Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado
nº100.775/08
(Peças de Informação nº7640/2004-MPT)
Suscitante:
Secretário da Promotoria de Justiça da Cidadania da Capital
Suscitado:
Secretário da Promotoria de Justiça Cível da Capital
Ementa: 1)Conflito de atribuições. Promotoria Cível da Capital (suscitada) e
Promotoria da Cidadania da Capital (suscitante). Procedimento investigatório.
Meio ambiente do trabalho. Servidores estatutários do Estado de São Paulo
(Poder Judiciário). 2)Conflito negativo de atribuições. Não caracterização. Remessa dos
autos pelos Secretários das Promotorias envolvidas. Pressuposto do conflito
de atribuições é a manifestação dos órgãos de execução, admitindo ou negando,
concomitantemente, a ocorrência da hipótese de sua atuação. Conflito não
conhecido. 3)Princípios da economia e eficiência. Hierarquia administrativa no
Ministério Público. Ausência de intervenção de órgãos de execução, até o
momento. Possibilidade de remessa dos autos, pelo Procurador-Geral de
Justiça, ao órgão de execução em cuja esfera de atribuições se enquadre a
hipótese sob investigação. 4)Meio ambiente do trabalho. Atribuições residuais da Promotoria de
Justiça Cível da Capital (art.296 §2º da Lei Complementar nº734/93). 5)Conflito não conhecido. Remessa dos autos à Promotoria de Justiça
Cível da Capital. |
Vistos,
1)Relatório.
Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições
suscitado pelo Dr. (...), DD.
Promotor de Justiça Secretário da Promotoria de Justiça da Cidadania da
Capital, figurando como suscitado o Dr. (...), DD. Promotor de Justiça
Secretário da Promotoria de Justiça Cível da Capital.
O Procedimento investigatório no qual
foi suscitado o conflito foi instaurado em decorrência de acidente do trabalho
envolvendo servidor do Poder Judiciário, verificado em 27.08.01, no interior do
prédio onde funciona o Juizado Especial Cível de Guianazes, nesta cidade de São
Paulo. Em razão deste evento, teve início a investigação, voltada à apuração a
respeito das condições de trabalho dos servidores do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo.
Instaurado o procedimento na então
Promotoria de Justiça de Acidentes do Trabalho, com amparo no verbete de nº736
da Súmula de Jurisprudência dominante do E. STF acabou sendo o feito remetido
ao Ministério Público do Trabalho (fls.35).
Algumas diligências foram realizadas
enquanto o feito tramitou junto ao Ministério Público do Trabalho. Entretanto,
com a informação no sentido da existência de vínculo estatutário dos servidores
do Poder Judiciário Paulista, a Dra. (...), DD. Procuradora do Trabalho
oficiante junto à Procuradoria Regional do Trabalho – 2ª Região, na
Coordenadoria da Defesa dos Interesses Difusos e Coletivos -, determinou a
remessa dos autos ao Ministério Público Estadual (fls.130/133).
Encaminhado o feito à Promotoria de
Justiça Cível da Capital, seu Secretário, Dr. (...) promoveu a respectiva remessa à Promotoria de Justiça da Cidadania
da Capital, sustentando que: (a) as atribuições da Promotoria Cível da Capital
limitam-se aos casos em que estão envolvidos interesses de incapazes; (b) no
caso em exame, não há fundamento para a atuação daquela unidade ministerial
(fls.134/126).
Na Promotoria de Justiça da Cidadania,
o respectivo Secretário, Dr. (...), sustentou que: (a) trata-se de hipótese de direito
individual, que não envolve o patrimônio público; (b) a atribuição é da
Promotoria Cível; (c) alternativamente, como a matéria não foi apreciada pelo
Promotor natural, mas sim pelo Secretário da Promotoria Cível, deverão os autos
ser restituídos a esta última, para livre distribuição e apreciação (fls.140/141).
Este
é o breve relato do que consta dos autos.
2)Fundamentação.
De
antemão, verifica-se que não está, no caso, configurado o conflito de
atribuições.
Como se sabe, é extremamente tênue a
linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de
Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual
manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar,
que poderia configurar violação da independência funcional do membro do
Ministério Público, estipulada expressamente como princípio constitucional no
art.127 §1º da CR/88.
O
respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido
e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações
do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter
vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho
de suas funções de execução (cf. art.19 I d
da Lei Complementar Estadual nº734/93).
Deste modo, pode-se concluir que a
solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta
configuração, bem como da iniciativa dos órgãos de execução envolvidos,
no sentido de suscitar o conflito.
Essa é a razão pela qual a doutrina
anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do
Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado
ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que
deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério
Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196. g.n.).
Em outros termos, conflitos de
atribuições configuram-se in concreto,
jamais in abstracto, quando, considerado
o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam,
simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em
exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue
a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha
recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público,
6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.486/487).
A questão da necessidade de respeito à
independência funcional encontra bom exemplo nos casos em que há negativa do
membro do Ministério Público para oficiar em determinado feito, de natureza
cível.
O
fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a
analogia com o art.28 do Código de Processo Penal (Nesse sentido: Hugo Nigro
Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ªed.,
São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson Garcia, Ministério Público, cit., p.73).
Mas
nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público
tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer
injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas
manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E
estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles,
poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico,
disciplinar, regulamentar, etc.
Como anota Hely Lopes Meirelles, o
poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior
para “distribuir e escalonar as funções
de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a
relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem
por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades
administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro,
33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.121). Confira-se ainda, a respeito desse
tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de
Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.421/423; Maria Sylvia
Zanella Di Pietro, Direito Administrativo,
19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.106/109.
O reconhecimento do vínculo entre órgão
subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente
inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em
conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da
hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà
superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e
basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza
di strumento espressivo dell’autorità pubblica”(Verbete “Gerarchia
amministrativa”, Enciclopedia del diritto,
vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969,p.626).
Do
mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a
existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos,
de um “potere di risoluzione di conflitti
tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività
degli stessi” (Diritto Amministrativo,
v. I, 3ªed., Milano, Giuffrè, 1993, p.312).
O reconhecimento da hierarquia na
organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio
da independência funcional: os Promotores e Procuradores de Justiça são
independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações
processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de
qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa
atuação.
Em outras palavras, o Procurador-Geral
de Justiça não pode dizer como deve o
membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o
membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.
No caso em exame, os autos foram
remetidos inicialmente à Promotoria de Justiça Cível da Capital, onde,
recebendo manifestação do Secretário da Promotoria de Justiça, foram encaminhados
à Promotoria da Cidadania da Capital. Nesta última, mais uma vez, por
manifestação do Secretário da Promotoria de Justiça, veio o feito a esta
Procuradoria-Geral de Justiça, para fins de apreciação.
Sem a manifestação dos órgãos de
execução, não se configura o conflito de atribuições.
É bem verdade que alguns casos recentes,
envolvendo representações para que seja suscitado conflito de atribuições entre
o Ministério Público Estadual e o Ministério Público Federal, tem ocorrido o
acolhimento de manifestações da Secretaria da Promotoria de Justiça da
Cidadania. Mas em tais casos, tal procedimento tem sido adotado porque, sendo o
conflito, em última análise, divergência entre Ministérios Públicos, e não
entre seus órgãos de execução singularmente considerados, cabe mesmo ao
Procurador-Geral de Justiça suscitá-lo, para exame na sede própria, qual seja o
E. STF (art.102 I f da CR/88).
Diversa, entretanto, é a situação aqui
analisada.
A atribuição para o objeto da
investigação – segurança no meio ambiente de trabalho de servidores estaduais
estatutários vinculados ao Poder Judiciário – é do Ministério Público Estadual.
Assim, o conflito – interno – somente se configura com manifestações
convergentes (conflito positivo) ou divergentes (conflito negativo) para a
atuação entre órgãos de execução, não entre órgãos administrativos,
qualificação na qual se enquadram as Secretarias das Promotorias de Justiça.
Não é viável, por tais razões, conhecer
do conflito.
Entretanto, este procedimento já tramita
há praticamente sete anos (foi instaurado por despacho proferido em 05.10.2001,
cf. fls.7). Posteriormente à sua remessa pelo Ministério Público do Trabalho
para o Ministério Público de São Paulo, não houve manifestação de qualquer
órgão de execução, mas apenas de órgãos de administração de nossa instituição.
Deste modo, considerados os princípios
da eficiência e da economia, e tendo em vista a hierarquia administrativa que
também anima o Ministério Público, nada impede que o encaminhamento destes autos
seja direcionado ao órgão de execução cujas atribuições abranjam o fato sob
investigação.
Pos bem. Nesse enfoque, é importante
observar que o presente procedimento foi instaurado para a apuração quanto às
condições de trabalho dos servidores do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo.
A
matéria não diz com as atribuições da Promotoria de Justiça da Cidadania que,
de conformidade com o art.295 IX da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público
(Lei Complementar Estadual nº734/93), tem sob sua tutela a “garantia de efetivo respeito dos Poderes
Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas
Constituições Federal e Estadual, da probidade e legalidade administrativas e
da proteção do patrimônio público e social”.
O tema encontra-se situado entre as
atribuições residuais da Promotoria de Justiça Cível, considerando que o §2º do
art.296 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público prevê que “aos cargos de Promotor de Justiça Cível da
Capital são atribuídas as funções judiciais e extrajudiciais de Ministério Público
na defesa de interesses difusos e coletivos decorrentes da especial condição da
pessoa portadora de deficiência, na tutela de interesses de incapazes e nas
situações jurídicas de natureza civil, em qualquer caso, desde que não
compreendidas na área de atuação de cargos especializados (...)”
(g.n.).
Assim, em respeito à economia e
eficiência da atuação ministerial, bem como em decorrência da hierarquia
administrativa, antes da manifestação de qualquer órgão de execução, impõe-se à
Procuradoria-Geral de Justiça que determine o encaminhamento dos autos ao órgão
de execução em cuja esfera de atuação se encontre o caso em exame.
3)Decisão.
Diante do exposto, não conheço do conflito de
atribuições.
Entretanto, pelos motivos expostos, determino
a remessa dos autos à Promotoria de Justiça Cível da Capital.
Publique-se. Comunique-se. Registre-se.
Restituam-se os autos.
Providencie-se
a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de
Tutela Coletiva.
São Paulo, 25 de agosto de 2008.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça