Recusa de Intervenção

 

Protocolado SEI nº 29.0001.0014274.2019-85

Interessado: Juiz de Direito da 3ª Vara Cível de Santa Bárbara D´Oeste

Objeto: Recusa de intervenção ministerial em ação de rescisão contratual envolvendo empresa em liquidação extrajudicial.

 

Ementa:

1.    Recusa de intervenção ministerial em ação de rescisão contratual e devolução de valores em face de empresa em liquidação extrajudicial.

2.    A Lei n. 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que regula a recuperação judicial, extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade, prevê a intervenção do Ministério Público em diversos dispositivos (arts. 8º; 19; 22, § 4º; 30, § 2º; 52, V; 59, § 2º; 99, XIII; 104, VI; 132; 142, § 7º; 143; 154, § 3º e 187), o que não afasta sua atuação nas demais situações em que haja interesse público, à luz do comando inserto no art. 127 da Constituição Federal de 1988.

3.    A Procuradoria-Geral de Justiça, por intermédio do Ato n. 070/2005, recomendou aos membros do Ministério Público, especialmente àqueles que atuam na área de recuperação judicial e falências, que continuem ou passem a oficiar nos autos dos pedidos de falências, recuperação judicial ou extrajudicial e ações em que sejam partes ou interessadas empresas em recuperação ou falidas, requerendo vista dos autos e intimação para os demais atos do processo ou procedimento, manifestando-se fundamentadamente em defesa do crédito e da justa preocupação com a recuperação de empresas em dificuldades, e propondo, sempre que houver desvirtuamento da função social da empresa, medidas que evitem prejuízos à circulação de riquezas, ao crédito popular, ao pleno emprego e à comunidade.

4.    “É obrigatória a intervenção do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica em ações com relevante repercussão social ou econômica e que tenham como parte sociedades em liquidação extrajudicial ou em repercussão judicial, como as que envolvam relações de consumo ou pessoas vulneráveis” (Enunciado n. 105-PGJ).

5.    Remessa conhecida e provida.

1.)  Relatório.

Trata-se de ação de rescisão contratual cumulada com restituição de valores, movida por TATIANA LINO CORREA em face de AGRABEN ADMINISTRADORA DE CONSÓRCIOS LTDA e MOTO SNOB COMÉRCIO E REPRESENTAÇÕES LTDA (fls. 01/07), junto à 3ª Vara Cível da Comarca de Santa Bárbara D´Oeste (Autos nº 1007795-37.2016.8.26.0533).

Aduz a autora que no ano de 2015 firmou contrato de consórcio com a empresa AGRABEN (Grupo A749 – Cota 14/0, contrato nº 244908) para aquisição de uma motocicleta Honda Biz 125 Es Flex. Não obstante viesse pagando regularmente as parcelas do consórcio, foi surpreendida a empresa AGRABEN entrou em processo de liquidação extrajudicial, razão peal qual foi orientada a suspender o pagamento das parcelas vincendas, sendo informada de que não receberia a motocicleta em virtude de ter saído de linha. Dessa forma, pretende a rescisão do contrato de consórcio, requerendo a devolução dos valores pagos.

Considerando que a empresa AGRABEN se encontra em liquidação extrajudicial, determinou-se a abertura de vista ao Ministério Público (fls. 104).

O representante do Ministério Público, entretanto, declinou de sua intervenção no feito (fls. 168/170), razão pela qual a Juíza de Direito, discordando de tal entendimento, determinou fosse oficiado a esta Procuradoria-Geral de Justiça, entendendo que o Ministério Público deve intervir em processos nos quais uma das partes é empresa em liquidação extrajudicial (fls. 171).

É o relato do essencial.

2)    Fundamentação.

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, em que pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 73.

A Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da CR/88).

Para exercer tais funções na esfera cível, o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Carta; bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 129, II e III, da CR/88).

Assim, embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel tradicional na esfera cível, ou seja, de intervir como custos legis em processos de natureza individual, é inegável que, por opção político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu o incremento de sua atuação, na condição de autor, em defesa de interesses de ordem supraindividual.

Em uma sociedade de massa, em que os conflitos se coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como na de fiscal da lei, nos processos de natureza metaindividual. Sua atuação clássica como fiscal da lei, nos processos de natureza singular, deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

Em outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do Ministério Público, não basta a interpretação literal do Código de Processo Civil ou da legislação extravagante: é indispensável verificar se estão presentes, no caso concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação, nos moldes dos arts. 127 e 129 da Constituição Federal de 1988, e do art. 178 do Código de Processo Civil.

Essa é a adequada compreensão, em perspectiva moderna, da afirmação doutrinária de que a atuação do Ministério Público como custos legis é ditada pela lei (cf. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, O Ministério Público no processo civil e penal, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p.12), desde que identificado o interesse público qualificado pela natureza da lide ou qualidade das partes (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime jurídico do Ministério Público, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 559).

Assim, fora dos casos em que há previsão específica de intervenção do MP (v.g. causas em que haja interesse público ou social; interesses de incapazes; e ainda nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana), é necessário compreender a dimensão dessa atuação fundada na cláusula genérica de fiscal da ordem jurídica (art. 178, caput do novo CPC).

Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo, ou seja, pela identificação do pedido, iluminado pela causa de pedir.

Em outros termos, é necessário indagar quais as reais dimensões da falência ou recuperação judicial, a partir da relação jurídica a ela subjacente, e das possibilidades decorrentes das projeções que de algum modo afetem os interesses a cargo da proteção do Ministério Público.

É o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da intervenção está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 214/215).

Pois bem.

Insta considerar que a Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, (Lei de Falências e de Recuperação de Empresas) previa em seu artigo 4º o seguinte: O representante do Ministério Público intervirá nos processos de recuperação judicial e de falência”. Por sua vez, o parágrafo único do mesmo dispositivo legal afirmava: Além das disposições previstas nesta Lei, o representante do Ministério Público intervirá em toda ação proposta pela massa falida ou contra esta”.

No mesmo sentido, a anterior Lei de Falências continha artigo análogo: “O representante do Ministério Público, além das atribuições expressas na presente Lei, será ouvido em toda ação proposta pela massa ou contra esta” (art. 210).

Ocorre que o artigo 4º da nova Lei foi vetado.

Há de se entender as razões do Veto, inclusive para se delimitar com exatidão os contornos da intervenção do Ministério Público nos feitos referentes à falência e à recuperação de empresas. Veja-se o teor de mencionado Veto:

"O dispositivo reproduz a atual Lei de Falências – Decreto-Lei no 7.661, de 21 de junho de 1945, que obriga a intervenção do parquet não apenas no processo falimentar, mas também em todas as ações que envolvam a massa falida, ainda que irrelevantes, e.g. execuções fiscais, ações de cobrança, mesmo as de pequeno valor, reclamatórias trabalhistas etc., sobrecarregando a instituição e reduzindo sua importância institucional.

Importante ressaltar que no autógrafo da nova Lei de Falências enviado ao Presidente da República são previstas hipóteses, absolutamente razoáveis, de intervenção obrigatória do Ministério Público, além daquelas de natureza penal. Senão, veja-se:

‘Art. 52. Estando em termos a documentação exigida no art. 51 desta Lei, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial e, no mesmo ato: (...)

V – ordenará a intimação do Ministério Público e a comunicação por carta às Fazendas Públicas Federal e de todos os Estados e Municípios em que o devedor tiver estabelecimento.’

‘Art. 99. A sentença que decretar a falência do devedor, dentre outras determinações: (...)

XIII – ordenará a intimação do Ministério Público e a comunicação por carta às Fazendas Públicas Federal e de todos os Estados e Municípios em que o devedor tiver estabelecimento, para que tomem conhecimento da falência.’

‘Art. 142 (...)

§ 7o Em qualquer modalidade de alienação, o Ministério Público será intimado pessoalmente, sob pena de nulidade.’

‘Art. 154. Concluída a realização de todo o ativo, e distribuído o produto entre os credores, o administrador judicial apresentará suas contas ao juiz no prazo de 30 (trinta) dias. (...)

§ 3o Decorrido o prazo do aviso e realizadas as diligências necessárias à apuração dos fatos, o juiz intimará o Ministério Público para manifestar-se no prazo de 5 (cinco) dias, findo o qual o administrador judicial será ouvido se houver impugnação ou parecer contrário do Ministério Público.’

O Ministério Público é, portanto, comunicado a respeito dos principais atos processuais e nestes terá a possibilidade de intervir. Por isso, é estreme de dúvidas que o representante da instituição poderá requerer, quando de sua intimação inicial, a intimação dos demais atos do processo, de modo que possa intervir sempre que entender necessário e cabível. A mesma providência poderá ser adotada pelo parquet nos processos em que a massa falida seja parte.

Pode-se destacar que o Ministério Público é intimado da decretação de falência e do deferimento do processamento da recuperação judicial, ficando claro que sua atuação ocorrerá pari passu ao andamento do feito. Ademais, o projeto de lei não afasta as disposições dos arts. 82 e 83 do Código de Processo Civil, os quais prevêem a possibilidade de o Ministério Público intervir em qualquer processo, no qual entenda haver interesse público, e, neste processo específico, requerer o que entender de direito."

Extrai-se da mensagem aposta no Veto ao art. 4º da Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, que não seriam afastadas as disposições dos arts. 82 e 83 do CPC/73 (hoje previstas no art. 178 do CPC/15), que garantem a intervenção do Ministério Público em qualquer processo no qual entenda haver interesse público.

Ora, se assim é, está claro que a nova legislação prevê a intervenção do Ministério Público em diversos dispositivos (arts. 8º; 19; 22, § 4º; 30, § 2º; 52, V; 59, § 2º; 99, XIII; 104, VI; 132; 142, § 7º; 143; 154, § 3º e 187), o que não afasta a sua intervenção nas demais situações, à luz do comando inserto no art. 127 da Constituição Federal de 1988.

Destarte, nas hipóteses em que a Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, não indique expressamente a atuação ministerial, torna-se evidente a necessidade de sua intervenção quando presentes as situações descritas no art. 127 da Constituição Federal de 1988, vale dizer, quando se torne de rigor a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Registre-se, por oportuno, que a Procuradoria-Geral de Justiça editou o Ato n. 070/2005, em decorrência da promulgação da Lei Federal nº 11.101, recomendando a intervenção do Ministério Público; a saber:

 “RECOMENDA aos membros do Ministério Público, especialmente àqueles que atuam na área de recuperação judicial e falências, que continuem ou passem a oficiar nos autos dos pedidos de falências, recuperação judicial ou extrajudicial e ações em que sejam partes ou interessadas empresas em recuperação ou falidas, requerendo vista dos autos e intimação para os demais atos do processo ou procedimento, manifestando-se fundamentadamente em defesa do crédito e da justa preocupação com a recuperação de empresas em dificuldades, e propondo, sempre que houver desvirtuamento da função social da empresa, medidas que evitem prejuízos à circulação de riquezas, ao crédito popular, ao pleno emprego e à comunidade”.

Ao comentar a posição do Ministério Público nos feitos atinentes à falência e à recuperação judicial diante da Lei n. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, sobretudo no cotejo com a anterior legislação, aduziu Fábio Ulhoa Coelho o seguinte:

 “Pela simples comparação dos dois dispositivos (o da lei anterior e o vetado), percebe-se que uma das mais importantes alterações trazidas pela nova Lei de Falências diz respeito ao papel do Ministério Público nos feitos falimentares. Ele não atua mais em toda ação de que seja parte a massa; não mais tem o dever de se pronunciar em qualquer fase do processo. A inexistência, na lei atual, de uma previsão genérica implica que o Ministério Público só terá participação na falência ou recuperação judicial nas hipóteses especificamente apontadas na lei (por exemplo: arts. 52, V, 99, XIII, 142, §7º., 154,§3º,etc)(Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, Editora Saraiva, 2ª. Edição, p. 29).

Contudo, com o devido respeito, não nos parece aceitável mencionado entendimento, pois não se pode, de plano, aduzir que os feitos relativos à falência e à recuperação de empresas não apresentem cunho social, diante da circunstância de que os interesses envolvidos sejam exclusivamente patrimoniais, de todo disponíveis.

Mesmo que fora das hipóteses expressamente contempladas pela Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas para intervenção do Ministério Público, este poderá intervir para defesa da função social da empresa, ou mesmo dos meios de produção ou de proteção dos créditos trabalhistas, exemplificativamente. Colhe-se com segurança que adotar posição diversa violaria o art. 127 da Constituição Federal de 1988.

Não se pode vislumbrar meramente interesse disponível e patrimonial em ações movidas em face de massa falida ou empresa em recuperação judicial ou extrajudicial, uma vez que de rigor a intervenção Ministerial nas ações em que sejam partes ou interessadas empresas em recuperação ou falidas, principalmente para fiscalizar o desvirtuamento da função social da empresa, prejuízos à circulação de riquezas, ao crédito popular, ao pleno emprego e à comunidade.

No presente caso, há interesse na intervenção do Ministério Público, considerando a relação de consumo decorrente da celebração de consórcio com empresa que veio a ser liquidada extrajudicialmente, atingindo interesse do autor e, não obstante não discutido no presente caso, interesse de todos os demais consorciados que vinham adimplindo regulamente as parcelas do contrato.

Com efeito, esse é o entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp nº 1536550-RJ, que analisando a existência ou não de nulidade por falta de intervenção do Ministério Público em recuperação judicial, assim consignou:

“Percebe-se, a toda evidência, que se procurou alcançar solução que, ao mesmo tempo em que não sobrecarregasse a instituição com a obrigatoriedade de intervenção em ações “irrelevantes” (do ponto de vista do interesse público), garantisse a atuação do ente naquelas em que os reflexos da discussão extrapolassem a esfera dos direitos individuais das partes, assegurando-lhe requerer o que entendesse pertinente quando vislumbrada a existência de interesses maiores”.

Vale dizer, nas ações em que a recuperanda figure como parte, caso exista repercussão relevante na ordem social ou econômica, interferindo em relações consumeristas, como a que se verifica no caso em testilha, é recomendável a atuação do Ministério Público.

Por fim, assinalo a edição do Enunciado de Entendimento n. 105 da Procuradoria-Geral de Justiça que corrobora o quanto exposto, cuja redação é a seguinte:

RECUSA DE INTERVENÇÃO. SOCIEDADES EM LIQUIDAÇÃO EXTRAJUDICIAL OU RECUPERAÇÃO JUDICIAL. É obrigatória a intervenção do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica em ações com relevante repercussão social ou econômica e que tenham como parte sociedades em liquidação extrajudicial ou em repercussão judicial, como as que envolvam relações de consumo ou pessoas vulneráveis”.

3) Decisão.

Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa para acolhê-la, determinando que ocorra a intervenção ministerial no feito em epígrafe.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se. Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 03 de abril de 2019.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

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