CONFLITO DE
ATRIBUIÇÕES – CÍVEL
SIS-MP n. 43.0444.0000131/2019-7
Suscitante: 11º Promotor de Justiça de São Vicente
Suscitado: 7º Promotor de Justiça de São Vicente
Ementa: Conflito negativo de atribuição. Pessoa com Deficiência. Infância e Juventude. Inclusão escolar com apoio pedagógico, por meio de professor auxiliar, para criança possuidora de transtorno do espectro do autismo. Necessidade de integração da pessoa com deficiência com o ambiente no qual se encontra. Ausência de condição adequada em unidade escolar relacionada à deficiência da criança. Questões Preponderantes. Atribuição do 11º Promotor de Justiça de São Vicente. Conflito conhecido e dirimido.
1. Conflito negativo de atribuições. 11º Promotor de Justiça de São Vicente – Pessoa com Deficiência (suscitante). 7º Promotor de Justiça de São Vicente - Infância e Juventude/Carentes (suscitado).
2. Representação noticiando falta de inclusão escolar com apoio pedagógico, por meio de professor auxiliar, em favor de criança possuidora de transtorno do espectro autista.
3. A Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência (ratificada pelo Decreto Legislativo n. 186/08 e promulgada pelo Decreto n. 6.949/09) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei n. 13.146/15, art. 2º) promoveram a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual.
4. À luz da nova legislação,
a definição de pessoa com deficiência não é estabelecida sob o ponto de vista
exclusivo do impedimento (físico, mental, intelectual ou sensorial), mas sim pela existência de dificuldade, de longo
prazo, que a impeça de se relacionar com o ambiente no qual se encontre.
5. Falta de adequada
inclusão escolar decorrente do transtorno do espectro do autismo.
6. Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao 11º Promotor de Justiça de São Vicente - Pessoa com Deficiência prosseguir na investigação.
Vistos,
1. Relatório
Pelo que se observa, Amanda
Carolina de Vasconcelos compareceu à Promotoria de Justiça de São Vicente com o
objetivo de solicitar professor auxiliar para sua filha M. M. V. V., nascida em
16/11/2012, portara de autismo, pois na Escola Estadual Mário Covas Júnior não
há professores auxiliares.
Originariamente o
procedimento foi instruído pela Promotoria de Justiça da Infância e Juventude
de São Vicente, que determinou a remessa dos autos ao 11º Promotor de Justiça
de São Vicente, com atribuição na área da Pessoa com Deficiência (fl. 14).
Ocorre que o 11º
Promotor de Justiça de São Vicente suscitou conflito negativo de atribuições
(fls. 16/20), arguindo, em síntese, que o fato de ser autista não faz com que a
pessoa deixe de ser criança. O que se busca com o procedimento, segundo o
suscitante, é a análise da prestação de serviço de educação infantil. Invoca o
artigo 452, I, do Manual de Atuação Funcional do Ministério Público em defesa
de sua posição, bem como o quanto decidido no Conflito Negativo de Atribuições
n. 0128353/16.
É a síntese.
2. Fundamentação
O conflito negativo de atribuições está configurado
e, pois, comporta admissibilidade.
Razão assiste ao suscitado.
No caso em exame, cuida-se de definir qual Promotor
de Justiça possui atribuição para apurar a ausência de inclusão escolar, que
demanda apoio pedagógico em sala de aula, inclusive com o acompanhamento de
professores auxiliares, em prol de criança possuidora de autismo.
O ilustre suscitante sustenta que se trata de
deficiência no serviço de ensino infantil, aplicando-se, ainda, o disposto no
inciso II do artigo 208 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que assim
estabelece:
Art. 208. Regem-se pelas disposições desta Lei as
ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao
adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular:
(...)
II - de atendimento
educacional especializado aos portadores de deficiência;
O
interessado, sendo criança (7 anos de idade), é protegido pelo sistema jurídico
de proteção da infância e juventude, erigido com base no artigo 227 da
Constituição Federal, pelo qual “É dever da família,
da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão” (grifos nossos).
Todavia, o interessado possui transtorno do espectro do autismo e, para os
fins do estabelecido na Lei n. 13.146/15 (Lei Brasileira de Inclusão), é
evidente que se insere na categoria de pessoa com deficiência, razão pela qual
goza da proteção disciplinada em referido diploma legal, a ele se aplicando a
doutrina da proteção integral e o princípio da prioridade, previstos
também na aludida lei (arts. 5º e 8º,
respectivamente).
Destaque-se que a Lei Brasileira de Inclusão
diferenciou o impedimento (de longo prazo) de ordem intelectual do impedimento de ordem mental, admitindo que se enquadre no conceito de pessoa com
deficiência tanto aquele que possua doença ou transtorno – tais como
esquizofrenia, transtorno bipolar, etc – desde que o
referido impedimento mental seja de longo
prazo e, em interação com uma ou mais
barreiras, obstrua sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade
de condições com as demais pessoas.
Assim, o novo diploma legal, espelhado na
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2.007), trouxe relevante inovação de ordem
principiológica, porquanto passou a estabelecer que a definição de pessoa com
deficiência não deve ser analisada sob o ponto de vista único do impedimento
físico, mental, intelectual ou sensorial, isto é, com base exclusivamente na
falta de um membro ou sentido, existência de doença ou transtorno mental ou de
atraso intelectual, mas sim pela presença
de barreiras ou dificuldades que a impeçam de se relacionar, de se integrar na
sociedade, isto é, de se ver incluída socialmente.
Atualmente, portanto, a
definição de quem é ou não pessoa com deficiência se mede pelo grau de dificuldade
para a inclusão social e não pela limitação de ordem física, mental,
intelectual ou sensorial que o indivíduo possui. O novo conceito de pessoa com
deficiência não estabelece causas, tendo conteúdo amplo, ligado à relação da
pessoa com a deficiência que a acomete.
Deveras, a
proteção trazida pela Convenção Internacional e, agora,
pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/15),
passou a imprimir a marca da anormalidade não mais à pessoa e sim ao grau de
dificuldade de sua interação com o ambiente na qual se encontre.
Nesta linha de raciocínio, a Lei n. 13.146/15
regulamenta em capítulo próprio (Capítulo IV), o direito à educação, cabendo
estacar:
Art. 27. A educação constitui
direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em
todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o
máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas,
sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e
necessidades de aprendizagem.
Parágrafo único. É dever do
Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de
qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de
violência, negligência e discriminação.
Art. 28.
Incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar,
incentivar, acompanhar e avaliar:
I - sistema educacional inclusivo em todos os níveis e
modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida;
II - aprimoramento dos sistemas educacionais, visando a garantir
condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da
oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e
promovam a inclusão plena;
III -
projeto pedagógico que institucionalize o atendimento educacional
especializado, assim como os demais serviços e adaptações razoáveis, para
atender às características dos estudantes com deficiência e garantir o seu
pleno acesso ao currículo em condições de igualdade, promovendo a conquista e o
exercício de sua autonomia;
IV - oferta de
educação bilíngue, em Libras como primeira língua e na modalidade escrita da
língua portuguesa como segunda língua, em escolas e classes bilíngues e em
escolas inclusivas;
V
- adoção de medidas individualizadas e coletivas em
ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com
deficiência, favorecendo o acesso, a permanência, a participação e a
aprendizagem em instituições de ensino;
VI
- pesquisas voltadas para o desenvolvimento de novos
métodos e técnicas pedagógicas, de materiais didáticos, de equipamentos e de
recursos de tecnologia assistiva;
VII
- planejamento de estudo de caso, de elaboração de plano de atendimento
educacional especializado, de organização de recursos e serviços de acessibilidade
e de disponibilização e usabilidade pedagógica de recursos de tecnologia
assistiva;
VIII
- participação dos estudantes com deficiência e de suas famílias nas diversas
instâncias de atuação da comunidade escolar;
IX
- adoção de medidas de apoio que favoreçam o
desenvolvimento dos aspectos linguísticos, culturais, vocacionais e
profissionais, levando-se em conta o talento, a criatividade, as habilidades e
os interesses do estudante com deficiência;
X
- adoção de práticas pedagógicas inclusivas pelos
programas de formação inicial e continuada de professores e oferta de formação
continuada para o atendimento educacional especializado;
XI
- formação e disponibilização de professores para o atendimento educacional
especializado, de tradutores e intérpretes da Libras, de guias intérpretes e de
profissionais de apoio;
XII
- oferta de ensino da Libras, do Sistema Braille e de uso de recursos de
tecnologia assistiva, de forma a ampliar habilidades funcionais dos estudantes,
promovendo sua autonomia e participação;
XIII
- acesso à educação superior e à educação profissional e tecnológica em
igualdade de oportunidades e condições com as demais pessoas;
XIV
- inclusão em conteúdos curriculares, em cursos de nível superior e de educação
profissional técnica e tecnológica, de temas relacionados à pessoa com
deficiência nos respectivos campos de conhecimento;
XV
- acesso da pessoa com deficiência, em igualdade de
condições, a jogos e a atividades recreativas, esportivas e de lazer, no
sistema escolar;
XVI
- acessibilidade para todos os estudantes, trabalhadores da educação e demais
integrantes da comunidade escolar às edificações, aos ambientes e às atividades
concernentes a todas as modalidades, etapas e níveis de ensino;
XVII
- oferta de profissionais de apoio escolar;
XVIII
- articulação intersetorial na implementação de políticas públicas.
Assim, a questão (inclusão escolar com apoio
pedagógico adequado, por meio de profissionais – solicitados, neste caso
concreto, como professores auxiliares) foi especificamente e integralmente
disciplinada Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Ademais, na hipótese em análise, a falta de
condição adequada da escola para concretizar a inclusão neste local, com o
apoio pedagógico necessário à criança, está intimamente ligada ao transtorno do espectro do autismo.
Portanto,
a problemática não está restrita à deficiência na prestação de ensino de
educação infantil. No caso em voga, a falta de condição adequada em unidade de
ensino que atenda às necessidades da criança está, repisa-se, relacionada com o
transtorno do espectro autista.
E,
além disso, ainda que seja possível a aplicação do inciso II do artigo 208 do
ECA, citado pelo ilustre suscitante, o dispositivo não é suficiente para fixar
a atribuição à Promotoria de Justiça da Infância e Juventude. Ora, os sistemas
de proteção se complementam (não são excludentes) e, na hipótese, patente
que a doença mental é preponderante para a adoção das medidas de proteção.
Enfim, a necessidade de integração da pessoa com deficiência com o ambiente
no qual se encontra, de modo permanente (independentemente da circunstância de
ser criança ou adolescente), aliado ao fato do transtorno ser a causa, em
última análise, da falta de vagas em unidade escolar adequada às necessidades
da interessada, nos termos como disciplinado no Estatuto
da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/15), evidenciam que o feito deve
seguir sob a presidência da Promotoria de Justiça com atribuição na área da
Pessoa com Deficiência, a fim de se verificar a necessidade de eventuais
medidas de proteção.
3) Decisão
Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições
e dirimo-o, com
fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, 11º Promotor de Justiça de São Vicente
(Pessoa com Deficiência), a atribuição para oficiar nos autos.
Publique-se a ementa. Comuniquem-se os interessados. Registre-se.
Cumpra-se, providenciando-se a restituição digital dos autos.
Remeta-se a cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível
e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 09 de maio de 2.019.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de
Justiça