Recusa de Intervenção

 

Protocolado n. 26.357/14

Processo n. 0010889-02.2013.8.26.0408

Medida de Proteção à Criança e ao Adolescente

2ª Vara Criminal e Infância e Juventude de Ourinhos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ementa: Recusa de Intervenção. Medida de proteção à criança e ao adolescente. Determinação judicial para o ajuizamento, pelo Ministério Público, de ação de destituição do poder familiar. Negativa do membro do Ministério Público. Necessidade de prévio acolhimento institucional, assegurando contraditório e ampla defesa, dispensada petição inicial. Aforamento inoportuno de ação de destituição do poder familiar. Manutenção do entendimento do Promotor de Justiça. 1. Havendo necessidade de determinação judicial do acolhimento institucional de criança, assegurando contraditório e ampla defesa no próprio procedimento, não procede o posicionamento da autoridade judiciária da necessidade de o MP ajuizar petição inicial com os requisitos do art. 156, ECA, aplicável apenas para a ação de perda do poder familiar. 2. À luz do art. 101, § 2º, ECA, para a medida do art. 99, VII, § 1º, basta requerimento do MP no próprio procedimento. 3. Imaturo o expediente para o MP ajuizar ação de destituição do poder familiar. 4. Recusa válida. 5. Devolução dos autos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1.             A criança foi inserida em instituição de acolhimento pelo Conselho Tutelar de Ourinhos em razão da constatação de abandono pelos responsáveis legais, requerendo, após instrução, o digno membro do Ministério Público oficiante que a equipe técnica do douto Juízo de Direito “contate casal devidamente cadastrado interessado em adotar a criança e o oriente a propor o pedido respectivo” à vista do desinteresse da genitora (indicativo da inoponibilidade de resistência à colocação em família substituta), o que tornava “desnecessária a sua prévia destituição do poder familiar” (fl. 31).

2.             O douto Juízo de Direito embora determinando a verificação da existência de casal habilitado para adoção, entendeu, à luz do art. 101, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que:

“(...) não havendo no caso interessado, deverá o Ministério Público, seja por ação de destituição ou suspensão do poder familiar, promover medida judicial de natureza contenciosa para pleitear o afastamento da menor (...) do convívio familiar e colocação em família substituta, em que se garanta o contraditório e a ampla defesa aos genitores” (fl. 32).

3.             O digno Promotor de Justiça redarguiu assinalando o equívoco do respeitável despacho por confundir “afastamento familiar, como consequência de acolhimento institucional, com destituição ou suspensão do poder familiar”, e teceu a seguinte manifestação:

“(...) Faltou a deflagração do contraditório, o que deveria ter sido determinado no próprio procedimento, consoante postulado por este órgão no item 3 da manifestação de fls. 03, reiterado no item 3 de fls. 10 e até agora não determinado pelo juízo. Sinale-se que a deflagração do contraditório, para fins de acolhimento institucional já procedido pelo Conselho Tutelar, como no presente caso, não depende de propositura de ação própria e deve ocorrer nos próprios autos do procedimento de acolhimento, como se depreende do disposto no artigo 101, § 2º, do ECA.

Quanto à propositura de pedido de destituição ou suspensão do poder familiar, por ora me reporto à manifestação de fls. 31” (fl. 33).

4.             O douto Juízo de Direito considerando improcedentes as alegações do ínclito Promotor de Justiça e adicionando a necessidade de apresentação de petição inicial com observância dos requisitos do art. 282 do Código de Processo Civil ou do art. 156 do Estatuto da Criança e do Adolescente para a deflagração do procedimento contraditório remeteu os autos à Procuradoria-Geral de Justiça por analogia ao art. 28 do Código de Processo Penal (fl. 34).

5.             É o relatório.

6.             Pacífico o entendimento de que, em pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal, como explica a literatura (Hugo Nigro Mazzilli. Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo: Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia. Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 73). Embora os membros do Ministério Público gozem da independência funcional - que lhes isenta de qualquer injunção quanto ao conteúdo de suas manifestações - são administrativamente vinculados aos órgãos superiores que, no plano estritamente administrativo, possuem, em relação àqueles, poderes que caracterizam a Administração Pública como o hierárquico, disciplinar, normativo etc.

7.             O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas, pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação. Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer em princípio como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro que o fará, diante de situações de incerteza concretamente configurada quanto às atribuições dos órgãos ministeriais de execução envolvidos, ou mesmo diante da recusa de atuação – possibilidade que se embasa na aplicação analógica do art. 28 do Código de Processo Penal e no art. 181, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente – exatamente porque o Parquet é detentor de legitimidade ativa para apurar se é o caso ou não de requerer a perda ou a suspensão do poder familiar (art. 155, Estatuto da Criança e do Adolescente) ou a aplicação de outra medida de proteção, sem prejuízo de se verificar eventual omissão do Conselho Tutelar.

8.             Os elementos evidenciam que o Ministério Público se recusou a propor medida para o qual é legitimado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, embora não tenha se recusado a intervir no feito na qualidade de custos legis. A remessa, portanto, tem o escopo de controle da negativa do Promotor de Justiça em tomar a providência na forma vislumbrada pela autoridade judicial.

9.             Trata-se de divergência que diz respeito à qualidade (modo de intervir) da intervenção (rectius: da atuação), e não quanto a esta. Essa avaliação, contudo, depende de aprofundado exame da conveniência e oportunidade acerca da adoção de medida extrema, que importa na perda do vínculo da criança com sua família natural, como também por força das relevantes repercussões em sua vida sócio-afetiva, o que pode ser inadequado nesse momento.

10.           Não se nega que o Procurador-Geral de Justiça possa, além de saber se é o caso ou não de intervir, verificar, também, como deve se dar tal intervenção. Em outras palavras, a qualidade da intervenção Ministerial é questão cuja solução pode ser imprescindível quando a dúvida concreta se apresenta.

11.           No caso, porém, não se pode afirmar, a rigor, que tenha ocorrido a recusa à intervenção ministerial neste feito ou que a intervenção tenha colocado em risco a tutela dos direitos fundamentais das crianças. Ao contrário, o que se infere dos autos é que a intervenção ministerial vem ocorrendo, e com o necessário zelo.

12.           Portanto, com o devido respeito ao entendimento do douto Juízo, diante da atuação do Parquet como custos legis que não se recusou à propositura da ação, mas, deliberou acerca do melhor momento para o seu ajuizamento e, ante o caráter extremo da medida, a melhor solução parece ser a prosseguimento do feito, até que se configure eventual e própria recusa em agir ou intervir ou que se evidencie que a atuação poderá comprometer a tutela dos direitos para os quais o Ministério Público foi legitimado a agir.

13.           Registro que não houve uma discordância expressa quanto à necessidade da medida por parte do órgão ministerial de execução, mas, isto sim, quanto ao momento mais adequado à propositura da ação de destituição do poder familiar.

14.           Se, por um lado, o princípio hierárquico que anima toda e qualquer organização administrativa – inclusive o Ministério Público – justifica o controle quando da indevida negativa de atuação do membro do Parquet, é necessário que esta reste devidamente caracterizada, sob pena de configuração da usurpação de atribuição e consequentemente da própria independência funcional, princípio institucional assentado no art. 127, § 1º, da Constituição.

15.           A contextura oferecida demonstra, ademais, sólida razão para o douto Promotor de Justiça não promover neste momento a ação de destituição do poder familiar. Com efeito, ele requereu a instauração de procedimento contencioso em face da genitora da criança para os fins da imposição da medida de acolhimento institucional (fls. 03, 10), nos termos do art. 99, VII, e § 1º, da Lei n. 8.069/90.

16.           Para os efeitos do art. 101, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, não se requisita ao Ministério Público a oferta de petição inicial visando ao acolhimento institucional com os requisitos do art. 282 do Código de Processo Civil ou do art. 156 do Estatuto da Criança e do Adolescente, como estimou o douto Juízo de Direito, bastando, como alvitrado pelo ilustre Promotor de Justiça, o próprio procedimento curso, desde que se garanta o contraditório e a ampla defesa. Assim preceitua o § 2º do art. 101 mencionado:

Sem prejuízo da tomada de medidas emergenciais para proteção de vítimas de violência ou abuso sexual e das providências a que alude o art. 130 desta Lei, o afastamento da criança ou adolescente do convívio familiar é de competência exclusiva da autoridade judiciária e importará na deflagração, a pedido do Ministério Público ou de quem tenha legítimo interesse, de procedimento judicial contencioso, no qual se garanta aos pais ou ao responsável legal o exercício do contraditório e da ampla defesa”.

17.           Tampouco pode se dizer que o feito se encontrava maduro para o Ministério Público ajuizar a ação de destituição do poder familiar, nos termos dos arts. 24, 155 e 201, III, da Lei n. 8.069/90. Havendo necessidade da observância do prévio afastamento familiar corolário da medida de acolhimento institucional mediante decisão judicial precedida do competente contraditório e da ampla defesa, a perda do poder familiar, além de render-se eventualmente a outras medidas preliminares solicitadas pelo Parquet, tem cabimento disciplinado nos §§ 9º e 10 do mencionado art. 101, in verbis:

“§ 9º.  Em sendo constatada a impossibilidade de reintegração da criança ou do adolescente à família de origem, após seu encaminhamento a programas oficiais ou comunitários de orientação, apoio e promoção social, será enviado relatório fundamentado ao Ministério Público, no qual conste a descrição pormenorizada das providências tomadas e a expressa recomendação, subscrita pelos técnicos da entidade ou responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar, para a destituição do poder familiar, ou destituição de tutela ou guarda. 

§ 10.  Recebido o relatório, o Ministério Público terá o prazo de 30 (trinta) dias para o ingresso com a ação de destituição do poder familiar, salvo se entender necessária a realização de estudos complementares ou outras providências que entender indispensáveis ao ajuizamento da demanda”.

18.           Adiciono que a medida judicial extrema poderá eventualmente ser dispensada se houver consentimento dos pais ou responsáveis, como preveem os arts. 45 e 166, §§ 1º e 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, o que decerto inspirou o douto Promotor de Justiça a assentar que pelo desinteresse da genitora à filha, “não irá criar embaraços para o encaminhamento dela a família substituta”, de tal sorte a reputar “desnecessária a sua prévia destituição do poder familiar” (fl. 31).

19.           Diante do exposto, conheço da remessa, e deixo, pelo menos por ora, de acolher as ponderações formuladas pelo douto Juiz de Direito, restituindo os autos ao juízo de origem para o prosseguimento.

20.           Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se. Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

                São Paulo, 19 de fevereiro de 2014.

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

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