Recusa de Intervenção

 

Protocolado n. 99.134/14

Processo n. 0001258-03.2014.8.26.0116

Medida de Proteção à Criança e ao Adolescente (Acolhimento Institucional)

2ª Vara de Campos do Jordão

 

 

 

 

Ementa: Recusa de Intervenção. Medida de proteção à criança e ao adolescente. Institucionalização. Requerimento de instauração de procedimento verificatório. Desnecessidade previamente afirmada pelo membro do Ministério Público do ajuizamento de ação pela recusa de parentes à guarda do adolescente. Exigibilidade de procedimento judicial contencioso assegurando contraditório e ampla defesa. Remessa conhecida e provida. 1. É inidôneo requerimento de instauração de procedimento verificatório - lastreado em manifestação que reputa desnecessária ação de acolhimento pela recusa de parentes à guarda do adolescente – para institucionalização de adolescente, pois, o ECA (art. 101, § 2º) exige procedimento judicial contencioso, assegurando contraditório e ampla defesa aos pais ou responsáveis legais, através do manejo de pedido que atenda a imposição normativa. 2. Conduta que significa recusa da atuação. 3. Remessa conhecida e provida para se requerer a instauração de procedimento judicial contencioso, no qual se garanta aos pais ou ao responsável legal o exercício do contraditório e da ampla defesa, designando outro membro do Ministério Público, para prosseguir nos autos e apresentar as manifestações cabíveis.

 

 

 

                O ilustre Promotor de Justiça de Campos do Jordão, Doutor Jamil Luiz Simon, requereu, com lastro em provocação do Conselho Tutelar, a instauração de procedimento verificatório para aplicação de medida pertinente a adolescente em situação de risco e abrigado, ressaltando expressamente que “não há necessidade de ação de acolhimento porque há recusa de parentes em ter o adolescente sob sua guarda”.

                O douto Juízo de Direito representa para avaliação da indicação de substituto para promoção da ação de acolhimento institucional, salientando sua necessidade à luz dos arts. 101, § 2º, e 153, parágrafo único, da Lei n. 8.069/90 na redação dada pela Lei n. 12.010/09.

                É a breve sinopse.

                Pacífico o entendimento de que, em que pese a independência funcional do Ministério Público, a recusa de intervenção é passível de controle pelo Procurador-Geral de Justiça, por analogia do art. 28 do Código de Processo Penal, como explica a literatura (Hugo Nigro Mazzilli. Manual do Promotor de Justiça, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia. Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 73). Embora os membros do Ministério Público gozem da independência funcional - que lhes isenta de qualquer injunção quanto ao conteúdo de suas manifestações - são administrativamente vinculados aos órgãos superiores que, no plano estritamente administrativo, possuem, em relação àqueles, poderes que caracterizam a Administração Pública como o hierárquico, disciplinar, normativo etc.

                O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas, pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação. Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer em princípio como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro que o fará, diante de situações de incerteza concretamente configurada quanto às atribuições dos órgãos ministeriais de execução envolvidos, ou mesmo diante da recusa de atuação – possibilidade que se embasa na aplicação analógica do art. 28 do Código de Processo Penal e no art. 181, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente – exatamente porque o Parquet é detentor de legitimidade ativa.

                Os elementos evidenciam que o Ministério Público requereu a instauração de procedimento verificatório justificando a desnecessidade do ajuizamento de ação de acolhimento.

                De ordinário, o objeto cognoscível da recusa de atribuição é relacionado à negativa da atuação do membro do Ministério Público, não devendo, todavia, incidir sobre a qualidade (isto é, o modo de intervenção).

                Tenho reiteradamente negado acolhimento à remessa que discute a forma de atuação ou intervenção, como pontuado no seguinte precedente:

“Das peças encaminhadas à Procuradoria-Geral de Justiça não consta qualquer manifestação do membro do Ministério Público oficiante na comarca de Carapicuíba no sentido de sua não intervenção no feito.

Pelo que se pode depreender, houve discordância da Juíza de Direito ao teor da manifestação ministerial, pois, na visão da Ilustre Magistrada, ‘em que pese decorrido mais de um anos (sic) desde a propositura da ação, até o momento não foi proposta a ação de destituição do poder familiar pelo Ministério Público’ (fl. 166).

Ora, não se pode acolher a argumentação no sentido de que teria havido recusa de intervenção.

Frise-se que na espécie em análise o parecer ministerial pode ou não ser acolhido pelo Magistrado. Em contrapartida, a decisão judicial pode ou não ser acatada pelo Promotor de Justiça que, no caso de eventual discordância, pode e deve valer-se dos recursos cabíveis.

Se não houve propriamente recusa à intervenção, a remessa não pode ser conhecida.

Elucidativa, a propósito, a lição de Hugo Nigro Mazzilli (Regime Jurídico do Ministério Público, 6. Ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 489):

‘Se não faltou o ato ministerial, que está nos autos, mas o juiz cível discorda da forma ou do conteúdo do ato efetivamente apresentado pelo membro do Ministério Público, aí não haverá razão para invocar o art. 28 do Código de Processo Penal, em imprópria analogia com o sistema de controle de arquivamento do inquérito policial. (...) no caso ora em exame, não há como falar em inércia. Não se entendesse assim, e qualquer juiz ou tribunal, discordando do parecer do órgão ministerial, poderia propor ao procurador-geral o reexame do ato ou a substituição do membro do Ministério Público, o que seria uma forma inadmissível de contornar os princípios do promotor natural e da independência funcional.’

Com a devida vênia, esse entendimento doutrinário é inteiramente aplicável ao caso em exame.

Trata-se, pois, de divergência que diz respeito à qualidade (modo de intervir) da intervenção, e não quanto a esta.

Com o devido respeito ao entendimento do r. Juízo, não consta dos autos qualquer manifestação do Ministério Público se recusando à intervenção.

 Ademais, insta rememorar que cabe ao Promotor de Justiça a análise do momento oportuno para a propositura da demanda.

Se, por um lado, o princípio hierárquico, que anima toda e qualquer organização administrativa – inclusive o Ministério Público – justifica o controle quando da indevida negativa de atuação do membro do parquet, é necessário que esta reste devidamente caracterizada, sob pena de configuração da usurpação de atribuição e consequentemente da própria independência funcional, princípio institucional assentado no art. 127, § 1º, da Constituição Federal” (Protocolado n. 13.244/13).

                   É certo, ainda, que já foi decidido pela Procuradoria-Geral de Justiça:

“Além de saber se é o caso ou não de intervir, é necessário verificar, também, como deve se dar tal intervenção.

Em outras palavras, a qualidade da intervenção Ministerial é questão cuja solução é imprescindível quando a dúvida concreta se apresenta” (Protocolado n. 36.353/09).

                No caso em exame, o douto Juiz de Direito bem poderia simplesmente indeferir o requerimento deduzido pelo digno membro do Ministério Público e este, se insatisfeito, recorrer. Ou, data venia, imprimir ao feito a natureza contenciosa que a lei determina, como adiante exposto.

                Essa solução, entretanto, não resolveria a questão de direito material subjacente ao conflito entre as autoridades judiciária e ministerial, considerada, in casu, a legitimidade ativa do parquet e a observação contida no requerimento consistente na “recusa de parentes em ter o adolescente sob sua guarda”.

                Porém, a postura do ilustre Promotor de Justiça substancia conduta que significa recusa da atuação. Com efeito, ele não se nega a atuar, mas, o faz sob forma que o juiz entende inadequada. Não se tratou de avaliação do momento oportuno de agir, senão do modo inábil.

                Efetivamente, o art. 101, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que:

“Sem prejuízo da tomada de medidas emergenciais para proteção de vítimas de violência ou abuso sexual e das providências a que alude o art. 130 desta Lei, o afastamento da criança ou adolescente do convívio familiar é de competência exclusiva da autoridade judiciária e importará na deflagração, a pedido do Ministério Público ou de quem tenha legítimo interesse, de procedimento judicial contencioso, no qual se garanta aos pais ou ao responsável legal o exercício do contraditório e da ampla defesa”.

                E o art. 153, parágrafo, assim dispõe:

“Art. 153. Se a medida judicial a ser adotada não corresponder a procedimento previsto nesta ou em outra lei, a autoridade judiciária poderá investigar os fatos e ordenar de ofício as providências necessárias, ouvido o Ministério Público.

Parágrafo único.  O disposto neste artigo não se aplica para o fim de afastamento da criança ou do adolescente de sua família de origem e em outros procedimentos necessariamente contenciosos”.

                Em outra oportunidade, assim foi decidido por esta Procuradoria-Geral de Justiça:     

“16.            Para os efeitos do art. 101, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, não se requisita ao Ministério Público a oferta de petição inicial visando ao acolhimento institucional com os requisitos do art. 282 do Código de Processo Civil ou do art. 156 do Estatuto da Criança e do Adolescente, como estimou o douto Juízo de Direito, bastando, como alvitrado pelo ilustre Promotor de Justiça, o próprio procedimento em curso, desde que se garanta o contraditório e a ampla defesa” (Protocolado n. 26.357/14).

                Amparado nestas premissas, havendo o douto Promotor de Justiça expressamente ingressado com pedido – instauração de procedimento verificatório – inidôneo para institucionalização do adolescente, afigura-se a adoção de expediente similar à recusa do exercício de atribuição.

                Reitero que se para tanto basta pedido que, mesmo sem as dimensões do art. 156 do Estatuto da Criança e do Adolescente, seja hábil ao provimento jurisdicional adequado (institucionalização), contenha o imprescindível requerimento de citação para garantir aos pais (não há prova da recusa da guarda pelo pai, mercê do óbito da mãe) ou ao responsável legal (há notícia de irmã que por ele recebe pensão e que pode ser tutora) o exercício do contraditório e da ampla defesa – o que não ocorreu in casu, de modo a frustrar a efetiva proteção ao adolescente – para atendimento da exigência de procedimento judicial contencioso.                         

                Diante do exposto, conheço da remessa, e a provejo para determinar a atuação no feito em epígrafe a fim de se deduzir procedimento judicial contencioso, no qual se garanta aos pais ou ao responsável legal o exercício do contraditório e da ampla defesa, nos termos do § 2º do art. 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

                Providencie-se designação de outro membro do Ministério Público, para prosseguir nos autos e apresentar as manifestações cabíveis, caso ainda atue no referido cargo o membro da instituição que se negou.

                Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos, com as cautelas de estilo.

                Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional.

 

                São Paulo, 14 de julho de 2014.

 

 

 

Márcio Fernando Elias Rosa

Procurador-Geral de Justiça

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