Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 0168905/11 (Protocolado 724/10)

Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Campos do Jordão

Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Campos do Jordão

 

 

 

Ementa:

1) Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Campos do Jordão, com atribuições na área de habitação e urbanismo. Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Campos do Jordão, com atribuições na área do meio ambiente.

2) Em casos envolvendo conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção, por ser a que melhor atende ao interesse geral, à continuidade, à eficiência e à eficácia da atividade ministerial.

3) Conflito conhecido e dirimido. Atribuições do suscitado.

 

 

Vistos.

1) Relatório

Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 1º Promotor de Justiça de Campos do Jordão, e como suscitado o 2º Promotor de Justiça de Campos do Jordão.

O conflito restou configurado nos autos do Procedimento Investigatório n. 724/10, tendo por objeto a apuração de “falta de manutenção da Rua Eloy de Martini e falta de fiscalização por parte da Prefeitura”.

O autor da representação, Guilherme de Martini Neto, solicitou providências à Promotoria de Justiça de Meio Ambiente e, posteriormente, comunicou o atendimento de algumas solicitações, bem como apontou eventuais omissões da Secretaria Municipal de Obras Públicas.

O 2º Promotor de Justiça de Campos do Jordão, então, promoveu o arquivamento do procedimento investigatório, e encaminhou os autos para ciência do 1º Promotor de Justiça, para eventual extração de cópias e tomada das providências que entender cabíveis.

O membro do Ministério Público de Campos do Jordão com atribuição na área da Habitação e Urbanismo consignou nos autos que   “a atribuição é da própria 2ª Promotoria, já que sua convicção restou consignada nos autos e que, por conta desta e da prevenção, caberia a ele adotar as medidas para combater o ato irregular” (fls. 78).

Encaminhados os autos ao Colendo Conselho Superior do Ministério Público, o Excelentíssimo Procurador de Justiça Relator afirmou a necessidade de solução preliminar acerca das atribuições:

“Para avaliar se o caso é de homologação do arquivamento promovido a fls. 76/77, é indispensável definir se há possibilidade de cindir os fatos denunciados pelo representante em questões ambientais e de habitação e urbanismo e cidadania, posto que efetivamente pendentes de solução as providências relacionadas à Secretaria Municipal de Obras Públicas.

Entendendo-se que não, a atribuição é do 2º Promotor de Justiça de Campos do Jordão, o que tornará necessária a conversão do julgamento em diligências, para que se instaure inquérito civil para investigar tais pendências.

Caso contrário, inevitável a análise do mérito da promoção de arquivamento pro este Colegiado, com a doção de medidas para que sejam investigados, pelo 1º Promotor de Justiça de Campos do Jordão, os fatos arrolados pelo representante como ainda não solucionados” (fls. 82/83).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).

De antemão, verifica-se que está, no caso, configurado o conflito de atribuições, embora seja extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente como princípio constitucional no art. 127,  §1º, da CR/88.

O respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho de suas funções de execução (cf. art. 19, I, d, da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

Deste modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta configuração, bem como da iniciativa dos órgãos de execução envolvidos, no sentido de suscitar o conflito.

Essa é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).

A questão da necessidade de respeito à independência funcional encontra bom exemplo nos casos em que há negativa do membro do Ministério Público para oficiar em determinado feito, de natureza cível.

O fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a analogia com o art.28 do Código de Processo Penal (Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, cit., p. 73).

Mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores e Procuradores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

No caso em tela, frise-se, está configurado o conflito, pois os dois Promotores de Justiça afirmaram não ter atribuições para investigar as omissões apontadas pelo autor da representação.

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

A complexidade dos interesses transindividuais faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

Em outras palavras, é corriqueiro que haja, em certo caso, sobreposição de matérias atinentes a diferentes áreas de atuação.

Em conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses supraindividuais, estando presentes fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção.

Até por analogia é possível chegar ao critério da prevenção.

Note-se que no processo coletivo a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei nº 7.347/85.

Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do art. 2º da Lei da Ação Civil Pública indica a prevenção como critério de solução de dúvidas a respeito da competência.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p. 483/484, nota nº 6 ao art. 2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Esse raciocínio é aplicável, analogicamente, para a solução de conflitos de atribuição entre órgãos administrativos.

Ademais, o critério da prevenção é aquele que melhor atende ao interesse geral relacionado à continuidade, à eficiência e à eficácia da atividade ministerial, ao determinar o prosseguimento na investigação por parte do órgão que já diligenciou para a apuração dos fatos.

Com efeito, a realidade oferece situações limítrofes em que é manifesta a dificuldade de identificar de modo claro o órgão revestido de atribuição para investigar determinados fatos, por estarem estes naquela zona de transição entre uma e outra área especializada, ou mesmo por afetarem, concomitantemente, mais de um segmento de especialização.

Rememore-se que a investigação foi iniciada pela Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, quem primeiro recebeu a representação.

Posto isso, conheço do conflito de atribuições e decido que a atribuição para se manifestar nos autos é do DD. 2º Promotor de Justiça de Campos do Jordão, com atribuições na área do meio ambiente.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 2º Promotor de Justiça de Campos do Jordão, com atribuições na área do meio ambiente, a atribuição para oficiar nos autos.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 26 de março de 2012.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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