Recusa de Intervenção

 

Processo nº 1000259-49.2019.8.26.0539

Interessado: Juiz de Direito da 1ª Vara Cível de Santa Cruz do Rio Pardo

Objeto: Recusa de intervenção ministerial em mandado de segurança

 

Ementa:

Recusa de intervenção. Processo Civil. Mandado de Segurança. Direitos Fundamentais. Saúde. Fornecimento de medicamento. Intervenção obrigatória do Ministério Público. 1. A intervenção do Ministério Público no mandado de segurança – um dos principais remédios de natureza constitucional vocacionado especificamente à tutela dos direitos fundamentais no controle da legitimidade de ações e omissões da Administração Pública – é obrigatória, não fornecendo espaço o ordenamento jurídico para sua declinação. 2. Writ impetrado por cidadão visando a obtenção de medicamento necessário para tratamento de sua moléstia. 3. Remédio heróico destinado ao controle da legalidade da Administração Municipal agitando temas republicanos fundamentais – como o interesse (individual indisponível) à vida e saúde, bem como, em contrapartida, o interesse (difuso e social) na higidez do erário - que constituem direitos de estatura social, difusa e individual indisponível, para além da defesa da ordem jurídica. 4. Remessa conhecida e provida.

 

I.              Relatório.

Aparecida Helena Rosalen Pracidio impetrou mandado de segurança contra ato do Secretário Municipal de Saúde de Santa Cruz do Rio Pardo que negou o fornecimento de medicamento para o tratamento de sua moléstia (Diabetes Mellitus).

Após a manifestação do Ministério Público (fls. 32 e 40) a liminar foi deferida parcialmente (fls. 50/51).

Prestadas as informações pela autoridade coatora (fls. 65/77), o douto Promotor de Justiça então oficiante declinou da intervenção nos autos porque, em suma, se trata de “impetração formulada por pessoa maior e capaz e que visa à proteção de direito individual” (fls. 80/84).

O ilustre Juiz de Direito ponderou que “a temática de medicamentos fora da lista RENAME, especialmente porque voltada a pessoas vulneráveis e economicamente hipossuficientes, obrigatoriamente, deve contar com a participação do parquet”. Acrescentou, ainda, que “o pedido de medicamentos ao Ente Administrativo escolhido gera outras consequências, comprometendo, em alguns casos, o erário de pequenos Municípios, reforçando a necessidade de participação do parquet na condição de custos legis, em consonância com o artigo 178, incisos I e II, do Código de Processo Civil”. Remeteu, assim, os autos à Procuradoria-Geral de Justiça por aplicação analógica do art. 28 do Código de Processo Penal.

É o relato do essencial.

II. Fundamentação.

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, em que pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 73.

O Código de Processo Civil disciplina a intervenção processual do Ministério Público, in verbis:

Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam:

I - interesse público ou social;

II - interesse de incapaz;

III - litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana.

A Lei n. 12.016/09, que regula o mandado de segurança, dispõe acerca da intervenção do Parquet nessa ação constitucional da seguinte maneira:

“Art. 12.  Findo o prazo a que se refere o inciso I do caput do art. 7º desta Lei, o juiz ouvirá o representante do Ministério Público, que opinará, dentro do prazo improrrogável de 10 (dez) dias. 

Parágrafo único.  Com ou sem o parecer do Ministério Público, os autos serão conclusos ao juiz, para a decisão, a qual deverá ser necessariamente proferida em 30 (trinta) dias”. 

É a natureza da lide – de ação constitucional vocacionada à tutela de direitos fundamentais não amparados por habeas corpus nem habeas data em face de ato ilegal ou abusivo do poder público – que justifica a atuação obrigatória do Ministério Público como órgão interveniente no mandado de segurança à luz do art. 178, I, do Código de Processo Civil, e que se radica na sua missão de defesa da ordem jurídica prevista no art. 127, caput, da Constituição de 1988, in verbis:

O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.

É certo que, no âmbito do Ministério Público paulista, editou-se o Ato Normativo n. 313, de 24 de junho de 2003, “na forma dos artigos 10, XII, da Lei Federal n.º 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, e artigos 19, inciso I, letra ‘d’ e 42, inciso XI, da Lei Estadual Complementar nº 734 de 26 de novembro de 1993, respeitada a independência funcional dos membros da Instituição e, portanto, sem caráter vinculativo”, dispondo sobre a racionalização da intervenção do Ministério Público no processo civil, com a seguinte redação:

“Art. 1º - Em matéria cível, intimado como órgão interveniente, poderá o membro da Instituição, ao verificar não se tratar de causa que justifique a intervenção, limitar-se a consignar concisamente a sua conclusão, apresentando, neste caso, os respectivos fundamentos.

Art. 2º - Em se tratando de recurso interposto pelas partes nas situações em que a intervenção do Ministério Público é obrigatória, o órgão ministerial de primeiro grau deve se manifestar sobre os pressupostos de admissibilidade recursal.

Art. 3º - Perfeitamente identificado o objeto da causa e respeitado o princípio da independência funcional, fica facultada a intervenção ministerial nas seguintes hipóteses:

I - Separação judicial e divórcio, onde não houver interesse de incapazes;

II - Ação declaratória de união estável e respectiva partilha de bens;

III - Ação ordinária de partilha de bens, envolvendo casal sem filhos menores ou incapazes;

IV - Ação de alimentos e revisional de alimentos, bem como ação executiva de alimentos fundada no artigo 732 do CPC, entre partes capazes;

V- ação relativa às disposições de última vontade, sem interesse de incapazes, excetuados a aprovação, o registro e a anulação do testamento ou a que envolver reconhecimento de paternidade, legado de alimentos ou nas quais figurem como beneficiárias entidades fundacionais;

VI - Procedimento de jurisdição voluntária em que inexistir interesse de incapazes ou não envolver matéria alusiva aos registros públicos;

VII - Ação de indenização pelo direito comum, decorrente de acidente do trabalho;

VIII - Requerimento de falência, na fase pré-falimentar;

IX - Ação individual em que seja parte sociedade em liquidação extrajudicial;

X - Ação de desapropriação, direta ou indireta, entre partes capazes, desde que não envolvam terras rurais objeto de litígios possessórios ou que encerrem fins de reforma agrária (art. 18, §2°, da L.C. 76/93);

XI - Ação individual em que for parte a fazenda ou o poder público (estado, município, autarquia ou empresa pública), com interesse meramente patrimonial, disponível e sem implicações de ordem constitucional, a exemplo da execução fiscal e respectivos embargos, anulatória de débito fiscal, declaratória em matéria fiscal, repetição de indébito, consignação em pagamento, possessória, ordinária de cobrança, indenizatória, embargos de terceiro, despejo, ações cautelares e impugnação do valor da causa;

XII - A ação acidentária ou a ação revisional do valor do benefício e respectivas execuções, propostas por advogado regularmente constituído ou nomeado, salvo nos casos em que o beneficiário seja incapaz ou idoso em condições de risco;

XIII – Ação que, em seu curso, cessar a causa da intervenção.

Parágrafo único. O disposto no inciso VI deste artigo não se aplica nos casos de herança jacente e herança vacante, de bens dos ausentes e de coisas vagas.

Art. 4º - O exame mencionado no artigo 1º deverá ser renovado em toda vista dos autos, podendo também ser realizado a qualquer momento.

Art. 5º - O presente Ato entrará em vigor da data da sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

 

Também foi emitido o Assento n. 61 em 13 de setembro de 2006 pelo colendo Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça, verbis:

“O Ministério Público intervirá em mandados de segurança sempre que estiverem em litígio interesses sociais e individuais indisponíveis, em conformidade com o que determina o art. 127 caput, da Constituição Federal, notadamente nas hipóteses de inquérito civil, licitação, contrato administrativo, bens públicos, saúde pública, defesa das prerrogativas de órgãos públicos, existência de interesses de incapazes ou instituição em regime falimentar, recuperação judicial ou liquidação extrajudicial”.

O rol desse assento, entretanto, não é numerus clausus, mas, exemplificativo, como revela o advérbio – “notadamente” - nele constante, sem embargo do registro de posicionamento doutrinal adverso à racionalização em mandado de segurança:

“Não se ousa afirmar neste juízo crítico que todas as medidas de readequação da atuação lato sensu do Ministério Público no processo civil estejam erradas. No entanto, o alcance de algumas delas destoa das diretrizes que devem presidir a atividade normativa e interpretativa subalterna correlata e consequente. Portanto, de per si, não é possível glosar a míngua de maior profundidade teórica e estratégica o remodelamento da intervenção do Ministério Público no processo civil de jurisdição voluntária. Mas, em algumas outras situações, a crítica tem integral procedência, na medida em que o redimensionamento da atuação interventiva do Ministério Público não pode ter como baldrame a renúncia de atribuições normativamente explicitadas e justificadas pela presença de um interesse público previamente identificado pelo legislador, senão deve orientar-se pela técnica de racionalização e pelo critério de uma participação processual proativa do Ministério Público como custos legis – que, afinal, tem raiz na sua função de defensor da ordem jurídica constante do art. 127 da Constituição. É, no mínimo, controversa a dispensa (ou facultatividade) de manifestação do Ministério Público no processo civil quando atua como órgão interveniente em face de expressas previsões legais; é indevido partir de um pressuposto que seja essencialmente uma consequência. Não é dado a ato normativo subalterno ou recomendação contrariar lei que determina intervenção obrigatória do Parquet. Não por acaso essa recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público foi (corretamente) censurada pela imprensa ao resumir que ‘se a legislação obriga os promotores e procuradores a intervir nessas ações, a eventual omissão desses profissionais equivale à negação de direitos’.

Embora a jurisprudência sublinhe que não acarreta nulidade processual a ausência de manifestação do Ministério Público nos casos em que seja obrigatória, salvo se não houver intimação pessoal, vetusta advertência de Pontes de Miranda em torno do art. 85 do Código de Processo Civil, reproduzida por Yussef Said Cahali, arrola entre os exemplos de responsabilidade civil pessoal e direta do membro do Ministério Público ‘a não-comparência nos casos de intervenção prevista em lei, inclusive se há interesse público na causa, objetiva ou subjetivamente (art. 82, III)’.

A questão demanda análise mais profunda. O Código de Processo Civil contém regra geral declarativa de competência do Ministério Público para intervir (art. 82) nas causas em que há interesses de incapazes (inciso I), nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade (inciso II), e nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte” (inciso III). O inciso III desse art. 82 anteriormente só continha sua parte final. A primeira parte foi introduzida pela Lei n. 9.415, de 23 de dezembro de 1996, sob o império da Constituição de 1988.

Apesar de o conceito de interesse público ser indeterminado, de valor, não é de difícil extração. De qualquer modo, se a lei processual civil nessa regra geral favorece certa dose de discricionariedade ao Ministério Público, seu exercício depende de parâmetros objetivos inferidos do ordenamento jurídico e das características de fundamentalidade e transcendência do interesse público e do interesse social. Limites há, como, ad esempia, julgado expressando que ‘o interesse público, a que alude o art. 82, III, do CPC, não se confunde com o interesse da Fazenda Pública’, mas, outro aresto considerando que a interpretação que se devota à cláusula habilitante do art. 129, III, da Constituição, é ampla, em execução de título extrajudicial de contrato de financiamento para aquisição de debêntures conversíveis em ações de empresa estatal decorrente de privatização, manifestou que se ‘nos termos dos artigos 129, III, da Constituição Federal; 1º, IV, e 5º da Lei 7.347/85, o Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública visando ao ressarcimento de dano ao erário, uma vez que se apresenta como defesa de interesse público (Súmula 329/STJ). Por analogia, embora não seja obrigatória, justifica-se a intervenção do Órgão Ministerial no caso concreto, haja vista que a origem do débito decorre do processo de privatização de empresa pública, convindo à coletividade como um todo que o Parquet assuma sua tutela, pela acentuada relevância do bem jurídico a ser defendido’.

Não é a natureza da ação, mas, o seu objeto que deve dimensionar a intervenção do Ministério Público no processo civil em cotejo com suas funções de defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis, do zelo pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública pelos direitos constitucionalmente assegurados, da tutela dos interesses difusos e coletivos (arts. 127 e 129, Constituição), valendo obtemperar o que inciso IX do art. 129 da Carta Magna contém norma de encerramento, de modo a atribuir-lhe tudo aquilo que não lhe for incompatível. Em outras palavras, a relevância social do direito posto sob controvérsia à luz dos preceitos fundamentais da República e da Democracia.

Quando o Supremo Tribunal Federal (equivocadamente) negou legitimidade ao Ministério Público à promoção de ação civil pública impugnando a cobrança indevida de tributos, o Ministro Sepúlveda Pertence propugnou a identificação do interesse social (outro conceito indeterminado de valor) segundo a Constituição, vislumbrado a partir de certos critérios, como os pilares da ordem social prevista na Constituição e correspondência à persecução dos objetivos fundamentais da República. Dentre eles, é possível arrolar os direitos à moradia, à saúde e à educação, a dignidade da pessoa humana, a erradicação da miséria, o cumprimento da função social da propriedade, a probidade e a transparência governamental, os direitos fundamentais etc.

Sem embargo, uma adequada exegese induz a considerar que, para além dessa regra geral, nos demais casos em que o Código de Processo Civil (arts. 478, 482, 487, III, 731, 944) ou leis especiais (Lei n. 12.016/09, art. 12; Lei n. 4.717/65, art. 6º, § 4º, v.g.) definam a obrigatoriedade da intervenção é porque ou se trata das situações dos incisos I e II do art. 82 ou se cuida de presunção, na própria indicação legal, do interesse público. Destarte, nesta última hipótese, não há espaço para a discricionariedade que se contém no inciso III in fine do art. 82. Tal, por exemplo, ocorre com a desapropriação de imóvel rural, por interesse social, para fins de reforma agrária (art. 6º, §§ 3º e 4º, Lei Complementar n. 76/93). Outro critério reside na simetria, e é muitas vezes empregado pelo legislador: se o Ministério Público tem legitimidade ativa deve intervir como fiscal da lei se a demanda foi proposta por colegitimado (art. 5º, § 1º, Lei n. 7.347/85; art. 17, § 4º, Lei n. 8.429/92; v.g.).

A linha a ser seguida reside nas premissas básicas de racionalização sem renúncia de atribuições e de atuação permanentemente integrada entre os órgãos do Ministério Público portadores de competências diversas, como agentes e intervenientes, a partir do filtro proporcionado pela intervenção processual do Ministério Público para sondagem das demandas sociais.

Além disso, é de se estimar que a intervenção do Ministério Público nas ações (ou remédios) constitucionais vocacionadas à tutela de direitos fundamentais (como, v.g., ação popular, ação direta de inconstitucionalidade por ação ou omissão, arguição de descumprimento de preceito fundamental, habeas data, habeas corpus, mandado de segurança, mandado de injunção) é decorrência elementar de sua função de defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, sem contar que sua atuação em algumas ações especiais, como o mandado de segurança e a usucapião contribui, por exemplo, ao enfretamento efetivo e integral de dois problemas históricos e sensíveis da realidade brasileira: o controle da Administração Pública e a questão fundiária. 

Com efeito, olvidando a importância do instrumento constitucional de controle do poder público em face de condutas ilegais ou abusivas (art. 5º, LXIX, Constituição) que se conecta à missão do Ministério Público de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, Constituição), inclusive os previstos na Constituição, não é dado a norma infralegal e secundária ou decisão individual desalinhar da regra primária de obrigatoriedade da intervenção do Parquet no mandado de segurança (art. 12, Lei n. 12.016/09). A lei não tornou dispensável o parecer ministerial no parágrafo único do art. 12 da Lei do Mandado de Segurança; o parecer continua sendo obrigatório, porém, a ultrapassagem do prazo fixado à manifestação do Ministério Público não obsta a decisão, tal e qual o tratamento dispensado na Lei do Processo Administrativo Federal ao parecer obrigatório e não vinculante (art. 42, § 2º, Lei n. 9.784/99). A doutrina já se manifestou sobre a posição processual do Ministério Público no processo de mandado de segurança, atribuindo-lhe a singular conditio de parte pública autônoma, ou, em outras palavras, defensor do interesse público primário, evoluindo da posição de advogado do interesse público secundário. Não é acaciano registrar a peculiar funcionalidade do mandado de segurança (criação genuína do direito brasileiro e que encontra paralelo no juicio de amparo do direito mexicano) como principal instrumento constitucional de controle da Administração Pública. A paradoxal abstenção da intervenção (cuja obrigatoriedade resulta de lei) estimulada ou ordenada por ato infralegal é perniciosa para o Ministério Público que, em suma, abdica participar do controle externo da Administração Pública, com prerrogativas e posições destacadas, de nível constitucional e cujo status encontra similitude nas demais ações constitucionais de tutela de direitos fundamentais (como, v.g., a ação popular, a ação direta de inconstitucionalidade por ação ou omissão, a arguição de descumprimento de preceito fundamental, o habeas data, o habeas corpus, e a feição coletiva do próprio mandado de segurança). Ademais, afigura-se inconveniente para justificação da mantença do tratamento simétrico ao da Magistratura, sem olvidar a nocividade da abertura de espaço para outros órgãos postularem a absorção da função do Ministério Público. O controle da Administração Pública liga-se intimamente à ideia de cidadania, pois, volta-se tanto à verificação da regularidade dos atos da Administração quanto à tutela dos direitos fundamentais.

Impende considerar, ainda, que essa intervenção, além de proporcionar ao Ministério Público o controle da Administração Publica, favorece-lhe ao controle do próprio Poder Judiciário: não somente pelo writ impetrado contra ato judicial, mas, também, pela potencialidade de interposição de recursos no processo. Com efeito, ‘o Ministério Público tem legitimidade para recorrer em processo de mandado de segurança, onde oficie na condição de fiscal da lei’, assim como tem para requerer suspensão da liminar ou da sentença. E, efetivamente, a jurisprudência proclama o direito de recorrer como consectário da obrigatória intervenção do Ministério Público no mandado de segurança. Ora, a dispensabilidade da intervenção terá como corolário a falta de interesse de recorrer, em situações em que o interesse público primário poderá ser aviltado. Neste sentido, a jurisprudência proclama a obrigatoriedade de intervenção do Ministério Público, asseverando que ‘ocorre nulidade processual insanável, quando o Ministério Público não é intimado para se manifestar em ação mandamental (art. 10 da Lei 1.533/51)’ ainda que, em outras oportunidades, se absteve da declaração de nulidade processual diante da recusa afirmada pelo próprio Ministério Público de intervir nos autos, porque ‘a imposição de atuação do membro do Parquet, quanto a matéria versada nos autos, infringiria os Princípios da Independência e Autonomia do órgão ministerial’.

No plano do controle da Administração Pública configura-se eminentemente bizarra a faculdade de intervenção do Ministério Público em assuntos ou temas que seja legitimado ativo para agir por meio de ação civil pública relativa, por exemplo, a concursos ou licitações viciados, contratos administrativos de quaisquer espécies fraudados, licenças ambientais ou urbanísticas em desconformidade ao interesse público etc. e, para além, evidências de sinais de improbidade administrativa ou de desvio de poder por atuações suspeitas, imotivadas, contrárias à orientação normativa da própria Administração Pública, v.g. É a partir do controle exercido no mandado de segurança que se possibilita, também, a ignição de controle próprio pelo Ministério Público das condutas omissivas ou comissivas da Administração Pública que, em seu conjunto e visualizadas macroscopicamente, exigem do Ministério Público medidas para correção ou inibição da vetusta praxe administrativa de não reconhecer direitos subjetivos e, com isso, provocar a sobrecarga do Poder Judiciário através de mandados de segurança ou de outras ações. É dizer, a partir dessa intervenção, o Ministério Público poderá filtrar ou detectar ilegalidades reiteradamente praticadas e, mediante atuação integrada entre seus órgãos competentes, expedir recomendações, instaurar inquéritos civis etc., visando à promoção de ação civil pública para cessação de atividade nociva ou prestação de atividade devida (evitando a sobrecarga do Poder Judiciário) ou para imposição de sanções específicas da Lei da Probidade Administrativa, da Lei de Responsabilidade Fiscal etc., sem prejuízo do exercício, na própria ação de mandado de segurança, dos direitos de recurso e de suspensão dos efeitos de liminar ou sentença, quando contrariado o interesse público primário, o que pressupõe a efetiva intervenção, notadamente quando vedado o uso da ação coletiva (v.g., matéria tributária) ou a solução no remédio heroico for mais útil e célere à tutela do interesse (saúde pública, acesso à educação pública etc.). A propósito, tome-se como hábil exemplo aresto que proclamou a legitimidade ativa do Parquet para ajuizamento de ação civil pública objetivando o fornecimento de certidão” (Wallace Paiva Martins Junior. Ministério Público: a Constituição e as Leis Orgânicas, São Paulo: Atlas, 2015, pp. 133-140, n. 59).

 

De qualquer modo, a Procuradoria-Geral de Justiça tem dedicado ao tema interpretação assentando que a racionalização em mandado de segurança é possível quando, no caso concreto, o interesse jurídico subjacente à impetração não revelar hipótese que guarde relação com o perfil constitucional do Parquet. A título de exemplo, invoco o seguinte precedente, cuja decisão se encontra assim ementada:

1)            Mandado de Segurança. Recusa de intervenção. Impetração para reconhecimento de ilegalidade na composição de Comissão Especial de Inquérito, junto à Câmara Municipal de Itatiba, instaurada para investigar ilegalidade de Decreto Municipal de autoria do Prefeito.

2)                  O mandado de segurança constitui ação civil de eficácia potenciada, com assento constitucional, dirigida contra atos ilegais e abusivos do Poder Público, o que implica, em regra, interesse na intervenção do Ministério Público.

3)                  A racionalização em processo de mandado de segurança, todavia, é possível quando, no caso concreto, o interesse jurídico subjacente à impetração não revelar hipótese que guarde relação com o perfil constitucional do parquet.

4)            A intervenção do Ministério Público deve ser interpretada à luz de seu perfil constitucional (art. 127 e 129 da CR/88 e art. 82 do CPC).

5)            Identificação dos casos de intervenção do MP em função do “interesse público” evidenciado pela “natureza da lide”. Hipótese de atuação que deve decorrer da pretensão deduzida em juízo, que se configura com o pedido, ilustrado pela causa de pedir.

6)            Relação jurídica subjacente. Impetração cujo escopo consiste em impedir ilegalidade na instalação e funcionamento de Comissão Especial de Inquérito da Câmara Municipal, destinada, por sua vez, a apurar a legalidade de Decreto editado pelo Prefeito Municipal. Discussão relativa à incidência de princípios constitucionais relativamente à hipótese. Zelo, pelo MP, do efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Constituição. Zelo pela ordem jurídica. Hipótese em que a atuação ministerial é imperativa, à luz do art. 127, caput, e art. 129, II, da CR.

7)            Remessa conhecida e provida para determinar a intervenção ministerial no feito (Protocolado n. 133.485/14).

Merece destaque, outrossim, o Enunciado nº 87 da Procuradoria-Geral de Justiça que corrobora o quanto exposto, cuja redação é a seguinte:

Enunciado nº 87 - “RECUSA DE INTERVENÇÃO. PROCESSO CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTROLE DA LEGALIDADE DOS ATOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DIREITO DE INFORMAÇÃO. LIBERDADE SINDICAL. DIREITOS FUNDAMENTAIS. É obrigatória a intervenção do Ministério Público no mandado de segurança (um dos principais remédios de natureza constitucional vocacionado especificamente à tutela dos direitos fundamentais no controle da legitimidade de ações e omissões da Administração Pública) – que agita temas republicanos fundamentais como o interesse à informação e à liberdade de organização sindical - que constituem direitos de estatura social e individual indisponível, para além da defesa da ordem jurídica”.

Mas, para além de indagações sobre a facultatividade da intervenção do Ministério Público em mandado de segurança à luz do art. 127 da Constituição de 1988, do art. 178, I, do Código de Processo Civil, e do art. 12 da Lei do Mandado de Segurança, inegável que a matéria transcende o mero interesse individual.

Ora, a presente demanda, que busca o fornecimento de medicamento essencial o tratamento de moléstia grave, visa resguardar a vida e saúde do cidadão, especialmente do hipossuficiente, direito fundamental previsto no caput, do artigo 5º e do artigo 6º, da Constituição Federal.

Aliás, justamente em razão da relevância da matéria, de seu amplo interesse público e social, o Ministério Público possui atribuição para promover ação visando assegurar o fornecimento de medicamento, conforme reconhecido, em Repercussão Geral, pelo Supremo Tribunal Federal (Tema 262):

Tema 262 - Legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública que tem por objetivo compelir entes federados a entregar medicamentos a portadores de certas doenças.

O Ato Normativo nº 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010 (Manual de Atuação Funcional dos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo), também prevê a atuação do Promotor de Justiça na defesa do direito à saúde:

Art. 436. Atribui-se à Promotoria de Justiça de Direitos Humanos a garantia de efetivo respeito dos Poderes Públicos e serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual e, notadamente, a defesa dos interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos dos idosos, das pessoas com deficiência, da saúde e em qualquer violação ou risco iminente a direitos fundamentais ou básicos sociais, por força de práticas discriminatórias que atinjam interesse público relevante.

(...)

Art. 440. Zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual e nas demais normas pertinentes, que disciplinam a promoção, defesa e recuperação da saúde, individual ou coletiva, promovendo as medidas necessárias à sua garantia, cuidando em especial de:

(...)

Art. 446. Sempre verificar a possibilidade de ingressar com ação coletiva, sem prejuízo da adoção de medidas imediatas necessárias à defesa de direitos individuais indisponíveis, a fim de resguardar os interesses de todas as pessoas que se encontrarem na mesma situação.

Por outro lado, o fornecimento de medicamento impacta as finanças públicas, especialmente, como bem observado pelo ínclito magistrado, em pequenos municípios, com parcos recursos financeiros.  Há, portanto, interesse público e social na atuação do Ministério Público buscando, sempre que possível, a manutenção da higidez dos cofres públicos.

Tanto é verdade que a questão também é tema de Repercussão Geral já reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, mas ainda não julgada (Tema 06):

Terma 6: Dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo.

Enfim, a matéria posta em julgamento agita questões sensíveis ligadas ao controle jurisdicional da Administração Pública, consistentes em temas republicanos fundamentais – como o interesse (individual indisponível) à vida e à saúde (arts. 5º, caput e 6º, caput, Constituição da República), bem como, em contrapartida, o interesse (difuso e social) na manutenção da higidez do erário municipal – e que constituem direitos de estatura social e individual indisponível, além da defesa da ordem jurídica.

Finalmente, observo que o Ministério Público se manifestou do writ desde o pedido de liminar, justamente em razão do interesse público e social da matéria, não havendo qualquer motivo para, neste momento processual, haver recusa de intervenção ministerial.

III. Decisão.

Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa para acolhê-la, determinando que ocorra a intervenção ministerial no feito em epígrafe.

Publique-se a ementa. Comunique-se nos autos. Registre-se. Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 10 de julho de 2019.

 

 

Walter Paulo Sabella

Procurador-Geral de Justiça

-em exercício-

aca