Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 6.641/2.019

Suscitante: 4º Promotor de Justiça de Sorocaba (Habitação e Urbanismo)

Suscitado: 14º Promotor de Justiça de Sorocaba (Cível)

 

 

Ementa: Conflito negativo de atribuição. Civil. Processo civil. Usucapião extraordinária. Área destinada à regularização fundiária com notícia de parcelamento ilegal do solo urbano. Presença de interesse público e social que justifica a intervenção do Ministério Público. Atribuição do Promotor de Justiça Cível, e não do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, cuja atuação é reservada especificamente para processos coletivos.

1. Conflito negativo de atribuições. 4º Promotor de Justiça de Sorocaba – Habitação e Urbanismo (suscitante). 14º Promotor de Justiça de Sorocaba – Cível (suscitado).

2. Ação de usucapião extraordinária. Inexistência de parte incapaz. Área, objeto da ação, que é destinada, pela Municipalidade de Araçoiaba da Serra, à regularização fundiária e formação de loteamento urbano. Possiblidade de, em tese, estar sendo formado loteamento clandestino. Declínio de atribuição do Promotor de Justiça Cível atuante nos feitos residuais para o Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, a fim de que analisasse a possível intervenção do Parquet em sua área de atuação. Impossibilidade. Notícia de formação de loteamento clandestino – modalidade de parcelamento ilegal do solo – em ação de usucapião extraordinária. Configuração de interesse público e social, a ensejar a atuação obrigatória da Promotoria de Justiça, com atribuição na área cível residual. Inteligência do artigo 178, inciso I, do CPC. Intervenção que se distingue da atuação da Promotoria de Justiça Cível, com atribuição na área da Habitação e Urbanismo, a que compete a defesa de interesses difusos ou coletivos nas relações jurídicas relativas a loteamento.

3. Conflito conhecido e dirimido. Atribuição do 14º Promotor de Justiça de Sorocaba (Cível) para oficiar nos autos.

Vistos,

1)    Relatório

Consta do presente expediente que o 14º Promotor de Justiça de Sorocaba, com atribuição para atuar nos feitos cíveis judiciais, nos autos do Processo n. 1012019-39.2015.8.26.0600, ação de usucapião extraordinária, em trâmite na Vara da Fazenda Pública de Sorocaba, após constatar a inexistência de parte incapaz e vislumbrar que a área objeto da ação é destinada, pela Municipalidade, à regularização fundiária e formação de loteamento urbano (com possiblidade de estar sendo formado loteamento clandestino), declinou de sua atribuição e requereu a remessa dos autos à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo de Sorocaba, a fim de que analisasse a possível intervenção do Parquet em sua área de atuação (fl. 16).

O 4º Promotor de Justiça de Sorocaba, com atribuição na área de Habitação e Urbanismo, suscitou conflito negativo de atribuições, argumentando que ao suscitado compete intervir não apenas nos feitos cíveis, mas também atuar perante a Corregedoria do Registro de Imóveis, que abarca os feitos de usucapião. Invocou a Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo e o Manual de Atuação Funcional, frisando, quanto a este último ato normativo, que há obrigação de atuação pelo suscitado nas ações de usucapião que envolvam parcelamento ilegal do solo para fins urbanos ou rurais. Concluiu esclarecendo que a sua atribuição se cinge à defesa de interesses difusos ou coletivos nas relações jurídicas relativas a loteamento, seja por meio do inquérito civil ou procedimento preparatório, seja por meio da competente ação civil pública, em que atua na qualidade de parte e não fiscal da ordem jurídica (fls. 03/04).

É o relato do essencial.

2)    Fundamentação

Cuida-se, na origem, de ação de usucapião extraordinária, em trâmite na Vara da Fazenda Pública de Sorocaba, em que o 14º Promotor de Justiça de Sorocaba, após constatar a inexistência de parte incapaz e vislumbrar que a área objeto da ação é destinada, pela Municipalidade, à regularização fundiária e formação de loteamento urbano (com possiblidade de estar sendo formado loteamento clandestino), declinou de sua atribuição e requereu a remessa dos autos à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo de Sorocaba, a fim de que analisasse a possível intervenção do Parquet em sua área de atuação.

Primeiramente, saliento que o suscitado é portador de atribuição residual para atuar nos feitos cíveis, e, concessa venia, não analisou todas as hipóteses previstas no artigo 178 do Código de Processo Civil de 2015, que estabelece a atuação do Ministério Público como custos iuris. Mencionado dispositivo prevê:

Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam:

I - interesse público ou social;

II - interesse de incapaz;

III – litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana (grifo nosso).

O suscitado se limitou a consignar que não havia parte incapaz integrando a lide, olvidando a externação de seu juízo sobre a existência ou não de interesse público ou social ou a ocorrência de litígio coletivo pela posse terra rural ou urbana.

Sobre o inciso I do artigo 178 do Novo Código de Processo Civil, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery esclarecem que:

“O CPC 178 I contém norma de encerramento, no sentido de deixar aberta a possiblidade de o MP intervir nas demais causas em que há interesse público ou social. Quando a lei expressamente determina a intervenção, não se pode discutir ou questionar a necessidade de ela ocorrer. A norma ora comentada somente incide nas hipóteses concretas onde a participação do MP não se encontra expressamente prevista na lei” (in Código de Processo Civil Comentado, 16ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2016, pp. 728).

Para saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que justifique a intervenção do Parquet, é imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo, ou seja, pela identificação do pedido, iluminado pela causa de pedir.  É o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, esclarecendo que a decisão favorável à intervenção está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente que aflora do caso concreto (Manual do Promotor de Justiça, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1991, pp. 214-215).

No que toca à usucapião, insta observar que o Direito das Coisas sofreu profundas alterações nos últimos tempos com uma sensível tendência de publicização – como, aliás, é a tônica do Direito Civil à luz da Constituição de 1988. Se, por um lado, configurara o ramo do Direito Civil que por longo período mantivera-se fiel às tradições romanas, o fato é que a partir da segunda metade do século XX significativas mudanças alteraram a estrutura de seus institutos fundamentais, a começar pela construção da função social da propriedade.

Pode-se afirmar que as normas disciplinadoras das relações jurídicas referentes aos bens apropriáveis pelo homem passaram a apresentar significativa preponderância do interesse público sobre o privado. Da secular noção de que o proprietário tinha absoluto poder sobre seu imóvel, normas de convivência impuseram limites a este entendimento.

E não foi diferente com a usucapião.

Atualmente, existem diversas modalidades de usucapião e nesse contexto a intervenção do Ministério Público deverá ser feita em harmonia com a nova sistemática.

As modalidades de usucapião no ordenamento jurídico brasileiro são as seguintes: a) usucapião extraordinária (art. 1.238 do Código Civil); b) usucapião extraordinária com prazo reduzido (parágrafo único do art. 1.238 do Código Civil); c) usucapião ordinária (art. 1.242 do Código Civil); d) usucapião tabular ou usucapião documental (parágrafo único do art. 1.242 do Código Civil); e) usucapião constitucional urbana (art. 183 da Constituição Federal e art. 1.240 do Código Civil); f) usucapião constitucional rural (art. 191 da Constituição Federal e art. 1.239 do Código Civil); g) usucapião especial coletiva (art. 10 da Lei n. 10.257/2001); h) usucapião familiar (art. 1.240-A do Código Civil); i) usucapião administrativa; j) usucapião especial indígena (art. 33 da Lei n. 6.001/73).

Ao lado das tradicionais, nota-se desse rol o surgimento de novas modalidades de usucapião, com importante impacto social. Exemplificativamente, a usucapião especial coletiva, regrada pelo art. 10 da Lei n. 10.257/01, estabelece nova categoria de regularização fundiária, com importantes reflexos na ordenação urbana, sobretudo porque implica aquisição coletiva de propriedade de forma originária, mediante copropriedade.

Outra novidade de grande relevo foi a extrajudicialização da usucapião nos casos previstos no art. 216-A, da Lei n. 6.015/73, acrescentado pelo Código de Processo de 2015. A doutrina denomina essa nova modalidade de “usucapião administrativa”, justamente porque processada diretamente perante o Registro de Imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado.

Se, por um lado, o direito material recrudesceu a importância da usucapião, o direito processual mostrou-se econômico no seu regramento: o novel Código de Processo Civil não tratou especificamente da usucapião entre os procedimentos especiais.

Rememore-se que o codex revogado reservou ao tema seara própria (arts. 941/945), impondo a intervenção do Ministério Público em todos os atos do processo de usucapião (art. 944).

Restaram, agora, parcimoniosas alusões à matéria no código vigente, podendo-se mencionar o § 3º do art. 246, que afirma a necessidade de todos os confinantes serem citados pessoalmente na ação de usucapião de imóvel, exceto quando tiver por objeto unidade autônoma de prédio em condomínio, caso em que tal citação e dispensável. Outra referência à usucapião no diploma processual está no inciso I do art. 259, que determina a publicação de editais na ação de usucapião de imóveis.

Enquanto o Código de 1973 exigia a intervenção do Ministério Público em todos os atos do processo de usucapião (art. 944), o atual diploma silenciou não só quanto à participação ministerial, mas também no que concerne ao próprio rito procedimental. Daí ser possível a extração de duas conclusões: (a) a intervenção do Ministério Público nas demandas de usucapião não conta com previsão legal, de maneira geral, como ocorria com o CPC/73, cabendo verificar, entre as diversas modalidades de usucapião previstas na legislação extravagante, se há obrigatoriedade de intervenção; (b) sem embargo da omissão, continua necessária a intervenção em qualquer ação de usucapião, desde que presente interesse público, social ou de incapaz.

Com efeito, como acima discorrido, alguns diplomas legais especiais impõem expressamente a intervenção em algumas modalidades de usucapião, como a usucapião especial de imóveis rurais (Lei n. 6.969/81, art. 5º, § 5º) e a usucapião especial urbana (Lei n. 10.257/01, art. 12, § 1º).

À época do antigo estatuto de rito, mesmo com a expressa exigência do art. 944, os membros do Ministério Público deixaram de intervir nas ações de usucapião individual de imóveis urbanos e rurais, sob o mote de inexistência de interesse social. A partir de uma interpretação do art. 127, caput, da Constituição de 1988, concluiu-se que a instituição deveria priorizar a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, privilegiando, assim, sua atuação na condição de autor, em defesa de interesses de ordem coletiva em sentido amplo.

Pacificou-se o entendimento de que previsão legislativa não seria suficiente para trazer o Ministério Público aos autos; era necessário mais que isso: exigir-se-ia a presença de relevantes interesses, à luz do quanto disposto nos arts. 127 e 129 da Carta Magna.

Nessa linha de pensamento, o Ministério Público do Estado de São Paulo editou o Ato Normativo n. 295-PGJ/CGMP/CPJ, de 12 de novembro de 2002, responsável por estabelecer normas de racionalização de serviço no que tange à intervenção do Ministério Público, como fiscal da lei, no processo civil, em ações de usucapião individual de imóveis urbanos ou rurais.

Principia mencionado Ato Normativo por assentar que “atuando como fiscal da lei (atualmente custos iuris), o Promotor de Justiça poderá deixar de se manifestar nas ações individuais de usucapião de imóvel” (art. 1º).

É importante registrar que os atos normativos de racionalização em momento algum vedaram a intervenção ministerial; apenas autorizaram – àqueles que coadunassem com a orientação – a não intervenção. Logo, caso o promotor de justiça optasse pela intervenção, estava claro que sua atuação não seria em hipótese alguma obstaculizada.

Ademais, fixaram-se parâmetros para a ausência de intervenção. A normativa paulista ressalvou que a racionalização não se aplicaria às demandas que envolvessem parcelamento ilegal do solo para fins urbanos ou rurais, bem como àquelas em que houvesse interesse de incapazes ou em que se vislumbrasse risco, ainda que potencial, de lesão a interesses sociais e individuais indisponíveis.

A propósito, agasalhando a restrição à não intervenção Ministerial, o Manual de Atuação Funcional, em seu artigo 277, estatui que, nas ações individuais de usucapião de imóvel, o Promotor de Justiça deve examinar se há necessidade de intervir como fiscal da lei, devendo, entretanto, oficiar nas ações que envolvam parcelamento ilegal do solo para fins urbanos ou rurais, em que haja interesse de incapazes, ou nas quais vislumbre risco, ainda que potencial, de lesão a interesses sociais e individuais indisponíveis.

Não se olvida que o Manual de Atuação Funcional e o Ato Normativo n. 295/02-PGJ/CGMP/CPJ foram editados na vigência do Código Buzaid, que dispunha como obrigatória a intervenção do MP em todas as ações de usucapião. Todavia, a mens, que inspirou a edição dos aludidos atos normativos, ainda é pertinente e presta-se a balizar, inclusive, a obrigação da intervenção do Parquet nas hipóteses que se enquadram na norma de encerramento disposta no artigo 178, inciso I, do CPC em vigor.

E, justamente porque há notícia, como mencionou o próprio suscitado, de que a área objeto da usucapião está inserida em gleba reservada para destinação pública com o objetivo de regularização fundiária - havendo, portanto, a instalação de loteamento clandestino; o que não deixa de ser uma modalidade de parcelamento ilegal do solo - o Ministério Público deve atuar.

De tal conjuntura, extrai-se a presença do interesse público e social, legitimador da intervenção do Parquet.

E, nesta toada, cabia ao suscitado, analisando a disposição contida no artigo 178, I, do CPC, o Manual de Atuação Funcional e o próprio Ato Normativo n. 295/02-PGJ/CGMP/CPJ (esse que, se de um lado, faculta a não intervenção do Parquet em determinadas hipóteses, de outro, impõe como obrigatória a sua intervenção em outras situações), oficiar como fiscal da ordem jurídica.

E aludida atuação se distingue daquela reservada à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo - a quem compete a defesa de interesses difusos ou coletivos nas relações jurídicas relativas a desmembramento, loteamento e uso do solo para fins urbanos - seja na qualidade de parte (promovendo o competente inquérito civil ou procedimento preparatório ou, ainda, ajuizando ação civil pública), seja na qualidade de fiscal da ordem jurídica, intervindo nas ações civis públicas ajuizadas pelos colegitimados (artigos 103, inciso VIII, e 295, inciso X, da Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo e artigo 453 do Manual de Atuação Funcional).

É certo que se constatada lesão ou ameaça à ordem urbanística ou mesmo crime, o Promotor de Justiça, oficiante no processo, deve remeter peças de informação ao Promotor de Justiça com atribuição para conhecer de tais questões. Todavia, essa premissa não desloca a competência do membro do Parquet.

         À vista de todo o explanado, indubitável que o 14º Promotor de Justiça de Sorocaba, com atribuição cível (residual), ora suscitado, detém atribuição para funcionar como custos iuris nos autos da ação de usucapião extraordinária especificada anteriormente.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao 14º Promotor de Justiça de Sorocaba oficiar no feito, em seus ulteriores termos, intervindo como fiscal da ordem jurídica.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 21 de fevereiro de 2.019.

 

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

psv