Recusa de Atribuição

 

Protocolado n. 196.159/13

Interessado: Juízo de Direito da 3ª Vara de Família e Sucessões de São Bernardo do Campo

 

 

 

 

 

 

 

Ementa: Recusa de atribuição. Casamento. Pessoa com deficiência. Incapacidade civil absoluta. Interdição. Ratificação do ato pelo curador. Negativa à provocação judicial para promoção de ação declaratória de nulidade de casamento. Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência. Direitos Humanos. Incorporação com status de Emenda Constitucional. Previsão de direito ao matrimônio. Manutenção da convicção do Promotor de Justiça. 1. Para fins de casamento, a incapacidade não se confunde com o impedimento: aquela impede que alguém se case com qualquer pessoa, enquanto este somente atinge determinadas pessoas e situações, pressupondo a capacidade. 2. Se à luz da interpretação dos arts. 3º, II, e 1.548, I, CC, a pessoa absolutamente incapaz não pode contrair núpcias nem manter união estável, essa interpretação sucumbe à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Nova York, EUA, 30-03-2007) promulgada pelo Decreto n. 6.949, de 25-08-2009, após sua aprovação pelo Decreto Legislativo n. 186, de 09-07-2008, conforme o procedimento do § 3º do art. 5º, CF/88, e cujo art. 23 assim dispõe: “1. Os Estados Partes tomarão medidas efetivas e apropriadas para eliminar a discriminação contra pessoas com deficiência, em todos os aspectos relativos a casamento, família, paternidade e relacionamentos, em igualdade de condições com as demais pessoas, de modo a assegurar que: a) Seja reconhecido o direito das pessoas com deficiência, em idade de contrair matrimônio, de casar-se e estabelecer família, com base no livre e pleno consentimento dos pretendentes”. 3. A incorporação dessa convenção internacional - cujo objeto reflete direitos humanos - no direito brasileiro com o status de emenda constitucional torna insubsistente qualquer norma jurídica subalterna (infraconstitucional) ou interpretação conducente à proibição de pessoa com deficiência contrair núpcias. 4. Manutenção da recusa do douto Promotor de Justiça à promoção de ação de nulidade do casamento, considerada a ratificação do ato pela curadora.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1.             O douto Juízo de Direito da 3ª Vara de Família e Sucessões de São Bernardo do Campo encaminha peças extraídas do processo de dúvida suscitada pelo Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais de Riacho Grande à vista da recusa do digno Promotor de Justiça de São Bernardo do Campo, Doutor Maximiliano Roberto Ernesto Führer, à promoção de ação declaratória de nulidade do casamento de Jonathan Tomaz Terto da Silva e Liliane Barbosa de Godoi (Processo n. 0055593-54.2012.8.26.0564).

2.             Conforme consta dessas peças, Jonathan Tomaz Terto da Silva e Liliane Barbosa de Godoi contraíram matrimônio, sob o regime da comunhão parcial de bens, em 17 de dezembro de 2011 (fl. 06), registrado pelo Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais de Riacho Grande, Comarca de São Bernardo do Campo (número de ordem 5925, fl. 10, Livro B-22), mas, descobriu-se, após rejeição da anotação no assento de nascimento (fl. 28), a incapacidade de Liliane Barbosa de Godoi motivada por interdição desde 21 de novembro de 2006 por força de sentença do douto Juízo de Direito da 1ª Vara de Família e Sucessões de São Bernardo do Campo (fls. 40/41, 46/52).

3.             Nos autos da dúvida, o douto Promotor de Justiça assim teceu sua manifestação:

“Dispõe o Código Civil que ‘É nulo o casamento contraído: I – pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil’ (Art. 1.548). Ocorre que deficiência mental (retardo mental) não é enfermidade e, portanto, não é causa de impedimento para o casamento.

Mesmo que assim não fosse, a proibição imposta ao doente mental para se casar atenta frontalmente contra Dignidade da Pessoa Humana, princípio diretor da República Brasileira (art. 1º, III, da CF) e, destarte, é inconstitucional, além de desumana.

Com efeito, a negação ao status familiar e amoroso afronta diretamente a natureza humana. O deficiente mental e o doente mental não podem ser considerados ‘menos humanos’ ou portadores de uma ‘humanidade condicionada ou restrita’.(...)” (fls. 54/55).

4.             Predicando a ocorrência de “mero vício formal”, requereu a intimação da curadora para manifestação acerca da concordância ou oposição ao casamento.

5.             Deferido o requerimento (fl. 56), a curadora manifestou sua concordância (fl. 58), assinalando o douto membro do Ministério Público que se tratava de pedido de providências, e não de dúvida, e o saneamento do ato, concluindo ser “plenamente válido o enlace civil” e inculcando o arquivamento dos autos (fl. 62).

6.             A respeitável decisão determinou o arquivamento dos autos, mas, provocou a Procuradoria-Geral de Justiça por aplicação analógica do art. 28 do Código de Processo Penal, à vista do convencimento do douto Promotor de Justiça, “para, se for o caso, designar outro promotor de justiça a fim de propor ação declaratória de nulidade do casamento”, considerada a legitimidade ativa do Parquet (fls. 65/69). Segundo sua fundamentação, o casamento “é nulo de pleno direito” a teor do art. 1.548, I, do Código Civil:

“Com efeito, estabelece o dispositivo legal em questão que é nulo o casamento contraído pelo ‘enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil’.

Embora o representante do Ministério Público, na manifestação de fls. 39/40, tenha sustentado que ‘deficiência mental (retardo mental) não é enfermidade e, portanto, não é causa de impedimento para o casamento’, entendo que tal distinção não é cabível na espécie, a despeito de o inciso I do art. 1.548 do Código Civil não fazer referência expressa à deficiência mental, como o fazem o inciso II do art. 3º e o inciso I do art. 1.767, ambos do mesmo Codex, ao cuidarem, respectivamente, das hipóteses de incapacidade civil absoluta para exercer pessoalmente os atos da vida civil e de sujeição à curatela.

(...)

Por outro lado, também entendo que o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), invocado pelo representante do Ministério Público para reputar inconstitucional o inciso I do art. 1.548 do Código Civil, não tem o elastério por ele pretendido, porque as causas de nulidade do casamento são ditadas por razões de ordem pública, que interessam a toda a sociedade e se sobrepõem, portanto, aos interesses privados, ainda que impliquem restrições à liberdade individual.

Ressalto que o casamento nulo, diferentemente do anulável, não é passível de ratificação (cf. MILTON PAULO DE CARVALHO FILHO, op. cit., loc. cit.). Portanto, o consentimento manifestado pela curadora da interdita com o casamento não tem o condão de sanar o vício de nulidade, o qual, ao contrário do entendimento esposado pelo representante do Ministério Público, não é meramente formal, mas substancial.

Sem embargo, observo que as nulidades matrimoniais têm regime próprio, diverso do que disciplina as nulidades dos negócios jurídicos em geral, de sorte que a nulidade aqui verificada, apesar de absoluta, não pode ser declarada de ofício pelo juiz, dependendo, para tanto, do ajuizamento de ação autônoma para esse fim, cuja legitimidade é de qualquer interessado ou do Ministério Público, consoante o art. 1.549 do Código Civil” (fls. 66/68).  

7.             Após seu trânsito em julgado (fl. 71), cópia dos autos foi remetida à Procuradoria-Geral de Justiça.

8.             É o relatório.

9.             Conciliando-se à independência funcional, a recusa de atuação ou intervenção é passível de controle realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal, conforme enunciam Hugo Nigro Mazzilli (Manual do Promotor de Justiça, São Paulo: Saraiva, 1991, 2ª ed., p. 537) e Emerson Garcia (Ministério Público, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, 2ª ed., p. 73).

10.           À vista da exposição do fato, transcrevo do Código Civil os dispositivos de interesse à solução da controvérsia:

“Art. 3º. São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:

(...)

II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;

III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

(...)

Art. 1.525. O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser instruído com os seguintes documentos:

(...)

II - autorização por escrito das pessoas sob cuja dependência legal estiverem, ou ato judicial que a supra;

(...)

Art. 1.548. É nulo o casamento contraído:

I - pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil;

(...)

Art. 1.549. A decretação de nulidade de casamento, pelos motivos previstos no artigo antecedente, pode ser promovida mediante ação direta, por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público.

Art. 1.550. É anulável o casamento:

(...)

IV - do incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento;

(...)

Art. 1.560. O prazo para ser intentada a ação de anulação do casamento, a contar da data da celebração, é de:

I - cento e oitenta dias, no caso do inciso IV do art. 1.550;

II - dois anos, se incompetente a autoridade celebrante;

III - três anos, nos casos dos incisos I a IV do art. 1.557;

IV - quatro anos, se houver coação.

(...)

Art. 1.767. Estão sujeitos a curatela:

I - aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil;

II - aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade;

III - os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos;

IV - os excepcionais sem completo desenvolvimento mental;

V - os pródigos”.

11.           Cuida-se de incapacidade e não de impedimento - este consiste em legitimação como modalidade de capacidade em sentido estrito (Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil: Direito de Família, São Paulo: Atlas, 2005, 5ª ed., vol. 6, p. 84). Essa sutil distinção é assim precisada:

“Não se pode confundir a incapacidade para o casamento com os impedimentos matrimoniais. A primeira (incapacidade) impede que alguém se case com qualquer pessoa, enquanto os impedimentos somente atingem determinadas pessoas em determinadas situações” (Flávio Tartuce e José Fernando Simão. Direito Civil, vol. 5: Direito de Família, Rio de Janeiro: Método, 2012, 7ª ed., p. 39).

12.           E após definir como causa de incapacidade a descrita no art. 3º, II, do Código Civil, explica:

“Fica claro que os casos de incapacidade matrimonial são os mesmos que os de incapacidade absoluta previstos no art. 3º da atual codificação. Quanto às duas últimas hipóteses, cumpre consignar que se fazem presentes, uma vez que o casamento constitui um negócio jurídico. Como não há normas específicas na Parte Especial do Código Civil, é necessário socorrer-se à Parte Geral, às regras gerais relativas aos incapazes” (Flávio Tartuce e José Fernando Simão. Direito Civil, vol. 5: Direito de Família, Rio de Janeiro: Método, 2012, 7ª ed., p. 40).

13.           Considera-se que doença e enfermidade são expressões sinônimas, tendo o Enunciado 332 CJF/STJ, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, proclamado que:

“A hipótese de nulidade prevista no inc. I do art. 1.548 do Código Civil se restringe ao casamento realizado por enfermo mental absolutamente incapaz, nos termos do inc. II do art. 3º do Código Civil”.

14.           Nesse sentido, a literatura pontua a diferença entre os comandos dos arts. 1.548, I, e 1.550, IV:

“A lei refere-se aos incapazes de consentir e de manifestar seu consentimento, de modo inequívoco. O atual Código trata dos incapazes por falta de discernimento permanente ou por causa transitória, no art. 3º. Será nulo o casamento daquele que é portador de moléstia mental permanente (art. 1.548, I). Será anulável o casamento daquele que, no momento do consentimento, não tinha o devido discernimento, estando, por exemplo, sob efeito de drogas ou em estado de inconsciência” (Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil: Direito de Família, São Paulo: Atlas, 2005, 5ª ed., vol. 6, p. 95).

15.           O Superior Tribunal de Justiça recusa o reconhecimento de união estável do absolutamente incapaz, enunciando que:

“(...) 3. Se o ‘enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil’ (artigo 1.548, inciso I, do Código Civil) não pode contrair núpcias, sob pena de nulidade, pela mesma razão não poderá conviver em união estável, a qual, neste caso, jamais será convertida em casamento. A adoção de entendimento diverso, data venia, contrariaria o próprio espírito da Constituição Federal, a qual foi expressa ao determinar a facilitação da transmutação da união estável em casamento.

4. A lei civil exige, como requisito da validade tanto dos negócios jurídicos, quanto dos atos jurídicos - no que couber -, a capacidade civil (artigo 104, 166 e 185, todos do Código Civil).

5. Não só pela impossibilidade de constatar-se o intuito de constituir família, mas também sob a perspectiva das obrigações que naturalmente emergem da convivência em união estável, tem-se que o incapaz, sem o necessário discernimento para os atos da vida civil, não pode conviver sob tal vínculo. (...)” (RT 909/560).

16.           Sendo nulo o ato matrimonial, a convalidação mediante ratificação ou outro expediente similar é anódina, pois, a nulidade não admite saneamento.

17.           Entretanto, há se considerar para solução da controvérsia que, além de a interdição ter sido decretada por conta de retardo mental moderado (fls. 47/48) em que pese seja declarativa da incapacidade absoluta, em data anterior às núpcias foi promulgada a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada em Nova York, em 30 de março de 2007, pelo Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009, após sua aprovação pelo Decreto Legislativo n. 186, de 09 de julho de 2008, conforme o procedimento do § 3º do art. 5º da Constituição de 1988, cujo art. 23 assim dispõe:

“1. Os Estados Partes tomarão medidas efetivas e apropriadas para eliminar a discriminação contra pessoas com deficiência, em todos os aspectos relativos a casamento, família, paternidade e relacionamentos, em igualdade de condições com as demais pessoas, de modo a assegurar que:

a) Seja reconhecido o direito das pessoas com deficiência, em idade de contrair matrimônio, de casar-se e estabelecer família, com base no livre e pleno consentimento dos pretendentes”.

18.           A incorporação dessa convenção internacional - cujo objeto reflete direitos humanos - no direito brasileiro com o status de emenda constitucional torna insubsistente qualquer norma jurídica subalterna (infraconstitucional) ou interpretação conducente à proibição de pessoa com deficiência contrair núpcias.

19.           Face ao exposto, conheço da remessa e endosso a convicção exarada pelo douto 4º Promotor de Justiça de São Bernardo do Campo, deixando de acolher as ponderações do digno Juízo de Direito da 3ª Vara de Família e Sucessões de São Bernardo do Campo para declarar a desnecessidade de ajuizamento pelo Ministério Público de ação declaratória de nulidade do casamento objeto dos autos.

20.           Publique-se a ementa no Diário Oficial.

21.           Comunique-se o ínclito Promotor de Justiça e o douto Juízo de Direito, com cópia desta decisão.

22.           Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

23.           Após, arquivem-se os autos, com as cautelas de estilo.

        São Paulo, 21 de fevereiro de 2014.

 

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

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