Conflito de Atribuições

– Cível –

 

Protocolado nº 0069923 (MP nº 38.0342.0000909/2018-8)

Suscitante: 2º Promotor de Justiça de Mogi Guaçu (Direitos Humanos – Saúde Pública)

Suscitado: 5º Promotor de Justiça de Mogi Guaçu (Consumidor)

 

 

Ementa:

Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 2º Promotor de Justiça de Mogi Guaçu (Direitos Humanos – Saúde Pública); Suscitado: 5º Promotor de Justiça de Mogi Guaçu (Consumidor). Peças de informação encaminhadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, noticiando prática ilícita perpetrada pela empresa FOLHAS DE OLIVA PRODUTOS NATURAIS LTDA, consistente em “fazer propaganda de produto CHÁ DE FOLHAS DE OLIVA sem registro na Anvisa”. Inexistência de indícios de omissão do poder público que pudessem justificar a atribuição concomitante da Promotoria de Justiça da Saúde Pública.  Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitado prosseguir na investigação. Precedentes: Protocolados ns. 135.956/2017 e 143.172/2017.

 

Vistos.

1)  Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 2º Promotor de Justiça de Mogi Guaçu, com atribuição na área de Direitos Humanos (Saúde Pública) e como suscitado o DD. 5º Promotor de Justiça de Mogi Guaçu, com atribuição na área do consumidor.

Consta dos autos que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por meio do OFÍCIO n. 17-184/2018, encaminhou ao Ministério Público de São Paulo peças de informação relacionadas à suposta prática ilícita perpetrada pela empresa FOLHAS DE OLIVA PRODUTOS NATURAIS LTDA, consistente em “fazer propaganda de produto CHÁ DE FOLHAS DE OLIVA sem registro na Anvisa”(fl. 03).

Inicialmente conclusos os autos ao 2º Promotor de Justiça de Mogi Guaçu, determinou-se a remessa ao 5º Promotor de Justiça de Mogi Guaçu, por se tratar “de crime contra as relações de consumo” (fl. 161).

O 5º Promotor de Justiça de Mogi Guaçu, por sua vez, declinou da atribuição, por entender que a investigação deverá ser presidida pelo Promotor de Justiça com atribuição na seara da saúde pública. Contudo, o 2º Promotor de Justiça, ora suscitante, entendeu que a investigação “não faz menção à comercialização do produto pela autuada sem o competente registro, mas somente à publicação de anúncios capazes de induzir os consumidores em erro”; trouxe precedentes na linha de seu entendimento (fls. 165/172).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Registre-se que a atuação do Ministério Público na seara da saúde pública tem como fundamento o direito à saúde, positivado como um dos primeiros direitos sociais de natureza fundamental (art. 6º, da CF/88) e também como o primeiro dos direitos constitutivos da seguridade social (art. 194, caput, CF/88). Saúde que é ‘direito de todos e dever do Estado’ (art. 196, caput, CF/88), garantida mediante ações e serviços de pronto qualificados como ‘de relevância pública’ (parte inicial do art. 197, CF/88).

Assim, a atuação da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos visa assegurar ao cidadão o acesso aos serviços públicos de natureza essencial, contemplando as demais ações estatais destinadas à tutela da saúde da população. Trata-se, inegavelmente, de função institucional relacionada ao comando constitucional do art. 129, II, segundo o qual cabe ao Ministério Público “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”.

Por sua vez, a Lei Complementar Estadual nº 734/93, que institui a Lei Orgânica do Ministério Público, em seu art. 295, dispõe: Aos cargos especializados de Promotor de Justiça, respeitadas as disposições especiais desta lei complementar, são atribuídas as funções judiciais e extrajudiciais de Ministério Público, nas seguintes áreas de atuação.

Com relação ao Promotor de Justiça de Direitos Humanos resta estabelecido no inciso XIV do artigo 295: “garantia de efetivo respeito dos Poderes Públicos e serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, e, notadamente, a defesa dos interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos dos idosos e das pessoas com deficiência”.

Há, portanto, perfeita sintonia entre a Constituição Federal e a Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo, no sentido de que cabe ao Promotor de Justiça de Direitos Humanos a garantia de efetivo respeito dos Poderes Públicos e serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, e, notadamente, a defesa dos interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos dos idosos e das pessoas com deficiência.

É nesse contexto que se insere e deve ser compreendido o Ato Normativo nº 593/09, o qual, dentre outras determinações, dispõe sobre a criação da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos na área da saúde pública. Referido Ato Normativo estabelece, em seu art. 3º, inciso II, o seguinte:

Art. 3º - Compete também à Promotoria de Justiça de Direitos Humanos:

(...)

II – na área da saúde:

a) zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual e nas demais normas pertinentes, que disciplinam a promoção, defesa e recuperação da saúde, individual ou coletiva, promovendo as medidas necessárias à sua garantia;

b) zelar pela prevenção e reparação dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos usuários e consumidores dos serviços e ações de saúde, relativamente:

 1) à qualidade e eficiência dos serviços privados prestados pelos hospitais, clínicas, laboratórios e estabelecimentos congêneres, que coloquem em risco à saúde;

 2) aos produtos com finalidades terapêuticas ou medicinais, desde que haja suspeita de falsificação, corrupção, adulteração, alteração, ou qualquer outra irregularidade correlata, tomando as medidas necessárias à sua garantia;

c) zelar pelo cumprimento das diretrizes do Sistema Único de Saúde, do Código de Defesa do Consumidor, da Lei nº 8.080/90, da Lei nº 8.142/90, do Código de Saúde do Estado de São Paulo e da legislação correlata relativa à matéria prevista nesse ato;

 d) zelar pelo cumprimento das diretrizes e regras do SNT – Sistema Nacional de Transplante e do SET – Sistema Estadual de Transplantes, especialmente no que diz respeito à obediência da lista dos candidatos a transplante e aos requisitos legais para que seja efetivada a doação post mortem ou a retirada de pessoa falecida, o transporte e o transplante de órgãos, tecidos ou parte do corpo humano;

e) zelar pela observância das regras sobre disposição em vida ou doação de órgão, tecidos ou partes do corpo humano vivo para transplante quando não há necessidade de autorização judicial, nos casos do procedimento cirúrgico ser destinado a cônjuge ou parente até o quarto grau, inclusive;

 f) estimular a criação e o efetivo funcionamento dos Conselhos de Saúde Municipais e Estadual, bem como a realização das Conferências de Saúde, buscando, em colaboração com aqueles órgãos e com outras entidades ou organizações empenhadas na política de saúde, resultados qualitativos e quantitativos para a garantia do direito individual e coletivo à saúde.

De outro lado, também é função institucional do Ministério Público, com amparo na Constituição Federal e no Código de Defesa do Consumidor, bem como no art. 103, VIII, da Lei Complementar Estadual nº 734/93, promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção, a prevenção e a reparação dos danos causados ao consumidor.

Cabe ao Promotor de Justiça do Consumidor a defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos relacionados com o consumidor (artigo 295, VII, da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

É oportuno anotar que se afigura extremamente comum, em determinada investigação, constatar-se a existência de mais de um interesse a ser tutelado, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

Não há que se negar que a realidade oferece situações limítrofes, em que há dificuldade de se identificar, de modo claro, o órgão investido de atribuição para investigar determinados fatos, por estarem estes naquela zona de transição entre uma e outra área especializada, ou mesmo por afetarem, concomitantemente, mais de um segmento de especialização.

Em outras palavras, é corriqueiro que haja, em certo caso, sobreposição de matérias atinentes a diferentes áreas de atuação.

Na hipótese ora analisada, e, considerado o objeto da investigação bem como o panorama normativo respectivo, não se extrai, ao menos nesta fase inicial de investigação, sinais de eventual omissão dos órgãos públicos estatais que pudessem ensejar a concomitante atribuição da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, até mesmo porque, conforme se constata a fls. 03, o processo administrativo sanitário foi instaurado por conta de propaganda sem registro na Anvisa.

Acerca do tema, a Procuradoria-Geral de Justiça já firmou entendimento consolidado nos Protocolados ns. 135.956/2017 e 143.172/2017.

Remanesce na espécie, portanto, a atribuição da Promotoria de Justiça do Consumidor de Mogi Guaçu.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD.5º Promotor de Justiça de Mogi Guaçu (Consumidor), a atribuição para oficiar no presente feito.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 12 de setembro de 2018.

 

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

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