Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 0107676/2018

Representação Civil SIS/MP 43.0725.0000922/2018-4

Suscitante: 6ª Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Capital – Área de Pessoa com Deficiência

Suscitada: 2ª Promotoria de Justiça Cível de São Bernardo – Direitos Humanos, com abrangência na defesa da Pessoa com Deficiência

 

Ementa:

1.    Direito da Pessoa com Deficiência. Conflito negativo de atribuições. 6º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital – Área de Pessoa com Deficiência (suscitante). 2ª Promotora de Justiça Cível de São Bernardo – Direitos Humanos, com abrangência na defesa da Pessoa com Deficiência (suscitada).

2.    Representação Civil que noticia ausência de acessibilidade aos usuários de transporte público portadores de deficiência, após o desembarque de trólebus no Paço Municipal de São Bernardo do Campo até o Terminal Rodoviário João Setti daquela cidade. O simples fato de a concessionária de transporte público METRA prestar serviço de natureza intermunicipal não desloca, por si só, a atribuição para a apuração dos fatos à Promotoria de Justiça Especializada da Capital. Ademais, há comprovação de inexistência de obrigação contratual, que determine à concessionária a disponibilização de funcionários que auxiliem os deficientes na travessia que interliga o terminal de trólebus ao terminal rodoviário. Responsabilidade do Município de São Bernardo do Campo de garantir a acessibilidade na via pública que interliga o Terminal de Trólebus do Paço Municipal ao Terminal Rodoviário João Setti da mesma cidade, gerenciado por concessionária municipal.

3.    Conflito conhecido e dirimido. Atribuição da 2ª Promotora de Justiça Cível de São Bernardo – Direitos Humanos, com abrangência na defesa da Pessoa com Deficiência (suscitada) para presidir a investigação.

Vistos,

1)    Relatório

Consta dos autos que a 2ª Promotora de Justiça Cível de São Bernardo, com atribuição em Direitos Humanos e abrangência na defesa da Pessoa com Deficiência (suscitada), encaminhou ao 6º Promotor de Justiça de Direitos Humanos desta Capital – Área de Pessoa com Deficiência (suscitante) representação civil, enviada por uma munícipe, noticiando que, após o desembarque de trólebus no Paço Municipal de São Bernardo do Campo, gerido pela concessionária de transporte público METRA, não há funcionários para orientar os passageiros portadores de deficiência até o Terminal Rodoviário João Setti da cidade, sob o argumento de que “o serviço é de natureza intermunicipal” (fl. 03).

O 6º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital, com atribuição na área de Pessoa com Deficiência, suscitou conflito negativo de atribuições, argumentando que não havia qualquer motivo de intervenção, “já que a discussão não envolvia a titularidade, natureza, características ou mesmo qualidade daquele serviço de transporte público”. Afirmou, outrossim, que “há acessibilidade suficiente até os limites da catraca”, porém, “para atravessar a passarela situada na área externa, far-se-ia necessário o apoio de funcionários da concessionária, já que a passarela não se mostra acessível o suficiente para que os deficientes, que necessitam utilizá-la, o possam fazer com independência e autonomia”. Ademais, acrescentou que não “há qualquer obrigação contratual ou decorrente da prestação do serviço público que exija que os funcionários da concessionária sejam compelidos a auxiliar os usuários para a realização de quaisquer tarefas fora da plataforma, onde se dá a prestação do serviço público”. Concluiu, por fim, que “a controvérsia não reside na obrigatoriedade de prestação de auxílio aos deficientes físicos por parte dos funcionários da concessionária METRA”, consignando que “a questão cinge-se na responsabilidade da municipalidade de São Bernardo do Campo em garantir que o entorno da plataforma, especialmente a passarela que interliga a estação de trólebus ao terminal rodoviário, se mostre acessível, permitindo que os usuários com deficiência consigam se locomover entre um local e outro, com autonomia, independência e segurança” (fls. 09/13).

Remetidos os autos à Procuradoria-Geral de Justiça, o conflito negativo de atribuições, à míngua de qualquer elemento instrutório, não foi conhecido nem dirimido, porquanto não havia informações nos autos a respeito do contrato de concessão com a empresa METRA, que poderia indicar quais são as obrigações da concessionária em relação ao terminal de trólebus do Paço Municipal, ausentes também informações quanto à responsabilidade pela interligação entre o terminal do Paço Municipal e o Terminal Rodoviário de São Bernardo do Campo (fls. 15/17).

O 6º Promotor de Justiça de Direitos Humanos prosseguiu na instrução dos autos e determinou a realização de providências preliminares (fls. 23/24).

Realizadas as diligências, novamente o 6º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital, com atribuição na área de Pessoa com Deficiência, suscitou este conflito negativo de atribuições, sustentando que a discussão em apreço não está relacionada à prestação do serviço de transporte público intermunicipal, mas  a eventual ausência de acessibilidade em via pública que interliga o Terminal Rodoviário João Setti e o Terminal de Trólebus do Paço Municipal de São Bernardo do Campo, cuja responsabilidade é da Prefeitura do Município de São Bernardo do Campo (e não da concessionária de serviço de transporte público intermunicipal). Embasado documentalmente, reiterou que não há obrigação contratual ou decorrente da prestação do serviço público que determine o auxílio pelos funcionários da concessionária a usuários para realização de quaisquer tarefas fora da plataforma onde se dá a prestação do serviço público. Finalizou, pontuando que é responsabilidade da Prefeitura de São Bernardo do Campo a realização das reformas necessárias à garantia de acessibilidade na via pública que interliga a Estação de Trólebus ao Terminal Rodoviário João Setti, razão pela qual a atribuição para instauração de eventual procedimento e seu acompanhamento é da Promotoria de Justiça de São Bernardo do Campo, com atribuição na área de Direitos Humanos – Pessoa com Deficiência (fls. 39/41).

É o relato do essencial.

2)    Fundamentação

Está configurado, no caso, o conflito de atribuições.

Isso decorre do posicionamento de diversos órgãos de execução do Ministério Público, quando “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487). No mesmo sentido Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196/197.

Cuida-se, na origem, de representação civil, enviada por uma munícipe, noticiando que, após o desembarque de trólebus no Paço Municipal de São Bernardo do Campo, gerido pela concessionária de transporte público METRA, não há funcionários para auxiliar os passageiros portadores de deficiência até o Terminal Rodoviário João Setti do aludido município, gerenciado por concessionária municipal.

Por primeiro, é de salientar que não há notícia nos autos de falta de acessibilidade nos limites do Terminal de Trólebus situado no Paço Municipal de São Bernardo do Campo.  Há, sim, notícia de ausência de acessibilidade em via pública que interliga o terminal já mencionado ao Terminal Rodoviário João Setti da mesma cidade.

Assentadas tais premissas, frisa-se que, ainda que se admitisse a responsabilidade da concessionária por eventual deficiência na prestação do serviço – o que não é o caso dos autos – o simples fato de a empresa de transporte público METRA prestar serviço de natureza intermunicipal não desloca, por si só, a atribuição para a apuração dos fatos à Promotoria de Justiça Especializada da Capital.

Ademais, ficou comprovado que inexiste obrigação contratual, que determine à concessionária a disponibilização de funcionários que auxiliem os deficientes na travessia que interliga o Terminal de Trólebus do Paço Municipal de São Bernardo do Campo ao Terminal Rodoviário João Setti daquela cidade.

Nesse sentido, a concessionária informou que os terminais que administra – entre eles o Terminal de Trólebus de São Bernardo do Campo – são todos de propriedade do Estado de São Paulo e apenas detém competência para a administração, operação, conservação, manutenção e vigilância patrimonial dos equipamentos. Esclareceu também que a Rodoviária João Setti é afeta ao Município de São Bernardo do Campo, não ao Estado, e gerenciada por concessionária municipal. Por fim, consignou que a travessia entre os terminais de trólebus e rodoviário da cidade é realizada por meio de faixa de pedestres e semáforos, não competindo, nem à concessionária dos serviços de transporte coletivo estadual nem à concessionária dos serviços de transporte coletivo municipal, a atuação na infraestrutura do município (fls. 36/37).

Assim, em tal contexto, forçoso reconhecer a responsabilidade do Município de São Bernardo do Campo, o qual deve garantir a acessibilidade aos usuários do serviço portadores de deficiência no entorno da plataforma, em especial a travessia em via pública entre o Terminal de Trólebus e o Terminal Rodoviário João Setti.

A propósito, como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do Parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, aplicando-se a regra de competência prevista no art. 2º da Lei da Ação Civil Pública, segundo a qual as ações previstas no referido diploma legal (que englobam a tutela de qualquer interesse difuso e coletivo) serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa, competente será o Juízo da Comarca de São Bernardo do Campo.

Além disso, tem-se o Ato Normativo n. 593/2.009-PGJ, que criou a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, enumerando as atribuições deste cargo especializado.

Não se olvide, ainda, que a Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo – Lei Complementar nº 734/93 –, ao dispor sobre as atribuições dos cargos especializados, prevê:

Art. 295 - Aos cargos especializados de Promotor de Justiça, respeitadas as disposições especiais desta lei complementar, são atribuídas as funções judiciais e extrajudiciais de Ministério Público (...)

Art. 296 – Aos cargos criminais e cíveis são atribuídas todas as funções judiciais e extrajudiciais de Ministério Púbico, respectivamente na sua área de atuação penal ou cível (...)

§ 2º - Os cargos com designação de determinada localidade, sejam especializados, criminais, cíveis ou cumulativos ou gerais, terão as atribuições judiciais e extrajudiciais de Ministério Público em correspondência com a competência do órgão jurisdicional nela localizado.

         À vista de todos estes dispositivos, indubitável que é a 2ª Promotoria de São Bernardo, ora suscitada, que detém atribuição para conhecer da representação formulada.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber à 2ª Promotora de Justiça de São Bernardo, com atribuição em Direitos Humanos e abrangência na defesa da Pessoa com Deficiência, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 12 de fevereiro de 2.019.

 

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

psv