Recusa de Intervenção

 

Protocolado nº 23.428/2017

(Autos n. 1008537-62.2016.8.26.0533)

Interessado: Juízo de Direito da 3ª Vara da Comarca de Santa Bárbara D´Oeste

Objeto: Ação de repetição de indébito

 

Ementa:

1)      Ação de repetição de indébito ajuizada por pessoa com deficiência, visando suspensão de cobrança e isenção de IPVA e ICMS pela aquisição de veículo. Pretensão deduzida em juízo de natureza exclusivamente individual. Recusa de intervenção.

2)      A Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da CR/88). Para exercer tais funções na esfera cível, o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Carta, bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 129, II e III, da CR/88).

3)      Intervenção ministerial que não se justifica pela inexistência de situação de vulnerabilidade ou situação de risco à luz das peculiaridades do caso concreto.

4)       Remessa não provida.

 

1.   Relatório

Em ação de repetição de indébito ajuizada por pessoa com deficiência, o digno Juiz de Direito determinou a intimação do ilustre Promotor de Justiça, que se recusou a oficiar com lastro no Ato n. 313/03-PGJ-CGMP, aduzindo que o autor está regularmente representado, não se encontrando em situação de risco, além de não se constatar quaisquer das hipóteses a justificar a intervenção do Ministério Púbico, nos termos do art. 178 do Código de Processo Civil ou no art. 127 da Constituição Federal.

A digna autoridade judicial insistiu na intervenção do Parquet, entendendo ser necessária sua atuação em processos nos quais “parte dos pedidos do autor possui relação com benefícios a que faria jus por ser portador de deficiência”, remetendo a recusa de intervenção à Procuradoria-Geral de Justiça ex analogia do art. 28 do Código de Processo Penal.

É o breve relatório.

2. Fundamentação

O artigo 127 da Constituição Federal estabelece que o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Para exercer tais funções na esfera cível, o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Carta; bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 129, II e III, da CR/88).

Assim, embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel tradicional na esfera cível, ou seja, de intervir como custos legis em processos de natureza individual, é inegável que, por opção político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu o incremento de sua atuação, na condição de autor, em defesa de interesses de ordem supraindividual.

Em uma sociedade de massa, em que os conflitos se coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei, nos processos de natureza metaindividual. Sua atuação clássica como fiscal da lei, nos processos de natureza singular, deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

Em outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do Ministério Público, não basta a interpretação literal do CPC ou da legislação extravagante: é indispensável verificar se estão presentes, no caso concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação nos moldes dos art. 127 e 129 da Constituição Federal,  e do art. 178 do CPC.

Essa é a adequada compreensão, em perspectiva moderna, da afirmação doutrinária de que a atuação do Ministério Público como custos legis é ditada pela lei (cf. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, O Ministério Público no processo civil e penal, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p.12), desde que identificado o interesse público qualificado pela natureza da lide ou qualidade das partes (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime jurídico do Ministério Público, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.559).

No que tange à pessoa com deficiência, a Lei nº 7.853/89, ao dispor sobre o apoio e sua integração social, estabelece em seu artigo 5º, que "o Ministério Público intervirá obrigatoriamente nas ações públicas, coletivas ou individuais, em que se discutam interesses relacionados à deficiência da pessoa".

Porém, nesses casos, a intervenção do Ministério Público como fiscal da lei deve necessariamente ser orientada não apenas pela presença de discussão que envolva a deficiência - já que a só qualidade da parte não é suficiente para ensejar sua atuação -, mas sobretudo pela inserção da pessoa com deficiência em situação de vulnerabilidade.

Com efeito, a Lei Brasileira de Inclusão (lei nº 13.146/15) orienta a tutela da pessoa com deficiência à vista do princípio da proteção, insculpido em seu artigo 5º, consubstanciado na ideia de que ela deve ser protegida em virtude de se encontrar em situação singular, que a diferencia substancialmente dos demais membros da sociedade pelo aspecto da vulnerabilidade.

É esse o entendimento que também guia a intervenção ministerial nas causas que tutelam o idoso, verbis:

“O só fato de ser pessoa idosa não denota parâmetro suficiente para caracterizar a relevância social a exigir a intervenção do Ministério Público. Deve haver comprovação da situação de risco, conforme os termos do artigo 43 da Lei nº 10.741/2003, sob pena de obrigatória intervenção do Ministério Público, de forma indiscriminada, como custos legis em toda em qualquer demanda judicial que envolva idoso” (REsp 1.235.375/PR, Relator Ministro GILSON DIPP, Quinta Turma, DJe de 11/05/2011).

Assim, é a existência de estado de vulnerabilidade ou situação de risco que deve orientar a intervenção do Parquet nas causas individuais que envolvam a pessoa com deficiência, não se podendo presumir sua incapacidade.

Aliás, a própria Lei nº 13.146/15 (art. 6º) busca expressamente desatrelar a pessoa com deficiência da ideia de pessoa incapaz, considerando-a igual às demais ao estabelecer que possui capacidade para: I - casar-se e constituir união estável; II - exercer direitos sexuais e reprodutivos; III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Deste modo, a atuação do Ministério Público como custus legis está condicionada à existência de situação de vulnerabilidade, pessoal ou social, da pessoa com deficiência.

Em outros termos, é necessário, para justificar a intervenção ministerial como fiscal da lei em feitos individuais envolvendo pessoa com deficiência, que o caso concreto apresente alguma conotação diferenciada, além das hipóteses comuns ou corriqueiras que são verificáveis em conflitos de interesses envolvendo quaisquer pessoas.

É o que se dá, por exemplo, quando estão em jogo os direitos fundamentais indicados na própria Lei Brasileira de Inclusão, como o direito à vida, à liberdade, à dignidade, à saúde, etc., ou por peculiaridades do caso que revelem situação incomum, que evidencie a fragilidade da parte em razão de sua condição de pessoa com deficiência.

Pois bem.

No caso em exame, o que se tem é a dedução, pelo demandante, de ação de repetição de indébito, buscando a suspensão da cobrança de IPVA, a declaração de isenção desse tributo, bem como do pagamento de ICMS incidentes sobre a aquisição de veículo em virtude de ser pessoa com deficiência.

Afirma que os tributos foram cobrados em virtude da existência de débitos tributários anteriores, já que terceiros utilizaram seus documentos para adquirir outro veículo em seu nome, cujos tributos não foram pagos.

Com a devida vênia, a pretensão deduzida nos autos não justifica, por si só, a atuação do parquet como fiscal da lei.

O demandante, embora deficiente, é pessoa capaz, capaz de exprimir sua vontade, não se extraindo situação de vulnerabilidade que justifique a intervenção do Ministério Público, notadamente por se tratar de questão essencialmente patrimonial, que cuida da incidência ou não de tributo sobre veículo.

Assim, nada obstante as respeitáveis ponderações formuladas, foi adequado o posicionamento adotado pelo membro do Ministério Público que declinou de atuar no presente feito.

3. Decisão

Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa, mas deixo de acolhê-la, declarando não ser necessária a intervenção do Ministério Público no feito referido nesta decisão.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 17 de março de 2017.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

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