Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 177.914/11

(Protocolo 1159/11)

Suscitante: 4º Promotor de Justiça de Guarujá

Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Guarujá

 

Ementa:

1.      Suscitante: 4º Promotor de Justiça de Guarujá, na condição de Vice-Secretária Executiva. Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Guarujá. Representação em que se noticia a ocorrência de show com grande concentração de pessoas.

2.      Conflito negativo de atribuições não caracterizado. Remessa dos autos pela Secretária da Promotoria envolvida. Pressuposto do conflito de atribuições é a manifestação dos órgãos de execução, admitindo ou negando, concomitantemente, a ocorrência da hipótese de sua atuação. Conflito não conhecido.

3.      Princípios da economia e eficiência. Hierarquia administrativa no Ministério Público. Ausência de intervenção de órgãos de execução, até o momento. Possibilidade de remessa dos autos, pelo Procurador-Geral de Justiça, ao órgão de execução em cuja esfera de atribuições se enquadre a hipótese sob investigação.

4.      Inteligência dos arts. 427 e 469 do Ato Normativo n. 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010 (Protocolado n. 60.471/2010), que aprovou o “Manual de Atuação Funcional dos Promotores de Justiça do Estado de São Paulo”, segundo o qual incumbe ao Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo a incumbência de zelar pela circulação urbana e, respeitada a legislação respectiva, adotar as medidas administrativas ou judiciais cabíveis ao tomar conhecimento, por qualquer meio, de atividades públicas ou privadas que impeçam ou dificultem o direito de locomoção, bem como atentar para a possibilidade de responsabilização dos agentes de fiscalização em todas as esferas, inclusive por improbidade administrativa, e de outras pessoas que, de qualquer modo, colaboraram para infringir a legislação de uso e ocupação do solo.

5.      Conflito não conhecido. Remessa dos autos ao 2º Promotor de Justiça de Guarujá para prosseguir na investigação.

 

 

Vistos.

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 4º Promotor de Justiça de Guarujá e como suscitado o 2º Promotor de Justiça de Guarujá.

Verifica-se dos autos que a Polícia Militar comunicou a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo acerca da ocorrência de show nas dependências do complexo hoteleiro Jequitimar, com público estimado de 4.000 pessoas.

Encaminhada a notícia, a 2ª Promotoria de Justiça encaminhou o protocolado a “um dos Promotores com atribuição residual em cidadania” (fls. 16).

Ao receber a representação que lhe foi endereçada, a DD. 4ª Promotora de Justiça do Guarujá, na condição de Vice-Secretária da Promotoria de Justiça, determinou o seu encaminhamento à Procuradoria-Geral de Justiça, suscitando o conflito de atribuições. Argumenta, em síntese, que a hipótese é de atribuição da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo (fls. 17/23).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

De antemão, verifica-se que não está, no caso, configurado o conflito de atribuições.

Como se sabe, é extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente como princípio constitucional no art. 127, §1º, da CR/88.

O respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho de suas funções de execução (cf. art. 19, I, “d”, da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

Deste modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta configuração, bem como da iniciativa dos órgãos de execução envolvidos, no sentido de suscitar o conflito.

Essa é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).

A questão da necessidade de respeito à independência funcional encontra bom exemplo nos casos em que há negativa do membro do Ministério Público para oficiar em determinado feito, de natureza cível.

O fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a analogia com o art. 28 do Código de Processo Penal (Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, cit., p. 73).

Mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores e Procuradores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

No caso em exame, os autos foram remetidos inicialmente à 2ª Promotoria de Justiça do Guarujá, com atribuições na área de Habitação e Urbanismo.

Encaminhados os autos à Promotoria de Justiça com atribuições na área de Direitos Humanos, recebeu manifestação da Vice-Secretária da Promotoria de Justiça, que suscitou o conflito de atribuições.

Sem a manifestação dos órgãos de execução, não se configura o conflito de atribuições.

É bem verdade que alguns casos, envolvendo representações para que seja suscitado conflito de atribuições entre o Ministério Público Estadual e o Ministério Público Federal, tem ocorrido o acolhimento de manifestações da Secretaria da Promotoria de Justiça da Cidadania. Mas em tais casos, tal procedimento tem sido adotado porque, sendo o conflito, em última análise, divergência entre Ministérios Públicos, e não entre seus órgãos de execução singularmente considerados, cabe mesmo ao Procurador-Geral de Justiça suscitá-lo, para exame na sede própria, qual seja o E. STF (art.102 I f da CR/88).

Diversa, entretanto, é a situação aqui analisada.

A atribuição para o objeto da investigação é do Ministério Público Estadual. Assim, o conflito – interno – somente se configura com manifestações convergentes (conflito positivo) ou divergentes (conflito negativo) para a atuação entre órgãos de execução, não entre órgãos administrativos, qualificação na qual se enquadram as Secretarias das Promotorias de Justiça.

Não é viável, por tais razões, conhecer do conflito.

Entretanto, considerados os princípios da eficiência e da economia, e tendo em vista a hierarquia administrativa que também anima o Ministério Público, nada impede que o encaminhamento destes autos seja direcionado ao órgão de execução cujas atribuições abranjam o fato sob investigação.

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

O Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, no seu art. 472, tratando de atribuições das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo estabelece o que segue:

“Art. 472. Zelar pela circulação urbana e, respeitada a legislação respectiva, adotar as medidas administrativas ou judiciais cabíveis ao tomar conhecimento, por qualquer meio, de atividades públicas ou privadas que impeçam ou dificultem o direito de locomoção”.

Mesmo que, de fato, houvesse também atribuição do suscitado, o certo é que a solução seria adotar o critério da prevenção, uma vez que nos casos de situações limítrofes em que é manifesta a dificuldade de identificar de modo claro o órgão revestido de atribuição para investigar determinados fatos, por estarem estes naquela zona de transição entre uma e outra área especializada, ou mesmo por afetarem, concomitantemente, mais de um segmento de especialização, melhor se afigura o critério objetivo da prevenção.

Posto isso, a atribuição para prosseguir nas investigações é da Promotoria de Justiça da Habitação e Urbanismo.

3) Decisão

Diante do exposto, não conheço do conflito de atribuições.

Entretanto, pelos motivos expostos, determino a remessa dos autos à Promotoria de Justiça suscitada para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 9 de janeiro de 2012.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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