determinou a remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, diante da “gravidade do assunto” e pelo fato de se tratar de demanda proposta por pessoa idosa (fl. 60).

É o relato do essencial.

1) Fundamentação.

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida, mas não merece acolhimento.

É pacífico o entendimento de que, em que pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 73.

A Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da CR/88).

Para exercer tais funções, na esfera cível, o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Carta, bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 129, II e III, da CR/88).

Assim, embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel tradicional na esfera cível, ou seja, de intervir como custos legis em processos de natureza individual, é inegável que, por opção político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu o incremento de sua atuação, como autor, em defesa de interesses de ordem supraindividual.

Tratando-se de sociedade de massa, em que os conflitos se coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação nos processos de natureza metaindividual, tanto na condição de autor, como na de fiscal da lei.

Em contrapartida, sua atuação clássica como custus legis, nos processos de natureza singular, deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

Dessa forma, para constatar se é imprescindível a intervenção do Ministério Público, não basta a interpretação literal do CPC ou da legislação extravagante, mas sobretudo a constatação, no caso concreto, da presença de relevantes interesses que legitimem a atuação nos moldes dos art. 127 e 129 da CR/88, e do art. 82 do CPC.

Essa é a adequada compreensão, em perspectiva moderna, da afirmação doutrinária de que a atuação do Ministério Público como custos legis é ditada pela lei (cf. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, O Ministério Público no processo civil e penal, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p.12), desde que identificado o interesse público qualificado pela natureza da lide ou qualidade das partes (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime jurídico do Ministério Público, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 559).

Assim, fora dos casos em que há previsão específica de intervenção do Ministério Público (v.g. causas em que haja interesses de incapazes, nas concernentes ao estado da pessoa, ao pátrio poder, à tutela, à curatela, à interdição, ao casamento, à declaração de ausência e às disposições de última vontade, bem ainda em relação às ações envolvendo litígios coletivos pela posse da terra rural), é necessário compreender a dimensão dessa atuação fundada na cláusula genérica do interesse público, evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte (art. 82, III, do CPC).

Para saber se está presente o interesse público que justifique a intervenção do parquet em determinado caso concreto, indispensável identificar os contornos da lide deduzida em juízo, através da especificação do pedido, iluminado pela causa de pedir.

É o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da intervenção está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 214/215).

O Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741, de 2003) prevê a atuação do Ministério Público, como fiscal da lei, nos casos em que não for parte, desde que se trate de idoso em situação de risco. Nesse sentido, o disposto no art. 74, II, e no art. 75 da Lei n. 10.741/03, transcritos a seguir:

“(...)

Art. 74. Compete ao Ministério Público:

(...)

II – promover e acompanhar as ações de alimentos, de interdição total ou parcial, de designação de curador especial, em circunstâncias que justifiquem a medida e oficiar em todos os feitos em que se discutam os direitos de idosos em condições de risco; (g.n.)

(...)

Art. 75. Nos processos e procedimentos em que não for parte, atuará obrigatoriamente o Ministério Público na defesa dos direitos e interesses de que cuida esta Lei, hipóteses em que terá vista dos autos depois das partes, podendo juntar documentos, requerer diligências e produção de outras provas, usando os recursos cabíveis.

(...)”.

Nesse sentido, anota Oswaldo Peregrina Rodrigues (“Direitos do Idoso”, in Manual de Direitos Difusos, coord. Vidal Serrano Nunes Júnior, São Paulo, Verbatim, 2009, p. 525), em posição afinada com aquela que nos parece a melhor doutrina, que:

“(...)

Verifica-se, pois, que a atuação do Ministério Público nas hipóteses do artigo 74, incisos II, III e IV, como parte ativa do pleito judicial, e como custos legis (art. 75), está condicionada à situação de risco, pessoal ou social, do idoso.

(...)”.

Em outros termos, para justificar a intervenção ministerial como fiscal da lei, é necessário que o caso concreto apresente alguma situação diferenciada que lhe conceda qualificação singular, além das hipóteses notadamente comuns em conflitos de interesses.

É o que se verifica, por exemplo, quando o caso concreto envolve direitos fundamentais indicados no próprio Estatuto do Idoso, entre eles, o direito à vida, à liberdade, à dignidade, à saúde, etc., ou por peculiaridades que revelem situação incomum, evidenciando a fragilidade da parte em razão de sua condição de pessoa idosa.

Conforme bem pontuou o membro do Ministério Público oficiante no feito, no que se refere à proteção do consumidor, de rigor a atuação do parquet quando comprovada lesão ou ameaça de lesão de cunho supraindividual (difuso, coletivo ou individual homogêneo). Quanto aos reflexos criminais da conduta da empresa-ré, já há investigação criminal em curso.

A hipótese em exame, destarte, revela litígio cujo objeto é a declaração de inexistência de débito cumulada com danos morais, que, com a devida vênia com relação ao diverso entendimento do ilustre Magistrado, não ostenta nenhuma peculiaridade que a torne incomum.

2)  Decisão.

Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conhece-se da remessa para não acolhê-la, declarando-se não ser necessária a intervenção do Ministério Público no feito referido nesta decisão.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

  São Paulo, 23 de julho de 2014.

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

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