Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº  3113/2018

Suscitante: 14º Promotor de Justiça de Sorocaba

Suscitado: 15º Promotor de Justiça de Sorocaba

 

 

Ementa:

1.      Conflito negativo de atribuições. 14º Promotor de Justiça de Sorocaba (suscitante) e 15º Promotor de Justiça de Sorocaba

2.      Representação para apurar a responsabilidade das empresas envolvidas nas irregularidades nos contratos de merenda escolar no município. Ação Civil Pública proposta pelo 14º Promotor de Justiça de Sorocaba sem que houvesse instauração e inquérito civil ou procedimento preparatório de inquérito civil, em relação aos servidores municipais relacionados aos fatos apontados no relatório da Corregedoria Geral do Município de Sorocaba. No caso de conflito entre Promotores de Justiça dotados de idêntica atribuição, integrantes da mesma unidade especializada, curial siga a investigação sob o manto do mesmo membro do Ministério Público, sendo recomendável a difusão somente quando inconveniente ou se cuidar de fatos desconexos ou diversos. Mencionado entendimento permite que o fato seja apurado em sua completude, com a necessária coesão nas condutas adotadas pelo Ministério Público.

3.      Ação civil pública instaurada ainda não julgada. Contextos fático e temporal conexos de modo a impor o critério da prevenção para determinar a atribuição do órgão ministerial, haja vista o proveito na obtenção de elementos probatórios e aproveitamento da instrução.

4.      Conflito conhecido e dirimido. Atribuição do 14º Promotor de Justiça de Sorocaba (suscitante) para instauração do inquérito civil para apuração dos fatos.

Vistos,

1)  Relatório.

Consta dos autos que o 14º Promotor de Justiça de Sorocaba (suscitante), determinou a distribuição livre da representação nº 3113/18, enviada pela Corregedoria Geral do Município de Sorocaba por meio do ofício nº 139/CGM/2018.

A representação, então, foi encaminhada para o 15º Promotor de Justiça de Sorocaba que, entendendo ser o 14º Promotor de Justiça o “promotor do fato”, por ter proposto a Ação Civil Pública nº 1011838-33.2018.8.26.0602, em curso na Vara da Fazenda Pública da Comarca de Sorocaba, tendo por demandados os servidores municipais envolvidos nas irregularidades relacionadas à merenda escolar, determinou a remessa da representação nº 3113/18 ao 14º Promotor de Justiça de Sorocaba, por tratar a  representação de desdobramentos do processo administrativo CPL n° 12/16 que ensejou a propositura da Ação Civil Pública, acima mencionada, pelo 14º Promotor de Justiça.

O 14º Promotor de Justiça de Sorocaba, ao receber os autos, suscitou o presente conflito negativo de atribuições. Sustenta não haver qualquer procedimento instaurado na 14º Promotoria de Justiça de Sorocaba envolvendo a matéria “merenda escolar”, sendo que a única informação recebida (Ofício nº 030/CGC/2018, de 15 de fevereiro de 2018, da Corregedoria Geral do Município de Sorocaba) ensejou, de imediato, a mencionada Ação Civil Pública que trata, exclusivamente, da responsabilidade dos servidores municipais que, em tese, teriam descumprido o dever de fiscalizar em relação a contrato administrativo de fornecimento de merenda escolar no município, no ano de 2017.

Afirma que em relação às empresas envolvidas no contrato administrativo houve nova representação da Corregedoria Geral do Município que, por equívoco, fez encaminhamento nominal ao 14º Promotor de Justiça quando o correto teria sido a remessa à Secretaria Executiva, para distribuição.

Entende que por inexistir qualquer investigação em curso na 14ª Promotoria de Justiça de Sorocaba relacionada ao tem “merenda escolar”, não há prevenção no presente caso, pois se trata de nova representação encaminhada pelo mesmo órgão fiscalizador do Município de Sorocaba (fls. 17/18).

É o relato do essencial.

2)  Fundamentação.

Está configurado, no caso, o conflito de atribuições.

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto.

Insta considerar, inicialmente, que a reunião de feitos em razão da prevenção decorrente da conexão ou continência tem como razão de ser a economia processual, com o aproveitamento da prova, a maior probabilidade de acerto na solução final, evitando-se conflitos lógicos entre decisões.

Guardadas as devidas adaptações, essas ideias são aplicáveis também às hipóteses de reunião de inquéritos civis por prevenção decorrente de conexão ou continência, que tem por objetivo otimizar a investigação e, num segundo momento, evitar soluções logicamente conflitantes nas eventuais ações civis públicas, ou mesmo diante da circunstância de haver o membro do Ministério Público já apreciado questão relativa ao mesmo objeto ou a ele conexo.

No mesmo diapasão, o pensamento clássico externado por Giuseppe Chiovenda (Instituições de direito processual civil, 2ºvol., 2ªed., trad. J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.215 e ss), ressaltando, entretanto, a imposição de limites sistemáticos à união de feitos, como por exemplo, na hipótese em que um dos feitos tramita em segundo grau de jurisdição (op. cit., p.224).

Pode-se mesmo afirmar, sem temor, que a conveniência é critério determinante para aferir se, em determinada hipótese, deverá ou não ocorrer a reunião de feitos conexos em razão da prevenção. Se uma de suas finalidades é a economia processual, e se no caso específico esta não terá lugar, dever-se-á evitar a reunião.

É bem verdade que boa parte da doutrina reconhece na regra que prevê a reunião de feitos em razão da conexão ou continência uma imposição, e não uma faculdade (Nesse sentido, v.g., Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, vol.I, 11ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p.350, em comentários ao art.105 do CPC; bem como Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código de processo civil comentado, 10ª ed., São Paulo, RT, 2008, p.362, nota n.7 ao art.105 do CPC).

Mas, com o devido respeito, essa posição não pode ser aplicada em termos absolutos. A interpretação das regras processuais e procedimentais não pode perder de vista seus fins. Se a aplicação de uma norma determinada leva a resultado diverso daquele que inspirou sua edição, deve ser mitigada sua incidência. Nesse sentido, pondera Patrícia Miranda Pizzol, ao comentar o art.105 do CPC, afirmando que a não observância da regra determinante da reunião de feitos conexos não deve levar ao reconhecimento de qualquer vício processual, “se o tribunal verificar que, muito embora havendo conexão, a sentença proferida, por seu conteúdo, não tem o condão de causar lesão às partes, uma vez que não há o risco de julgados contraditórios, o pronunciamento não deverá ser anulado. Pode-se fundamentar o entendimento ora esposado no princípio da instrumentalidade das formas, bem como na súmula nº 235 do STJ” (Código de Processo civil interpretado, coord. Antônio Carlos Marcado, São Paulo, Atlas, 2004, p.301).

Aliás, nesse sentido tem decidido o E. STJ, como se infere do julgado cuja ementa segue transcrita, a título de exemplificação:

 “Processo civil. Conexão. Margem de discricionariedade do juiz. Sociedade de Economia Mista. Competência da Justiça Estadual. Processamento do recurso. Não conhecimento. Segundo orientação predominante, o art.105, CPC, deixa ao juiz certa margem de discricionariedade na avaliação da intensidade da conexão, na gravidade resultante da contradição de julgados e, até, na determinação da oportunidade da reunião de processos (...) (STJ, RESP 5.270/SP, 4ªT., rel. Min. Sálvio  de Figueiredo Teixeira, j. 11.2.1992, DJU 16.3.1992, p.3100).

Essa é, também, a essência do fundamento que ensejou a edição da súmula acima mencionada, no E. STJ:

“Súmula nº 235: A conexão não determina a reunião dos processos se um deles já foi julgado”.

A interpretação sistemática também legitima tal conclusão. Sabe-se que um dos fundamentos do litisconsórcio é, em observação singela, a conexão entre as demandas cumuladas pelos litisconsortes. Em outras palavras, fossem elas propostas separadamente, seria, em tese, viável a reunião, desde que identificada a conexão. Entretanto, a lei abre ensejo para solução contrária, na hipótese do denominado “litisconsórcio multitudinário”, previsto no art. 46, parágrafo único, do CPC. Como prevê referido dispositivo, “o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa”.

Defendendo o acerto do legislador ao prever a possibilidade de limitação ao litisconsórcio, pondera Cândido Rangel Dinamarco que “a conveniência do cúmulo termina, porém, onde começam os embaraços mais graves, que o número muito grande de litisconsortes pode ocasionar” (Litisconsórcio, 3ªed., São Paulo, Malheiros, 1994, p.347).

Assim, é possível afirmar, por identidade de razões, que se a reunião de procedimentos investigatórios ou de ações conexas levará à inviabilidade do proveito prático desejado, dever-se-á evitar a junção de feitos. Também a interpretação analógica e extensiva levaria à solução aqui propugnada, bastando consultar a solução contida, ao propósito, na legislação processual penal.

Conexão e continência são determinantes da reunião de feitos criminais, com ressalvas, contudo, que incluem a conveniência (cf. art.80 e 82 do CPP). Tais ideias, singelamente alinhavadas, são inteiramente aplicáveis à análise da pertinência da reunião, ou não, de investigações civis a respeito de casos que apresentem, em maior ou menor grau, conexão de qualquer sorte, ainda que probatória.

Em síntese: (a) a regra da prevenção, como forma de definição de competência jurisdicional ou atribuição de órgãos ministeriais não é absoluta; (b) sua aplicação não pode descurar de valores mais relevantes, em especial, a preservação da garantia da inamovibilidade, e a regra do promotor natural; (c) não se deve promover a reunião de feitos por prevenção quando isso significar, em prognóstico formulado com amparo em peculiaridades do caso concreto, risco de maiores dificuldades que vantagens tanto para a investigação, como para ulterior ação em juízo.

Daí a conclusão de que, na hipótese em exame, a atribuição para a investigação é do suscitante.

De fato, do cotejo entre os fatos apurados no presente inquérito civil e aquele objeto da Ação Civil Pública proposta, que demanda os servidores municipais envolvidos em razão de descumprimento do dever de fiscalização em relação ao contrato administrativo de fornecimento de merenda escolar no município de Sorocaba, no ano de 2017, não há como se deixar de reconhecer a conexão entre eles.

As irregularidades, objeto da presente apuração, deram ensejo à propositura da Ação Civil Pública objetivando a responsabilização dos servidores municipais pela falha da fiscalização.

Diante da complexidade dos fatos, das pessoas envolvidas e das consequências jurídicas (anulação dos contratos, responsabilização das empresas nas irregularidades administrativa etc..), não se pode afirmar, a princípio, que os fatos em apuração deveriam estar inseridos na Ação Civil Pública proposta.

É possível desmembramento para apuração da subsunção do ato a outras espécies de atos de improbidade administrativa em concurso ou não.

Sob a ótica da otimização da apuração, economia processual, aproveitamento e facilidade na obtenção da prova é razoável, conveniente e oportuno que a investigação prossiga com o suscitante, haja vista que detém pleno conhecimento dos fatos conexos objeto da ação civil pública e que determinaram também a instauração do processo administrativo na Corregedoria Geral do Município que ocasionou a presente representação.

Não tendo sido julgada a Ação Civil Pública proposta, inaplicável a adoção do entendimento fixado na Súmula 235 do STJ.

Não é caso de afastamento da conexão como critério para dirimir o presente conflito, pois o importante ao conferir a atribuição para a investigação ao suscitante reside nos benefícios para a apuração decorrente de sua prévia e atual atuação na ação civil pública que tem por objeto fatos conexos.

Com o devido respeito ao entendimento esposado pelo suscitante, não se pode firmar o entendimento no sentido de que os objetos da Ação Civil Pública e da representação são diversos.

A representação nº 43.0712.0000829.2018-9, que deu ensejo à Ação Civil Pública (processo digital nº 1011838-33.2018.8.26.0602), decorrente do processo administrativo do CPL nº 12/16, versa sobre descumprimento pelos servidores municipais do dever de fiscalização em relação ao contrato administrativo de fornecimento de merenda escolar no município de Sorocaba, no ano de 2017, e a representação nº 3113/2018 aponta evidências de fraude à licitação e de dano ao erário com efetiva participação de agentes públicos, em maior ou menor grau de responsabilidade, por conduta comissiva ou omissiva, dolosa ou culposa para a concretização das irregularidades. O contexto, não se pode negar, é conexo.

No caso de conflito entre Promotores de Justiça dotados de idêntica atribuição, a análise conjugada dessas regras abona a reunião da investigação, desmembrada ou não, no mesmo membro do Ministério Público, sendo recomendável a difusão quando inconveniente ou se cuidar de fatos desconexos ou diversos.

Registro, por derradeiro, que este entendimento guarda sintonia com precedente cuja ementa é a seguinte:

“1) Conflito negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado).

2) Inquérito civil com objeto amplo. Desmembramento, para apuração de parte do objeto já investigado.

3) Adequada exegese da garantia da inamovibilidade e do princípio do promotor natural. Regra procedimental que prevê a distribuição, como mecanismo de preservação da garantia e do princípio acima referidos.

4) Relatividade da diretriz de reunião de feitos em decorrência da conexão.  Possibilidade de desmembramento, por conveniência da investigação, prosseguindo em cada inquérito civil a apuração de fatos diversos.

5) Prevenção, nos termos do art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93, do órgão de execução que já vinha investigando os fatos objeto do inquérito civil desmembrado.

6) Conflito conhecido e dirimido, determinando-se ao suscitado prosseguir na apuração” (Protocolado n. 133.825/09). 

Esta orientação, inclusive, foi reafirmada (Protocolados nº 174.798/13 e nº 98997/15).

Assim, de rigor, que a investigação prossiga sob a presidência do suscitante, mesmo porque atua em ação que tem objeto contextos fático e temporal conexos, com probabilidade de aproveitamento de elementos probatórios.

3)  Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao 14º Promotor de Justiça de Sorocaba prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 20 de julho de 2018.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

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