Recusa de Intervenção

 

Protocolado MP n. 64030/2018 (Processo n. 1002178-67.2014.8.26.0533)

Interessado: Juízo de Direito da 3ª Vara Cível de Santa Bárbara D’Oeste

Objeto: Ação de usucapião.

 

Ementa: Civil. Processo civil. Recusa de Intervenção. Usucapião. Inexistência de interesse público ou social no caso concreto. Remessa não provida.

1.      Recusa de intervenção. Ação de usucapião. Órgão ministerial que, em manifestação fundamentada, após afastar as hipóteses que ensejariam a intervenção ministerial, se recusa a intervir. Pretensão deduzida em juízo de natureza exclusivamente individual. Afirmação da magistrada de que a situação noticiada exige a intervenção do Ministério Público.

2.      Identificação dos contornos da lide deduzida em juízo, que afastou o interesse público no caso concreto, não justificando a intervenção do parquet. Análise da nova sistemática e modalidades de usucapião, bem como da intervenção do Ministério Público em harmonia com esse novo sistema.

3.      Afastamento do entendimento da D. magistrada que discordou da manifestação ministerial no sentido da não intervenção, encaminhando os autos ao Procurador-Geral de Justiça em aplicação analógica ao art. 28 do Código de Processo Penal. Argumento que a ação de usucapião de imóvel implicaria em lote inferior a metragem mínima estabelecida por lei, o que justificaria o interesse público. Raciocínio que levaria à intervenção ministerial em todas as hipóteses previstas no extenso rol do art. 167 da Lei de Registros Públicos, o que não se poderia aceitar. A circunstância de interferir no âmbito registral, isoladamente, não caracteriza interesse suficiente para trazer o MP ao processo.

4.      Remessa conhecida e não acolhida.

 

1)  Relatório.

Trata o feito de ação de usucapião proposta por Sérgio Ricardo Bonvechio e sua esposa, relativamente a um lote de terreno urbano registrado no Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Santa Bárbara D’Oeste sob o n.º 52253, em área total de 134,75 metros quadrados.

 Logo após a inicial, foi dada vista à DD. Promotora de Justiça, que se manifestou a fls. 66/67, declinando de sua intervenção, argumentando que a demanda não envolve parcelamento ilegal do solo para fins urbanos, ou interesse de incapazes, não havendo, ainda, risco potencial de lesão a interesses sociais e individuais indisponíveis.

No curso da ação, diante de manifestação do Oficial de Registro de Imóveis da Comarca (fls. 79/83), levantou-se eventual irregularidade do imóvel, que ensejou manifestação do Promotor oficiante a fl.93, que passou a intervir no feito.

Citados e intimados os proprietários do imóvel, confrontantes e interessados (incluindo Prefeitura Municipal e Registro de Imóveis), foi novamente aberta vista ao Ministério Público a fls. 235.

Desta vez manifestou-se a DD. Promotora oficiante, asseverando que a questão de irregularidade do imóvel foi afastada, consignando que não se constatou parcelamento irregular do solo, mas desmembramento, com averbação e aprovação pelos órgãos municipais e pela CETESB. Reiterou a inexistência de interesse individual indisponível ou social e deixou de oferecer manifestação nos autos, afastando o interesse do Ministério Público na lide.

A MMa. Juiz de Direito determinou, então, a remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do CPP, a saber:

“Data venia”, discordo da manifestação de fls. 235/236 da representante do Ministério Público já que este é o fiscal da regularidade dos registros públicos e a presente ação refere-se a usucapião de imóvel de área e apuração de área superficial de 134,75 metros quadrados, inferior à metragem mínima estabelecida por lei, conforme apontado a fls. 79/83 pelo Oficial do Cartório de Registro de Imóveis. Assim, aplicando por analogia o disposto no artigo 28 do Código de Processo Penal, determino o envio dos autos ao Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo.”

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, em que pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 73.

A Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da CR/88).

Para exercer tais funções na esfera cível o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Carta, bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 129, II e III da CR/88).

Assim, embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel tradicional na esfera cível, ou seja, de intervir como custos legis em processos de natureza individual, é inegável que, por opção político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu o incremento de sua atuação, na condição de autor, em defesa de interesses de ordem coletiva em sentido amplo.

Em uma sociedade de massa, em que os conflitos se coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei, nos processos de natureza metaindividual. Sua atuação clássica como fiscal da lei, nos processos de natureza singular, deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

Em outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do Ministério Público, há se perscrutar se existe obrigação ou mera faculdade a partir de juízo discricionário, conforme a norma em foco. Se não se trata dos casos de obrigatória intervenção, mas, facultativa, pela presença de interesse público, será, então, indispensável aferir se estão presentes, no caso concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação nos moldes dos art. 127 e 129 da CR/88.

Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo, ou seja, pela identificação do pedido, iluminado pela causa de pedir.  É o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da intervenção está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 214/215).

No que toca à usucapião, insta observar que o direito das coisas sofreu profundas alterações nos últimos tempos. Se, por um lado, configurara o ramo do direito civil que por longo período mantivera-se fiel às tradições romanas, o fato é que a partir da segunda metade do século XX significativas mudanças alteraram a estrutura de seus institutos fundamentais, a começar pela construção da função social da propriedade.

Pode-se afirmar que as normas disciplinadoras das relações jurídicas referentes aos bens apropriáveis pelo homem passaram a apresentar significativa preponderância do interesse público sobre o privado. Da secular noção de que o proprietário tinha absoluto poder sobre seu imóvel, normas de convivência impuseram limites a este entendimento.

E não foi diferente com a usucapião.

Atualmente, existem diversas modalidades de usucapião e nesse contexto a intervenção do Ministério Público deverá ser feita em harmonia com a nova sistemática; veja-se que as modalidades de usucapião no ordenamento jurídico brasileiro são as seguintes: a) usucapião extraordinária (art. 1.238 do Código Civil); b) usucapião extraordinária com prazo reduzido (parágrafo único do art. 1.238 do Código Civil); c) usucapião ordinária (art. 1.242 do Código Civil); d) usucapião tabular ou usucapião documental (parágrafo único do art. 1.242 do Código Civil); e) usucapião constitucional urbana (art. 183 da Constituição Federal e art. 1.240 do Código Civil); f) usucapião constitucional rural (art. 191 da Constituição Federal e art. 1.239 do Código Civil); g) usucapião especial coletiva (art. 10 da Lei n. 10.257/2001); h) usucapião familiar (art. 1.240-A do Código Civil); i) usucapião administrativa e j) usucapião especial indígena (art. 33 da Lei n. 6.001/73).

Ao lado das tradicionais, nota-se do rol supra o surgimento de novas modalidades de usucapião, com importante impacto social. Exemplificativamente, a usucapião especial coletiva, regrada pelo art. 10 da Lei n. 10.257/01, estabelece nova categoria de regularização fundiária, com importantes reflexos na ordenação urbana, sobretudo porque implica aquisição coletiva de propriedade de forma originária, mediante copropriedade.

Outra novidade de grande relevo foi a extrajudicialização da usucapião nos casos previstos no art. 216-A, da Lei n. 6.015/73, acrescentado pelo Novo Código de Processo. A doutrina denomina essa nova modalidade de “usucapião administrativa”, justamente porque processada diretamente perante o cartório de registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado.

Se, por um lado, o direito material recrudesceu a importância da usucapião, o direito processual mostrou-se econômico no seu regramento. A Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (Novo Código de Processo Civil) não tratou especificamente da usucapião entre os procedimentos especiais.

Rememore-se que o CPC/73 reservou ao tema seara própria (arts. 941/945), impondo a intervenção do Ministério Público em todos os atos do processo de usucapião (art. 944). Restaram, agora, parcimoniosas alusões à matéria no Novo CPC, podendo-se mencionar o § 3º do art. 246, que afirma a necessidade de todos os confinantes serem citados pessoalmente na ação de usucapião de imóvel, exceto quando tiver por objeto unidade autônoma de prédio em condomínio, caso em que tal citação e dispensável. Outra referência à usucapião no diploma processual está no inciso I do art. 259, que determina a publicação de editais na ação de usucapião de imóveis.

Enquanto o Código de 1973 exigia a intervenção do Ministério Público em todos os atos do processo de usucapião (art. 944), o atual diploma silenciou não só quanto à participação ministerial, mas também no que concerne ao próprio rito procedimental. Daí ser possível a extração de duas conclusões:

a) a intervenção do Ministério Público nas demandas de usucapião não conta com previsão legal, de maneira geral, como ocorria com o CPC/73; cabe verificar, entre as diversas modalidades de usucapião previstas na legislação extravagante, se há obrigatoriedade de intervenção;

b) sem embargo da omissão, continua necessária a intervenção em qualquer ação de usucapião, desde que presente interesse público, social ou de incapaz.

Enfim, como visto, existem inúmeras modalidades de usucapião, algumas com expressa previsão de intervenção ministerial.  A usucapião especial de imóveis rurais, prevista na Lei n. 6.969, de 10 de dezembro de 1981, prevê, no § 5º do art. 5º, a obrigatória intervenção do Ministério Público em todos os atos do processo. No mesmo sentido o § 1º do art. 12 da Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade), que disciplina a ação de usucapião urbana:

“Na ação de usucapião especial urbana é obrigatória a intervenção do Ministério Público”.

Tem-se visto não ser incomum que magistrados discordem da racionalização ministerial em ações de usucapião, por vezes encaminhando os autos ao Procurador-Geral de Justiça em aplicação analógica ao art. 28 do Código de Processo Penal diante da recusa de intervenção, a fim de que se determine a manifestação do parquet; argumenta-se que a ação de usucapião de imóvel refere-se a imóvel com área inferior à metragem mínima estabelecida por lei, conforme noticiado pelo que justificaria o interesse público.

A despeito do sabor do argumento, que se pretende irrefutável, mencionado raciocínio levaria a que houvesse a intervenção ministerial em todas as hipóteses previstas no extenso rol do art. 167 da Lei de Registros Públicos, o que, evidentemente, não se poderia aceitar. De fato, referido dispositivo elenca os atos passíveis de registro e de averbação. Insisto: a prevalecer o raciocínio, não só na ação de usucapião deveria o promotor de justiça se manifestar, senão também na ação de instituição de bem de família voluntário. O exemplo por si só demonstra não ser esse o melhor entendimento. A circunstância de interferir no âmbito registral, isoladamente, não caracteriza interesse suficiente para trazer o MP ao processo.

No caso em exame, com a devida vênia em relação ao entendimento adotado pelo r. Juízo de direito, não há notícia de situação de fato, até o presente momento, justifique a intervenção ministerial no presente feito, e nem se trata de modalidade de usucapião com previsão legal de intervenção do Ministério Público.

3)  Decisão.

Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa e deixo de acolher as ponderações formuladas pelo Magistrado, declarando ser desnecessária a intervenção do Ministério Público no feito referido nesta decisão.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se.  Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 10 de agosto de 2018.

 

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

acs