Conflito de Atribuições – Cível

 

Apelação Cível 0009075-31.2005.8.26.0053

1ª Câmara de Direito Público

Suscitante: Procuradoria de Justiça de Interesses Difusos e Coletivos

Suscitado: Procuradoria de Justiça Cível

 

 

 

Ementa:

1)     Conflito de atribuições. Execução de sentença proferida em ação civil pública, proposta em defesa de interesses individuais homogêneos. Execução individual, proposta em litisconsórcio por beneficiários da decisão coletiva.

2)     Diversidade de situações entre o processo coletivo de conhecimento e a execução individual da sentença coletiva. Demandante age no processo de conhecimento como legitimado coletivo. Na execução, de cunho individual (mesmo em caso de litisconsórcio de exequentes), há apenas um fundamento de intervenção do Ministério Público, como custos legis: a presença de incapazes como exequentes (art. 82, I, do CPC).

3)     Conflito dirimido, determinando caber à Procuradoria de Justiça Cível prosseguir no feito.

Vistos.

1)   Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. Promotor de Justiça designado para oficiar na Procuradoria de Justiça de Interesses Difusos e Coletivos, e como suscitada a DD. Procuradora de Justiça oficiante na Procuradoria de Justiça Cível.

Em razão do trânsito em julgado da decisão proferida nos autos da ação civil pública movida pela Promotoria de Justiça da Cidadania da Capital, em face do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo (IPESP) - autos 516/96, da 10ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo -, na qual a autarquia foi condenada ao pagamento de diferenças de benefícios previdenciários devidos aos pensionistas do Estado de São Paulo, foi instaurada a presente ação de execução.

As requerentes, em número três, promovem a execução individual da decisão condenatória, pretendendo a citação do IPESP para o pagamento dos valores devidos a título singular, conforme memória discriminada de cálculo por elas apresentada.

Em primeiro grau de jurisdição, ocorreu a extinção do processo de execução, sendo, em seguida, interposto recurso de apelação.

Distribuído o feito à Procuradoria de Justiça Cível, foi determinada sua remessa à Procuradoria de Justiça de Interesses Difusos e Coletivos.

Na Procuradoria de Justiça de Interesses Difusos e Coletivos foi suscitado o conflito negativo, sendo afirmado que a discussão nessa fase é meramente individual, não mais envolvendo disputa coletiva, o que aponta para a atribuição da Procuradoria de Justiça Cível.

É o relato do essencial.

2)   Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Como mencionado anteriormente, estes autos qualificam-se como ação de execução individual de sentença proferida em ação coletiva.

Não há dúvida de que embora a ação de conhecimento tenha tramitado de forma coletiva, e nesta execução haja pluralidade de exequentes, que deram início ao feito em litisconsórcio, de processo individual aqui se trata.

Cumpre recordar que a possibilidade do ajuizamento de ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos decorre do disposto no art. 91 do Código de Defesa do Consumidor, inserido no Capítulo da Lei 8.078/90 que trata do tema, sob a rubrica “Das ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos”.

Tal dispositivo, como, aliás, toda a parte “processual” do Código do Consumidor é aplicável à defesa de interesses metaindividuais em juízo, por força da remissão formulada pelo art. 21 da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85).

Ademais, no próprio Código de Defesa do Consumidor há a previsão, no respectivo art. 98, de que a execução poderá ser coletiva, movida pelos legitimados coletivos, e “abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiverem sido fixadas em sentença de liquidação”, sendo certo que isso ocorrerá “sem prejuízo de ajuizamento de outras execuções”. Oportuno ainda lembrar que, pelo art. 97 do referido Código, “a liquidação e a execução da sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores”.

Pois bem.

É importante recordar, invocando aqui o pensamento de José Carlos Barbosa Moreira, que os interesses individuais homogêneos são “acidentalmente coletivos”. Isso equivale a dizer que, em sua essência, tais interesses são individuais, mas, por opção político-legislativa, são tratados, no plano processual, de forma coletiva. (cf. autor citado, em diversos escritos, v.g.: “Tutela jurisdicional dos interesses difusos e coletivos”, Temas de direito processual civil, 3ª série, São Paulo, Saraiva, 1984; “Os temas fundamentais do direito brasileiro nos anos 80: direito processual civil”, Temas de direito processual, 4ª série, São Paulo, Saraiva, 1989. V. ainda Rodolfo de Camargo Mancuso, Jurisdição coletiva e coisa julgada, São Paulo, RT, 2007, p. 81 e ss; e Sérgio Seiji Shimura, Tutela coletiva e sua efetividade, São Paulo, Método, 2006, p. 25 e ss).

E o que justifica esse tratamento coletivo é a homogeneidade do interesse, que em sua essência, é individual (Cf., entre tantos, a lição de Kazuo Watanabe, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – comentado pelos autores do anteprojeto, 8ª ed., Rio de Janeiro/São Paulo, Ed. Forense Universitária, 2005, p. 806/807).

Uma vez proferida a sentença de mérito, na fase de execução o que se tem são pretensões estritamente individuais (cf. Luiz Paulo da Silva Araújo, Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais homogêneos, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 194 e ss).

Podem até ser deduzidas, no processo executivo, em litisconsórcio facultativo, na medida em que, de conformidade com o art. 573 do CPC, é legítima a cumulação de execuções em face do mesmo devedor, mormente quando fundadas no mesmo título executivo. Mas isso não retira a natureza individual das execuções cumuladas (sobre a possibilidade de cumulação de execuções, confira-se: Humberto Theodoro Júnior, Processo de execução e cumprimento da sentença, 24ª ed., São Paulo, Leud, 2007, p. 105 e ss; Araken de Assis, Manual da execução, 11ª ed., São Paulo, RT, 2007, p. 295 e ss; Luiz Fux, O novo processo de execução, Rio de Janeiro, Forense, 2008, p. 144/145).

Esse é o sentido das ponderações formuladas por Ada Pelegrini Grinover, ao aduzir que na execução “a situação é diferente da que ocorre com a legitimação extraordinária à ação condenatória do art. 91 (...). Lá, os legitimados agem no interesse alheio, mas em nome próprio, sendo indeterminados os beneficiários da condenação. Aqui, as pretensões à liquidação e execução da sentença serão necessariamente individualizadas (...)” (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – comentado pelos autores do anteprojeto, 8ª ed., Rio de Janeiro/São Paulo, Ed. Forense Universitária, 2005, p. 887).

Chega-se, com esse raciocínio, à premissa indispensável à solução do presente conflito.

Ação civil pública foi proposta em defesa de interesses coletivos, em sentido amplo, ou seja, com a finalidade de obtenção de uma sentença condenatória genérica, na qual fosse reconhecida a obrigação, do IPESP, de realizar o pagamento de diferenças quanto a pensões devidas a beneficiários do sistema previdenciário público do Estado de São Paulo.

A sentença, nessa hipótese, nos termos do art. 95 do Código do Consumidor, aplicável ao caso mutatis mutandis, foi “genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados”.

Vencida a fase de conhecimento, segue-se para a execução, na qual as pretensões deduzidas são nitidamente individuais, figurando os exequentes como litisconsortes.

No processo de conhecimento, foi a existência de interesses coletivos, relacionados à seara dos direitos constitucionais dos cidadãos, que animou a legitimação para agir por parte do Ministério Público, através da Promotoria de Justiça da Cidadania; agora, em sede de execução, o que se tem são interesses meramente individuais, decorrentes da existência de uma sentença condenatória genérica, na qual o fundamento da intervenção ministerial é a existência de incapazes na condição de exequentes.

Antes, note-se, era o interesse coletivo que sedimentava a causa da atuação do parquet; agora, é a qualidade da parte (art. 82, I, do CPC) que rende ensejo à atuação do custos legis, na denominada intervenção protetiva, visto que uma das exequentes é incapaz.

Nitidamente estabelecida a situação de fato, e esclarecida a razão da intervenção, torna-se possível concluir que razão assiste, na hipótese, ao suscitante.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à suscitada, integrante da Procuradoria de Justiça Cível, a atribuição para oficiar no presente feito.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 20 de maio de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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