Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº 38.0715.0005843/2017
Protocolo nº 0016495/18
Suscitante: 2º
Promotor de Justiça Auxiliar de Bauru (saúde pública)
Suscitado: 2º Promotor
de Justiça Cível de Bauru (pessoas com deficiência)
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 2º Promotor de Justiça Auxiliar de Bauru. Suscitado: 2º Promotor de Justiça Cível de Bauru – Pessoa com Deficiência.
2. Notícia de fato para eventuais medidas de proteção a pessoa incapaz em razão de esquizofrenia, em situação de rua e de abandono familiar, que pode necessitar de internação involuntária ou compulsória.
3. A Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência (ratificada pelo Decreto Legislativo nº 186/08 e promulgada pelo Decreto nº 6.949/09) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/15, art. 2º) promoveram a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual.
4. À luz da nova legislação, a definição de pessoa com deficiência não é estabelecida sob o ponto de vista exclusivo do impedimento (físico, mental, intelectual ou sensorial), mas sim pela existência de dificuldade, de longo prazo, que a impeça de se relacionar com o ambiente no qual se encontre.
5. Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitado prosseguir na investigação.
1) Relatório.
Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 2º Promotor de Justiça Auxiliar de Bauru, que estava assumindo atribuições relativas à saúde pública, e como suscitado o DD. 2º Promotor de Justiça de Bauru, que atua na tutela da pessoa com deficiência.
Conforme se depreende dos autos, o Ministério Público Federal encaminhou ao Ministério Público Estadual peças que foram autuadas como “notícia do fato”, que continham pedido para a internação voluntária de Daniela Jeniffer Ferreira da Silva, 30 anos de idade.
Os documentos enviados davam conta de que a jovem era moradora de rua, portadora de esquizofrenia (CID F20), hepatite B (CID 10) e dependência química (CID F19). Indicavam que Daniela, desde os 12 anos de idade, era usuária de substâncias entorpecentes e que a família, embora tivesse buscado auxiliá-la, afirmava não ter mais condições para tanto. Além disso, apontavam que, nada obstante os órgãos municipais já tivessem conseguido vaga para a sua internação em hospital psiquiátrico, a jovem relutava em seguir tratamento e permanecia residindo em casa abandonada, com “fezes e entulhos, sem condições cognitivas de entender o que se passa ao seu redor”. Fora recomendada a internação involuntária da jovem (fls. 02/16).
Ao receber os autos, o 2º Promotor de Justiça de Bauru entendeu que a atribuição, no caso em tela, competia ao Promotor de Justiça da Saúde Pública. Frisou que, na hipótese dos autos, não havia impedimento que obstruísse a manifestação de vontade ou a interação com o meio, mas apenas resistência/não aderência a tratamento. Concluiu, portanto, que o objeto da demanda era a saúde mental (fls. 17/20).
O 2º Promotor de Justiça Auxiliar de Bauru que recebeu o expediente suscitou, contudo, conflito de atribuição. Ressaltou que os documentos evidenciavam impedimento de natureza mental de longo prazo e situação de risco, em razão do afastamento de Daniela da sua genitora. Afirmou que, por conseguinte, o caso deveria ser assumido pelo Promotor de Justiça que atua na tutela das pessoas com deficiência (fls. 26/27).
É a síntese do necessário.
2) Fundamentação.
O conflito negativo
de atribuições está configurado e, pois, comporta admissibilidade.
A questão demanda
análise cuidadosa, sendo oportuna em virtude do advento da Lei Brasileira de
Inclusão, qual seja, a Lei nº 13.146/15.
Com efeito, o conceito de pessoa com
deficiência, estabelecido pela Lei Brasileira de Inclusão, é o mesmo
estabelecido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
(2007) e seu Protocolo Facultativo, que foram ratificados
pelos Congresso Nacional através do Decreto Legislativo nº 186/08, nos termos
do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal e promulgados pelo Decreto nº
6.949/09.
Uma das modificações
relevantes estabelecidas pela nova lei envolveu a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com
deficiência como categoria diversa da deficiência intelectual, conceitos que até então se identificavam no
regramento interno.
Com efeito, o Decreto nº 3.298/99, responsável por regulamentar a
Lei nº 7.853/89, dispondo sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência, estabelecia o seguinte conceito de
deficiência mental no art. 4º, IV:
“IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:
a) comunicação;
b) cuidado pessoal;
c) habilidades sociais;
d) utilização da comunidade;
d) utilização dos recursos da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)
e) saúde e segurança;
f) habilidades acadêmicas;
g) lazer; e
h) trabalho;
Desse modo, antes da Convenção
Internacional e da Lei Brasileira de Inclusão, a “deficiência mental” identificava-se, por definição legal, com o
atraso intelectual ou com o desenvolvimento mental incompleto, o que, hodiernamente,
está inserido no conceito de “deficiência
intelectual”.
As expressões até então se equivaliam e
diziam respeito às pessoas com desenvolvimento mental intelectual inferior à
média, razão pela qual era comum inserir nessa categoria (de “deficiente mental”)
os autistas, por exemplo.
Porém, a Convenção e a LBI diferenciaram o
impedimento (de longo prazo) de ordem intelectual
do impedimento de ordem mental,
admitindo que se enquadre no conceito de pessoa com deficiência tanto aquele
que possua doença ou transtorno - tais como esquizofrenia, transtorno bipolar,
etc - desde que o referido impedimento mental
seja de longo prazo e, em interação
com uma ou mais barreiras, obstrua sua participação plena e efetiva na
sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.
Destaque-se que o novo diploma legal,
espelhado na Convenção Internacional, trouxe
relevante inovação de ordem principiológica, porquanto passou a
estabelecer que a definição de pessoa com deficiência não deve ser analisada
sob o ponto de vista único do impedimento físico, mental, intelectual ou
sensorial, isto é, com base exclusivamente na falta de um membro ou sentido, na
existência de doença ou transtorno mental ou de atraso intelectual, mas sim pela presença de barreiras ou dificuldades que
a impeçam de se relacionar, de se integrar na sociedade, isto é, de se ver incluída
socialmente.
Atualmente, portanto, a
definição de quem é ou não pessoa com deficiência se mede pelo grau de
dificuldade para a inclusão social e não pela limitação de ordem física,
mental, intelectual ou sensorial que o indivíduo possui.
Por isso, restou absolutamente superada a
linha conceitual que norteava a legislação anterior, notadamente o Decreto nº
3.298/99, no sentido de definir a pessoa com deficiência com base apenas na
patologia ou na incapacidade que apresenta prevista em lei.
O novo conceito de pessoa com deficiência não
estabelece causas, tendo conteúdo amplo, ligado à relação da pessoa com a
deficiência que a acomete.
Desse modo, pode-se
afirmar que Decreto nº 3.298/99 só poderá ser adotado se for para beneficiar a
inclusão e não para promover exclusão. Se a sua utilização causar qualquer
empecilho à implementação do conceito fixado pela Convenção, será tido como
inconstitucional.
Deveras, a
proteção trazida pela Convenção Internacional e, agora,
pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15), passou
a imprimir a marca da anormalidade não mais à pessoa e sim ao grau de
dificuldade de sua interação com o ambiente na qual se encontre.
Assim, caso determinada
pessoa não se encaixe em qualquer das causas enumeradas pelo Decreto, não
poderá de imediato ser desconsiderada como pessoa com deficiência, já que ela
poderá se encaixar no conceito amplo da Convenção.
Além disso, a verificação da existência e do grau de
dificuldade deverá ser feito em cada caso concreto. De fato, há pessoas que possuem algum tipo de
impedimento de ordem física, mental, sensorial ou intelecutal, mas que não
encontram nenhum tipo de barreira, problema de adaptação ou dificuldade de
integração social, não podendo, por isso apenas, ser enquadradas no conceito de
pessoa com deficiência.
Uma pessoa que possua
doença mental, portanto, não pode, apenas por esse fato, ser enquadrada como
pessoa com deficiência, sendo necessário analisar, no caso concreto, a
existência ou não de dificuldade de interação com o ambiente em que vive, bem
como as condições na qual se encontre.
Assim, aquele que tem esquizofrenia
mas que esteja amparado pela família e submetido a tratamento médico eficaz e
que, a despeito da doença mental, consegue ter uma vida produtiva, não pode, a priori, ser enquadrada como pessoa com
deficiência.
O mesmo se diga com
respeito à pessoa que possua adoecimento ou transtorno psíquico mais leve, como
quadro depressivo ou ansioso, reativos de caráter mais psicológicos ou
alcoolismos leves, casos que não geram por si só seu enquadramento como pessoa
com deficiência.
Já aquele que seja
acometido por doença ou transtorno mental e que não tenha suporte familiar, que
não esteja recebendo tratamento médico eficiente e que encontre dificuldades de
interação com o meio social em que vive, poderá, nessas condições, ser
considerado pessoa com deficiência.
Colocadas essas premissas,
a solução dos conflitos de atribuição envolvendo Promotores de Justiça que
tutelam, respectivamente, a pessoa com deficiência e a saúde pública deve
ocorrer à luz da inovação legislativa promovida pela Convenção e pela Lei
Brasileira de Inclusão.
De fato, a tutela daquele que possui transtorno ou
doença mental de longo prazo e que, por conta disso, encontre dificuldades de
participação plena social, em condições de igualdade com os demais, em
determinado caso concreto, poderá ser enquadrado como pessoa com deficiência,
exigindo, por consequência, a tomada de providências da Promotoria de Justiça
da Pessoa com Deficiência.
Desse modo, o
doente/portador de transtorno mental, quando
deficiente, nos termos da Convenção da Lei Brasileira de Inclusão, deve ser
tutelado individual e coletivamente pela Promotoria da Pessoa com Deficiência.
De outro lado, a
tutela daquele que possui doença/transtorno mental, mas que não enfrenta, no
caso concreto, obstáculos e impedimentos de longo prazo para plena participação
social, não podendo, dessa forma, ser enquadrado no conceito de pessoa com
deficiência, v.g. os casos que envolvam quadros depressivos, quadros de
ansiedade, alcoolismo leve e toxicomania isolada, estão dentro da esfera de
atribuição da Promotoria de Justiça da Saúde Pública, desde que demandem a
requisição de cuidados na Rede de Saúde Mental, desde a atenção básica ao
suporte dos Centros de Atendimento Psicossocial.
No caso específico dos autos, os elementos constantes
do procedimento indicam que a pessoa portadora de esquizofrenia, dependente
química, sem suporte familiar e que não está aderindo a tratamento médico
encontra dificuldades de interação com o meio social em que vive, podendo desta
forma ser considerado pessoa com deficiência.
A interessada
possui, portanto, impedimento de natureza mental, de longo prazo, estando
atualmente em situação de abandono familiar que possa ampará-la no tratamento
médico adequado, o que acaba por obstruir sobremaneira as chances de gozar de
participação social efetiva.
Assim, à luz dos elementos especificamente colhidos nesse procedimento, pode-se concluir que o feito deve seguir sob a presidência do 2º Promotor de Justiça de Bauru com atribuição na área da pessoa com deficiência.
3) Decisão
Diante do exposto,
conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento
no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao
suscitado, DD. 2º Promotor de Justiça de Bauru – Pessoa com Deficiência, a atribuição para oficiar e tomar a
providências cabíveis no presente procedimento.
Publique-se a ementa.
Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.
Providencie-se a
remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de
Tutela Coletiva.
São Paulo, 05 de março de 2018.
Walter Paulo Sabella
Procurador-Geral de Justiça
- em exercício –
pss