Recusa de Intervenção

 

Protocolado MP nº 0086453/14 (Processo nº 0004773-51.2014.8.26.0664)

Interessado: Juízo de Direito da 1ª Vara da Comarca de Votuporanga

Objeto: Recusa de intervenção ministerial em ação de investigação de paternidade cumulada com anulação de registro de nascimento

 

Ementa:

1.   Recusa de intervenção. Ação de investigação de paternidade cumulada com retificação de registro. Órgão ministerial que, ao receber o feito com vista, recusa-se a intervir.

2.   A racionalização somente será possível quando, no caso concreto, o interesse jurídico subjacente não revelar hipótese que guarde relação com o novo perfil constitucional do Ministério Público. Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo, pela identificação do pedido, iluminado pela causa de pedir.

3.    Presença de fundamento da intervenção. Relação jurídica subjacente: declaratória de parentalidade cumulada com anulação de registro. Presença de interesse público, uma vez que a identidade genética configura direito fundamental, integrante do direito da personalidade, assim como o assento de registro objetiva garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos.

4.   Dirimida a questão, determinando-se a intervenção do Ministério Público, com designação de outro membro da instituição para prosseguir no feito.

 

 

1) Relatório.

Trata-se de ação de investigação de paternidade ajuizada por Aila Cristina Marcheto Silva em face de João Luiz Bruzadim, apontado na inicial como seu pai biológico (fls. 02/15).

Preliminarmente, a autora pleiteou o reconhecimento do litisconsórcio passivo necessário de Antonio de Souza Silva, na medida em que busca cumulativamente a anulação do registro e este consta no assento como seu genitor.

O membro do Ministério Público oficiante declinou de funcionar no processo; com efeito, aduziu que “tratando-se de partes maiores e capazes, com fundamento no art. 82 do CPC, deixo de intervir no feito” (fl. 25).

Diante de tal manifestação, o Juiz de Direito, discordando de tal entendimento, determinou a remessa dos autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça, uma vez que “também é objeto da demanda a retificação de registro público, o que torna obrigatória a intervenção do custos legis” (fl. 26).

 É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

A remessa para controle da negativa de intervenção ministerial no feito deve ser conhecida.

É pacífico o entendimento de que, em que pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle, realizado pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal. Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 73.

A Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput da CR/88).

Para exercer tais funções na esfera cível, o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Carta; bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 129, II e III da CR/88).

Assim, embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel tradicional na esfera cível, ou seja, de intervir como custos legis em processos de natureza individual, é inegável que, por opção político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu o incremento de sua atuação, na condição de autor, em defesa de interesses de ordem supraindividual.

Em uma sociedade de massa, em que os conflitos se coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei, nos processos de natureza metaindividual. Sua atuação clássica como fiscal da lei, nos processos de natureza singular, deve ser reservada apenas aos casos em que reste essencialmente indispensável sua presença.

Em outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária a intervenção do Ministério Público, não basta a interpretação literal do CPC ou a legislação extravagante: é indispensável verificar se estão presentes, no caso concreto, relevantes interesses que legitimem a atuação nos moldes dos art. 127 e 129 da CR/88, e do art. 82 do CPC.

Essa é a adequada compreensão, em perspectiva moderna, da afirmação doutrinária de que a atuação do MP como custos legis é ditada pela lei (cf. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, O Ministério Público no processo civil e penal, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p.12), desde que identificado o interesse público qualificado pela natureza da lide ou qualidade das partes (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime jurídico do Ministério Público, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 559).

Assim, fora dos casos em que há previsão específica de intervenção do MP (v.g. causas em que haja interesses de incapazes, as concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; e ainda nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural), é necessário compreender a dimensão dessa atuação fundada na cláusula genérica do interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte (art. 82, III do CPC).

Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo, ou seja, pela identificação do pedido, iluminado pela causa de pedir.

É o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da intervenção está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 214/215).

Pois bem.

No caso em exame, trata-se de ação de investigação de paternidade cumulada com anulação de registro. Definidos os contornos da demanda, deve-se ter presente que é sempre a partir da pretensão deduzida pelo autor que se pode extrair, em cada caso concreto, a existência ou não de fundamento para a intervenção ministerial. Esse é o correto entendimento da disposição legal que prevê a obrigatoriedade da atuação do parquet nos casos em que haja “interesse público evidenciado pela natureza da lide” (art. 82, III do CPC).

A esse propósito, anota Antônio Cláudio da Costa Machado que “a natureza da lide que evidencia o interesse público é o atributo de indisponibilidade que o ordenamento positivo haja outorgado à relação jurídica em torno da qual tenha surgido o litígio ou lide, e que tenha sido deduzida em juízo” (A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1998, p. 347).

Ao vincular a atuação do custos legis ao interesse público decorrente da natureza da lide, o legislador determinou que a identificação da hipótese de atuação é indissociável do mérito, ou seja, do objeto litigioso do processo, que é representado, como se sabe, pela pretensão deduzida em juízo, ilustrada pela causa de pedir (A propósito do conceito de mérito no processo civil, confira-se: Cândido Rangel Dinamarco, Fundamentos do processo civil moderno, São Paulo, RT, 1986, p. 182/220; Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, vol.1, 10. ed., São Paulo, RT, 2006, p. 424/425; Sydney Sanches, “Objeto do processo e objeto litigioso do processo”, Ajuris 16 [1979]).

No caso em exame, como bem notou o Magistrado oficiante, ao lado da questão da investigação da paternidade, há também o pleito de retificação de registro público.

Aliás, cumpre destacar que o Ato nº 313/03 - PGJ-CGMP, de 24 de junho de 2003, que dispõe sobre a racionalização da intervenção do Ministério Público no processo civil, dispõe em seu art. 3º, VI que fica facultada a intervenção ministerial em procedimentos de jurisdição voluntária, mas contém importante ressalva em relação aos procedimentos que envolvem matéria alusiva aos registros públicos.

O mesmo raciocínio se pode utilizar nas demandas declaratórias de parentalidade cumuladas com retificação de registro de nascimento.

Assim, nada obstante o entendimento do DD. Promotor de Justiça de Votuporanga, mostra-se apropriado o posicionamento adotado pelo DD. Juiz de Direito. Com efeito, o interesse jurídico subjacente revela hipótese que guarda relação com o novo perfil constitucional do Ministério Público, a exigir sua intervenção no feito.

3) Decisão.

Diante do exposto, e por analogia ao disposto no art. 28 do Código de Processo Penal, conheço da remessa para acolhê-la, determinando que ocorra a intervenção ministerial no feito em epígrafe, com designação de outro membro da instituição para prosseguir no feito.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

Restituam-se os autos à origem.

  São Paulo, 24 de junho de 2014.

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

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