Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado SEI n. 29.0001.0016457.2019-23
Suscitante: 11º Promotor de Justiça de São Vicente (Pessoa com Deficiência)
Suscitado: 7º Promotor de Justiça de São Vicente (Infância e
Juventude/Carentes)
Ementa: Conflito negativo de atribuição. Pessoa com Deficiência. Infância e Juventude. Inclusão escolar com apoio pedagógico, por meio de professor auxiliar, para criança possuidora de transtorno do espectro do autismo. Necessidade de integração da pessoa com deficiência com o ambiente no qual se encontra. Ausência de condição adequada em unidade escolar relacionada à deficiência da criança. Questões Preponderantes. Atribuição do 11º Promotor de Justiça de São Vicente. Conflito conhecido e dirimido.
1. Conflito negativo de atribuições. 11º Promotor de Justiça de São Vicente – Pessoa com Deficiência (suscitante). 7º Promotor de Justiça de São Vicente - Infância e Juventude/Carentes (suscitado).
2. Representação noticiando falta de inclusão escolar com apoio pedagógico, por meio de professor auxiliar, em favor de criança possuidora de transtorno do espectro do autismo.
3. A Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência (ratificada pelo Decreto Legislativo n. 186/08 e promulgada pelo Decreto n. 6.949/09) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei n. 13.146/15, art. 2º) promoveram a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual.
4. À luz da nova legislação,
a definição de pessoa com deficiência não é estabelecida sob o ponto de vista
exclusivo do impedimento (físico, mental, intelectual ou sensorial), mas sim pela existência de dificuldade, de longo
prazo, que a impeça de se relacionar com o ambiente no qual se encontre.
5. Falta de adequada
inclusão escolar decorrente do transtorno do espectro do autismo.
6. Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao 11º Promotor de Justiça de São Vicente - Pessoa com Deficiência prosseguir na investigação.
Vistos,
1) Relatório
Trata-se de conflito negativo de atribuições figurando como suscitante o ilustre 11º Promotor de Justiça de São Vicente (Pessoa com Deficiência) e, como suscitado, o DD. 7º Promotor de Justiça de São Vicente (Infância e Juventude).
Conforme se depreende dos autos, Fabiana Cordeiro da Silva compareceu na Promotoria de Justiça de São Vicente, oportunidade em que narrou que o seu filho, Kaique Hermegildo Silva, nascido em 10 de agosto 2.011, é portador de transtorno do espectro do autismo e necessita, visando à inclusão escolar, de professor auxiliar, que preste apoio pedagógico em sala de aula à criança.
O protocolado, registrado no SIS/MP sob o n. 37.0444.0000132/2019, foi inicialmente encaminhado ao 7º Promotor de Justiça de São Vicente, com atribuição para atuar na área da Infância e Juventude, que remeteu os autos ao 11º Promotor de Justiça da mesma localidade, em razão de sua atribuição de atuar nos feitos relacionados à Pessoa com Deficiência. Argumentou que “a questão relacionada à pessoa com deficiência sobressai no caso concreto”, em razão da ausência de disponibilização pelo Poder Público do acesso à educação para crianças portadoras de deficiência.
O 11º Promotor de Justiça de São Vicente, por sua vez, suscitou o presente conflito negativo de atribuições, alegando que a problemática está relacionada à prestação de serviço de educação infantil, nos termos do artigo 208, II, do Estatuto da Criança e Adolescente, e não à defesa de interesses de pessoas portadoras de deficiência.
É o breve relato do essencial.
2) Fundamentação
O conflito negativo de atribuições
está configurado e, pois, comporta admissibilidade.
Razão assiste ao suscitado.
No caso em exame, cuida-se de definir qual Promotor de Justiça possui atribuição para apurar a ausência de inclusão escolar, que demanda apoio pedagógico em sala de aula, inclusive com o acompanhamento de professores auxiliares, em prol de criança possuidora de transtorno mental.
O ilustre suscitante sustenta que se trata de deficiência no serviço de ensino infantil, aplicando-se, ainda, o disposto no inciso II do artigo 208 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que assim estabelece:
Art. 208. Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de
responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao
adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular:
(...)
II - de atendimento educacional
especializado aos portadores de deficiência;
O
interessado, sendo criança (7 anos de idade), é protegido pelo sistema jurídico
de proteção da infância e juventude, erigido com base no artigo 227 da
Constituição Federal, pelo qual “É dever da família,
da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão” (grifos nossos).
Todavia, o interessado possui transtorno do espectro do autismo e, para os fins do
estabelecido na Lei n. 13.146/15 (Lei Brasileira de Inclusão), é evidente que
se insere na categoria de pessoa com deficiência, razão pela qual goza da
proteção disciplinada em referido diploma legal, a ele se aplicando a doutrina
da proteção integral e o princípio da prioridade, previstos também na
aludida lei (arts. 5º e 8º, respectivamente).
Destaque-se que a Lei Brasileira de Inclusão diferenciou o impedimento (de longo prazo) de ordem intelectual do impedimento de ordem mental, admitindo que se enquadre no conceito de pessoa com deficiência tanto aquele que possua doença ou transtorno – tais como esquizofrenia, transtorno bipolar, etc – desde que o referido impedimento mental seja de longo prazo e, em interação com uma ou mais barreiras, obstrua sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.
Assim, o novo diploma legal, espelhado na Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência (2.007),
trouxe relevante inovação de ordem principiológica, porquanto passou a
estabelecer que a definição de pessoa com deficiência não deve ser analisada
sob o ponto de vista único do impedimento físico, mental, intelectual ou
sensorial, isto é, com base exclusivamente na falta de um membro ou sentido, existência
de doença ou transtorno mental ou de atraso intelectual, mas sim pela presença de barreiras ou dificuldades que a impeçam de
se relacionar, de se integrar na sociedade, isto é, de se ver incluída
socialmente.
Atualmente, portanto, a
definição de quem é ou não pessoa com deficiência se mede pelo grau de
dificuldade para a inclusão social e não pela limitação de ordem física,
mental, intelectual ou sensorial que o indivíduo possui. O novo conceito de
pessoa com deficiência não estabelece causas, tendo conteúdo amplo, ligado à
relação da pessoa com a deficiência que a acomete.
Deveras, a proteção trazida pela Convenção Internacional e, agora, pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/15), passou a imprimir a marca da anormalidade não mais à pessoa e sim ao grau de dificuldade de sua interação com o ambiente na qual se encontre.
Nesta linha de raciocínio, a Lei n. 13.146/15 regulamenta em capítulo próprio (Capítulo IV), o direito à educação, cabendo estacar:
Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com
deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e
aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo
desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais,
intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades
de aprendizagem.
Parágrafo único. É dever do Estado, da família, da
comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com
deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e
discriminação.
Art. 28. Incumbe ao poder público
assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar:
I - sistema
educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado
ao longo de toda a vida;
II - aprimoramento
dos sistemas educacionais, visando a garantir condições de acesso, permanência,
participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de
acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena;
III - projeto pedagógico que
institucionalize o atendimento educacional especializado, assim como os demais
serviços e adaptações razoáveis, para atender às características dos estudantes
com deficiência e garantir o seu pleno acesso ao currículo em condições de
igualdade, promovendo a conquista e o exercício de sua autonomia;
IV - oferta
de educação bilíngue, em Libras como primeira língua e na modalidade escrita da
língua portuguesa como segunda língua, em escolas e classes bilíngues e em
escolas inclusivas;
V - adoção
de medidas individualizadas e coletivas em ambientes que maximizem o
desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência, favorecendo
o acesso, a permanência, a participação e a aprendizagem em instituições de
ensino;
VI - pesquisas
voltadas para o desenvolvimento de novos métodos e técnicas pedagógicas, de
materiais didáticos, de equipamentos e de recursos de tecnologia assistiva;
VII - planejamento de estudo de caso,
de elaboração de plano de atendimento educacional especializado, de organização
de recursos e serviços de acessibilidade e de disponibilização e usabilidade
pedagógica de recursos de tecnologia assistiva;
VIII - participação dos estudantes
com deficiência e de suas famílias nas diversas instâncias de atuação da comunidade
escolar;
IX - adoção
de medidas de apoio que favoreçam o desenvolvimento dos aspectos linguísticos,
culturais, vocacionais e profissionais, levando-se em conta o talento, a
criatividade, as habilidades e os interesses do estudante com deficiência;
X - adoção
de práticas pedagógicas inclusivas pelos programas de formação inicial e
continuada de professores e oferta de formação continuada para o atendimento
educacional especializado;
XI - formação e disponibilização de
professores para o atendimento educacional especializado, de tradutores e
intérpretes da Libras, de guias intérpretes e de profissionais de apoio;
XII - oferta de ensino da Libras, do
Sistema Braille e de uso de recursos de tecnologia assistiva, de forma a
ampliar habilidades funcionais dos estudantes, promovendo sua autonomia e
participação;
XIII - acesso à educação superior e à
educação profissional e tecnológica em igualdade de oportunidades e condições
com as demais pessoas;
XIV - inclusão em conteúdos
curriculares, em cursos de nível superior e de educação profissional técnica e
tecnológica, de temas relacionados à pessoa com deficiência nos respectivos
campos de conhecimento;
XV - acesso
da pessoa com deficiência, em igualdade de condições, a jogos e a atividades
recreativas, esportivas e de lazer, no sistema escolar;
XVI - acessibilidade para todos os
estudantes, trabalhadores da educação e demais integrantes da comunidade
escolar às edificações, aos ambientes e às atividades concernentes a todas as
modalidades, etapas e níveis de ensino;
XVII - oferta de profissionais de
apoio escolar;
XVIII -
articulação intersetorial na implementação de políticas públicas.
Assim, a questão (inclusão escolar com apoio pedagógico adequado,
por meio de profissionais – solicitados, nesta caso concreto,
como professores auxiliares) foi especificamente e integralmente disciplinada Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Ademais, na hipótese em análise, a falta de condição
adequada da escola para concretizar a inclusão neste local, com o apoio pedagógico
necessário à criança, está intimamente ligada ao transtorno do espectro do autismo.
Portanto,
a problemática não está restrita à deficiência na prestação de ensino de
educação infantil. No caso em voga, a falta de condição adequada em unidade de
ensino que atenda às necessidades da criança está, repisa-se, relacionada com o
transtorno do espectro austista.
E, além
disso, ainda que seja possível a aplicação do inciso II do artigo 208 do ECA,
citado pelo ilustre suscitante, o dispositivo não é suficiente para fixar a
atribuição à Promotoria de Justiça da Infância e Juventude. Ora, os sistemas
de proteção se complementam (não são excludentes) e, na hipótese, patente
que a doença mental é preponderante para a adoção das medidas de proteção.
Enfim, a necessidade de integração da pessoa com deficiência com o ambiente no qual se encontra, de modo permanente (independentemente da circunstância de ser criança ou adolescente), aliado ao fato do transtorno ser a causa, em última análise, da falta de vagas em unidade escolar adequada às necessidades da interessada, nos termos como disciplinado no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/15), evidenciam que o feito deve seguir sob a presidência da Promotoria de Justiça com atribuição na área da Pessoa com Deficiência, a fim de se verificar a necessidade de eventuais medidas de proteção.
3) Decisão
Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, 11º Promotor de Justiça de São Vicente (Pessoa com Deficiência), a atribuição para oficiar nos autos.
Publique-se a ementa. Comuniquem-se os interessados. Registre-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição digital dos autos.
Remeta-se a cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 26 de abril de 2.019.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
psv