Conflito
de Atribuições – Cível
Protocolado MP nº 0088160/18
Suscitante: 1º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital
Suscitado: 1º Promotor de Justiça Cível da Lapa
Ementa:
1.
Conflito negativo de atribuições. Reintegração de
posse. As ações possessórias não integram o microssistema processual coletivo.
Embora as
2.
Consta que o suscitante já
extraiu cópias das peças essenciais que noticiam a contaminação do solo e das
águas subterrâneas para instauração de Inquérito Civil correlato. Nesses
termos, com o devido respeito ao entendimento do suscitado, não há que
prevalecer o entendimento no sentido de que o interesse mais
abrangente e proeminente no caso é o da Promotoria de Justiça de Meio Ambiente,
por conta da noticiada contaminação do solo e da agua do local, assim como o
perigo de combustão em razão da desordenada atividade humana na área. Com
efeito, não se trata de manifestação de dois órgãos no mesmo processo. Na
demanda judicial funcionará o Promotor de Justiça Cível, ao passo que o
Promotor de Justiça do Meio Ambiente investigará, em sede própria, a
responsabilidade ambiental.
3.
Conflito conhecido e dirimido, com determinação de
prosseguimento da intervenção ministerial por parte do suscitado.
Vistos,
Trata-se de
conflito negativo de atribuições provocado pelo 1º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital, figurando como suscitado o 1º
Promotor de Justiça Cível da Lapa.
Conforme se extrai dos autos do processo n. 10000998-12.2018.8.26.0004,
em trâmite na 4ª Vara Cível do Foro Regional IV (Lapa), a EMPRESA
METROPOLITANA DE ÁGUAS E ENERGIA S/A ajuizou ação de reintegração de
posse com pedido liminar em desfavor de pessoas indeterminadas
que se encontram indevidamente ocupando o imóvel localizado na proximidade da
Av. Engenheiro Roberto Zuccolo e Nações Unidas – Jaguaré – SP, onde
especificamente encontra-se instalado o Bota Fora 14 B, também reconhecido como
Caixa B.
Assentou
a demandante ser proprietária da área acima mencionada, devidamente
licenciada para a atividade de Bota-fora, onde promove o descarte de material
decorrente do desassoreamento do Rio Pinheiros, na extensão do quilômetro 0,0
ao quilômetro 25,0, tudo em conformidade com a Licença de Operação nº 2035
emitida em 12/01/2012 pela Companhia Ambiental do Estado de São Paulo – CETESB.
Narra diversos efeitos nefastos em razão
do material lá despejado.
Apesar disso, a área
está ocupada por invasores, que construíram e seguem expandindo suas invasões
na área dos Bota-foras.
Pela decisão de fl. 901,
determinou-se a remessa dos autos ao Ministério Público, por força do disposto
nos arts. 554, § 1º, c.c. 565 do CPC.
A 1ª Promotora de
Justiça Cível da Lapa assentou a fls. 908/912 que a intervenção do MP deverá se
realizar por intermédio da atuação da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente,
pois o interesse mais abrangente e proeminente no caso é o do Meio Ambiente,
diante da noticiada contaminação do solo e da agua do local, bem como do perigo
de combustão em razão da desordenada atividade humana na área.
Contudo, o 1º Promotor
de Justiça do Meio Ambiente suscitou conflito negativo de atribuições (fls.
917/920), evocando precedentes da Procuradoria-Geral de Justiça.
É o relatório.
Decisão.
Como se sabe, no processo
jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos
próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece
critérios para a repartição do serviço.
Esta ideia, aliás, estava
implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo,
funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e
sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose
Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e
Ora, se para a identificação do
órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei
processual estabelece, a priori,
critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que
o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com
atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente
considerada, ou seja, de seu objeto.
Pode-se, deste modo, afirmar que
a definição do membro do parquet a
quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera
cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil
pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.
Registre-se que esta Procuradoria-Geral de Justiça
firmou o entendimento de que a atribuição para atuar em demandas de
reintegração de posse é do membro do Ministério Público oficiante nos feitos
cíveis.
De antemão, afasta-se a argumentação, por
vezes trazida, de que as ações de reintegração de posse seriam uma espécie de
ação coletiva passiva e por isso caberia à Promotoria de Justiça de Habitação e
Urbanismo ou do Meio Ambiente nelas funcionar.
Registre-se, de plano, que a
noção de ação coletiva passiva surgiu no ordenamento jurídico brasileiro a
partir de proposta elaborada por Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe e
Antonio Gidi durante as Jornadas de Montevidéu (outubro 2002); na oportunidade,
elaborou-se Proposta de
A ação coletiva passiva (defendant class action do sistema
norte-americano) pode ser entendida como a demanda promovida contra grupo,
categoria ou classe de pessoas e que tem como peculiaridade a representatividade
do polo passivo.
Na Exposição de Motivos do ANTEPROJETO DE CÓDIGO BRASILEIRO DE PROCESSOS COLETIVOS elaborada pelo
Ministério da Justiça em 2.007, incorporando sugestões da Casa Civil, da Secretaria de
Assuntos Legislativos, da PGFN e
dos Ministérios Públicos de Minas
Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo, foi feita a seguinte
explanação sobre a ação coletiva passiva:
“O
Capítulo III introduz no ordenamento brasileiro a ação coletiva passiva
originária, ou seja, a ação promovida não pelo, mas contra o grupo, categoria
ou classe de pessoas. A denominação pretende distinguir essa ação coletiva
passiva de outras, derivadas, que decorrem de outros processos, como a que se
configura, por exemplo, numa ação rescisória ou nos embargos do executado na execução
por título extrajudicial. A jurisprudência brasileira vem reconhecendo o
cabimento da ação coletiva passiva originária (a defendant class action do sistema norte-americano), mas sem
parâmetros que rejam sua admissibilidade e o regime da coisa julgada. A pedra
de toque para o cabimento dessas ações é a representatividade adequada do
legitimado passivo, acompanhada pelo requisito do interesse social. A ação
coletiva passiva será admitida para a tutela de interesses ou direitos difusos
ou coletivos, pois esse é o caso que desponta na “defendant class action”, conquanto os efeitos da sentença possam
colher individualmente os membros do grupo, categoria ou classe de pessoas. Por
isso, o regime da coisa julgada é perfeitamente simétrico ao fixado para as ações
coletivas ativas”.
Pode-se vislumbrar que se trata
de uma ação coletiva vista pelo ângulo do polo
passivo; o enfoque, portanto, não residiria no autor, no legitimado ativo,
mas no polo passivo.
Não se nega que o
Ao lado da coisa julgada, a
legitimidade é o
Bem se percebe que o tema é
instigante e controverso; a complexidade aumenta quando se desloca a análise
para o polo passivo.
Contudo, rememore-se que o
litisconsórcio multitudinário ou numeroso “não abrange categorias ou grupos
inteiros de pessoas, mas somente os sujeitos nominados que vieram ao litígio –
e isso é que substancialmente deixa o litisconsórcio numeroso no campo da
tutela individual. Além disso, a técnica processual é outra, com legitimidade
também individual” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. 3. ed. rev.
atual. e ampl. Malheiros Ed., 1994. p. 349). Assim é que os sistemas
processuais do mundo contemporâneo barram a formação de litisconsórcios muito
numerosos sem grande afinidade entre as pretensões individuais. De tal modo, o
sistema italiano, ao cuidar do litisconsórcio facultativo, permite ao juiz
separar as demandas “se vi e istanza di
tutte le parti, ovvero quando la continuazione della loro riunione ritarderebbe
o renderebbe piú gravoso il processo, e puó rimettere al giudice inferiore le
cause di sua competenza” (art. 103, segunda parte, do CPC itatiano). No
mesmo sentido o Código Processual do Peru, ao afirmar que “Cuando el Juez considere que la acumulación afecte el Principio de
Economía procesal, por razón de tiempo, gasto o esfuerzo humano, puede separar
los procesos, los que deberán seguirse independientemente, ante sus Jueces
originales” (art. 91 do CPC peruano).
Ademais, importante ressaltar que
a ação coletiva passiva deveria ser proposta contra grupo, categoria ou classe.
No caso das possessórias, resulta claro do § 1º do art. 554 que não se trata de
ação coletiva passiva, tanto é assim que se exige que a citação seja feita nos
ocupantes que forem encontrados no local e por edital nos demais, e não na
figura de um representante adequada da categoria.
E mais: quando o Código de
Processo Civil menciona “litígio coletivo” (arts. 178 e 565), o faz no sentido
de controvérsia multitudinária, e não necessariamente de demanda coletiva, a
contar com um representante adequado, quer no polo ativo, quer no polo passivo.
A distinção não é meramente
acadêmica. Reflete-se no devido processo
legal. Veja-se que na
Leciona a doutrina que quanto
mais extenso o rol de legitimados, maior a necessidade do requisito da
representatividade adequada, e que quanto maior for a extensão a terceiros do
julgado coletivo, maior a necessidade de controle (GRINOVER, Ada Pellegrini.
Novas tendências em matéria de legitimação e coisa julgada. In: Direito
Processual Comparado, XIII World Congress of procedural Law, Salvador-Bahia,
16-22 set. 2007. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 522).
Cabe trazer à colação dois julgados
acerca da matéria; o primeiro do Superior
Tribunal de Justiça e o segundo do Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo, que bem analisam a questão da
representatividade adequada nas ações propostas em face de diversas pessoas:
“A
discussão quanto à admissibilidade de processos coletivos passivos, porém,
é bastante nova. Nos diversos projetos de Códigos Coletivos existentes,
há divergência quanto ao assunto. Como bem observa FREDIE DIDIER e
HERMES ZANETI JR. (Curso de Direito Processual Civil, Vol. 4, 4º edição,
pág. 401), entre os diversos projetos atualmente existentes para a
elaboração de um Código para Processos Coletivos, há a previsão irrestrita
de ações coletivas passivas no Código-Modelo
para Ibero-América (arts. 32 e ss.), pelo Código de Processo Civil
Coletivo elaborado por Antônio Guidi (art. 28) e pelo Anteprojeto de
Código Brasileiro de Processos Coletivos, apresentado no âmbito dos
programas de pós-graduação da UERJ e UNESA (arts. 42 a 44). O Anteprojeto
de Código Brasileiro de Processos Coletivos elaborado por Ada Pellegrini
Grinover, por sua vez, prevê esta modalidade de ação apenas para a tutela
de direito difusos ou coletivos, em sentido estrito, excluindo os direitos
individuais homogêneos. Trata-se, portanto, de questão que ainda suscitará
muito debate, no futuro.
No estado
atual da legislação quanto a processos coletivos, porém, notadamente
considerando-se a regra quanto à coisa julgada formada nas ações em que
se discutam direitos individuais homogêneos, não é possível admitir a apresentação,
pelo réu, de pedido de declaração incidental” (REsp 1051302/DF, Rel.
Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/03/2010, DJe
28/04/2010).
(...)
“Muito
embora seja possível a propositura de ação em face de uma coletividade, com o
objetivo de proteger interesses difusos, é certo que esta deve possuir um
representante determinado e adequado, para que se afigure uma hipótese de
legitimação extraordinária, em que o representante agirá em nome próprio na
defesa de interesses de terceiros. No caso em tela, a ação foi ajuizada em face
de todos os proprietários de imóveis desabitados e fechados, abandonados ou com
acesso não permitido pelo morador em todo o Município. Trata-se, na acertada
visão da Douta Procuradoria de Justiça de ‘... uma coletividade incerta e
indeterminada, sem vínculos fáticos e jurídicos concretos entre seus
integrantes (suposta comunhão de possuidores e proprietários de imóveis
abandonados e desocupados), como neste caso, que não possui obviamente
representantes legítimos.’. Ante a falta de indicação de um representante
adequado para a coletividade colocada no polo passivo é que se deve considerar
a petição inicial inepta e a ação carente” (Relator(a): Ponte
Neto; Comarca: São José do Rio Pardo; Órgão julgador: 8ª Câmara de
Direito Público; Data do julgamento: 22/07/2015; Data de registro:
22/07/2015).
Por último – mas não menos
importante -, as ações possessórias não integram o microssistema processual
coletivo. Embora as
Ademais, as atribuições
especializadas dos órgãos de execução na esfera dos interesses difusos, dos
interesses coletivos e dos interesses individuais homogêneos são tratadas de
forma explícita.
Nesses casos, pelo que ordinariamente
se observa, os atos que fixam a divisão de serviço concedem a determinado cargo
de certa Promotoria de Justiça a missão de atuar em defesa de interesse
especificado (meio ambiente, consumidor, patrimônio público, etc.). E as regras
de experiência demonstram, do mesmo modo, que essa atuação, assim fixada, diz
respeito às ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, como também
à atuação, como fiscal da lei, nas ações civis públicas relacionadas àquela
matéria propostas por outros legitimados.
Os demais casos não enquadrados
nessas hipóteses (ou seja, de propositura de ações coletivas e atuação como
fiscal da lei nas ações civis públicas propostas por outros legitimados), que
dizem respeito, portanto, à atuação ministerial como custos legis em outros processos, são atribuições a respeito das
quais os atos regulamentares de divisão de serviços, em regra, não tratam
especificamente. Esses outros casos normalmente se enquadram sob a designação
geral da função de oficiar em “feitos cíveis”.
Essa exegese, calcada na análise
sistemática e finalista, é suficiente para justificar a conclusão no sentido de
que a fixação da atribuição do suscitado, em ato normativo, para Meio Ambiente abrange as ações civis públicas distribuídas,
mas não a atuação como custos legis
em ações possessórias.
Como se vê, a atribuição
especializada está relacionada à atuação do Promotor de Justiça como autor de
ações coletivas ou como fiscal da ordem jurídica em ações civis públicas.
No caso em tela, não se trata de
ação civil pública ou de ação coletiva, de tal forma que cabe ao suscitado oficiar
no feito.
Registre-se que, se por um lado, a atribuição para funcionar nas demandas
de reintegração de posse é do Promotor de Justiça Cível que atua no foro
regional, fácil é ver-se, entretanto, que a atuação na seara transindividual persiste na especializada, a
saber: Promotoria de Justiça do Meio Ambiente.
Afirmou o suscitante que “já
extraiu cópias das peças essenciais que noticiam a contaminação do solo e das
águas subterrâneas para instauração de Inquérito Civil correlato. Sem embargo,
o objeto do expediente administrativo será totalmente distinto do aventado na
lide, sem qualquer relação com o exercício de posse ou direitos reais” (fls.
917/920).
Nesses termos, com o devido respeito ao
entendimento do suscitado, não há que prevalecer o entendimento no sentido de
que o
interesse mais abrangente e proeminente no caso é o da Promotoria de Justiça de
Meio Ambiente, por conta da noticiada contaminação do solo e da agua do local,
assim como o perigo de combustão em razão da desordenada atividade humana na
área. Com efeito, não se trata de manifestação de dois órgãos no mesmo
processo. Na demanda judicial funcionará o Promotor de Justiça cível, ao passo
que o Promotor de Justiça do Meio Ambiente investigará, em sede própria, a
responsabilidade ambiental.
Em síntese:
1. Cabe aos Promotores de Justiça com atribuição na área cível funcionar
como “custos legis” nas ações de reintegração de posse em curso nas Promotorias
de Justiça Regionais;
2. A atribuição para atuar no plano transindividual, na adoção de medidas jurídicas ambientais, é da Promotoria de Justiça do Meio
Ambiente.
Diante do exposto, conheço do presente
conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao suscitado, 1º Promotor de Justiça Cível da Lapa,
prosseguir na ação, em seus ulteriores termos.
Publique-se. Comunique-se.
Registre-se. Restituam-se os autos.
Providencie-se a remessa de
cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 05 de novembro de 2018.
Giapaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
ef