Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 106.915/11

Suscitante: Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital

Suscitadas: GEDUC – Grupo de Atuação Especial de Educação e Promotoria de Justiça do Foro Regional de São Miguel Paulista com atribuições na área da Infância e Juventude

 

 

Ementa:

1) Conflito de atribuições entre a Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital, com atribuições para atuar nos feitos e procedimentos de defesa dos interesses difusos e coletivos da Infância e Juventude, o GEDUC – Grupo de Atuação Especial de Educação, que tem, entre as suas atribuições, a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses difusos e coletivos relacionados a todos os níveis e modalidades da educação básica e, no que couber, da educação superior, com todas as prerrogativas funcionais inerentes, nos termos do Ato Normativo nº 672-PGJ-CPJ, de 21 de dezembro de 2010, com as alterações introduzidas pelo Ato Normativo n° 700-PGJ-CPJ, de 31 de maio de 2011, e, ainda, a Promotoria de Justiça do Foro Regional de São Miguel Paulista com atribuições na área da Infância e Juventude.

2) Ação que tem por objetivo a tutela de direitos individuais indisponíveis e homogêneos de crianças.

3) Ato Normativo n° 700-PGJ-CPJ, de 31 de maio de 2011, que teve por fim corrigir a redação do Ato Normativo n. 672, de 21 de dezembro de 2010, que criou o GEDUC.

4) Explicitação da atribuição do GEDUC para a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a proteção dos interesses difusos e coletivos, com expressa supressão da atribuição para a tutela de direitos individuais homogêneos.

5) Criação do grupo de atuação especial para, expressamente, atuar em questões ligadas ao direito fundamental à educação “para a definição de políticas globais de atuação, concentração de dados, tratamento uniforme da matéria e aproveitamento de experiências já empreendidas com resultados positivos”, conforme consta da exposição de motivos do Ato Normativo n. 672/10.

6) Grupo Especial que deve atuar em casos de transcendência e relevância social, nota característica dos interesses transindividuais próprios (difusos e coletivos).

7) Conveniência de que permaneça no âmbito de Promotorias de Justiça a tutela de interesses individuais indisponíveis e individuais homogêneos.

8) Atribuição, portanto, da Promotoria de Justiça suscitada (5º Promotor de Justiça Cível do Foro Regional de São Miguel Paulista), nos termos do ATO N.º 044/2006 - PGJ, de 9 de junho de 2006.

 

 

 

Vistos.

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições surgido durante a tramitação, perante a Vara da Infância e da Juventude do Foro Regional de São Miguel Paulista, de ação civil pública proposta Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital em face da Municipalidade de São Paulo, tendo por finalidade a determinação, à requerida, de obrigação de matricular todas as crianças arroladas em unidade de ensino infantil adequada à respectiva faixa etária.

Os autos foram remetidos ao GEDUC – Grupo de Atuação Especial de Educação, que concluiu tratar-se de demanda que tutela direitos individuais homogêneos e, então, encaminhou os autos ao Promotor de Justiça da Infância e da Juventude do Foro Regional de São Miguel Paulista.

Em manifestação lançada a fls. 426 dos autos, o Promotor de Justiça do Foro Regional negou suas atribuições: “A atribuição não é do GEDUC. Também não é deste Promotor. Encaminhem-se os autos à PJ que propôs a demanda (PJ de Interesses Difusos e Coletivos da Infância) a quem compete a devida manifestação nos autos”.

Por isso, foram os autos remetidos à Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital, que também negou suas atribuições, sob a conclusão de que, “com a criação do Grupo de Atuação Especial de Educação – GEDUC, a Promotoria de Justiça não tem mais atribuição para atuar nas questões relacionadas à educação, como é o caso em tela” (fls. 432).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).

De antemão, verifica-se que está, no caso, configurado o conflito de atribuições, embora seja extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente como princípio constitucional no art.127 §1º da CR/88.

O respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho de suas funções de execução (cf. art.19 I d da Lei Complementar Estadual nº734/93).

Deste modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta configuração, bem como da iniciativa dos órgãos de execução envolvidos, no sentido de suscitar o conflito.

Essa é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.486/487).

A questão da necessidade de respeito à independência funcional encontra bom exemplo nos casos em que há negativa do membro do Ministério Público para oficiar em determinado feito, de natureza cível.

O fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a analogia com o art.28 do Código de Processo Penal (Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson Garcia, Ministério Público, cit., p.73).

Mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica”(Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969,p.626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ªed., Milano, Giuffrè, 1993, p.312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores e Procuradores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

O pedido inicial foi deduzido perante a Vara da Infância e da Juventude do Foro Regional de São Miguel Paulista, em face de representações encaminhadas à Promotoria de Justiça pelo Conselho Tutelar de Ermelino Matarazzo, “indicando expressivo contingente de crianças que não conseguiram vagas na rede pública de ensino infantil, malgrada a insistente busca dos respectivos pais” (fls. 02).

O fundamento da ação foi a “legitimidade atribuída ao Ministério Público, nos termos do art. 201, incisos V e IX, do Estatuto da Criança e do Adolescente, para tutela de direitos individuais e metaindividuais da infância e da juventude” (fls. 04).

A ação civil pública foi proposta pela Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital para obrigar a Municipalidade de São Paulo a matricular todas as crianças arroladas em unidade de ensino infantil adequada à respectiva faixa etária.

Os autos foram remetidos ao GEDUC – Grupo de Atuação Especial de Educação, que concluiu tratar-se de demanda que tutela direitos individuais homogêneos, fugindo às atribuições específicas do grupo.

Por sua vez, o Promotor de Justiça do Foro Regional negou suas atribuições, afirmando competir à Promotoria de Justiça da Capital, autora da demanda, prosseguir no feito.

Com a remessa dos autos à Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital, também ocorreu a afirmação de falta de atribuições, sob o argumento de que, “com a criação do Grupo de Atuação Especial de Educação – GEDUC, a Promotoria de Justiça não tem mais atribuição para atuar nas questões relacionadas à educação, como é o caso em tela” (fls. 432).

Portanto, caracterizado o conflito de atribuições entre a Promotoria de Justiça da Infância e Juventude da Capital, com atribuições para atuar nos feitos e procedimentos de defesa dos interesses difusos e coletivos da Infância e Juventude, o GEDUC – Grupo de Atuação Especial de Educação, que tem, entre as suas atribuições, a de promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses difusos e coletivos relacionados a todos os níveis e modalidades da educação básica e, no que couber, da educação superior, com todas as prerrogativas funcionais inerentes, nos termos do Ato Normativo nº 672-PGJ-CPJ, de 21 de dezembro de 2010, com as alterações introduzidas pelo Ato Normativo n° 700-PGJ-CPJ, de 31 de maio de 2011 e, ainda, a Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude do Foro Regional de São Miguel Paulista (atribuições do 5º Promotor de Justiça, nos termos do ATO N.º 044/2006 - PGJ, de 9 de junho de 2006).

Registre-se que a alteração introduzida pelo Ato Normativo n° 700-PGJ-CPJ, de 31 de maio de 2011, teve por fim corrigir a redação do Ato Normativo n. 672, de 21 de dezembro de 2010, que no inciso I do art. 2º previa a atribuição do GEDUC para a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a proteção dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos relacionados a todos os níveis e modalidades da educação básica e, no que couber, da educação superior, com todas as prerrogativas funcionais inerentes.

Ocorre que se entendeu inadequada a manutenção da expressão “e individuais homogêneos” porque a ideia motriz da criação do grupo de atuação especial foi a atuação em questões ligadas ao direito fundamental à educação “para a definição de políticas globais de atuação, concentração de dados, tratamento uniforme da matéria e aproveitamento de experiências já empreendidas com resultados positivos”, conforme consta da exposição de motivos do Ato Normativo n. 672/10.

         Ou seja, a intenção foi priorizar e concentrar no GEDUC a atuação que revelasse transcendência e relevância social, nota característica dos interesses transindividuais próprios (difusos e coletivos).

         Afirmou-se, ainda, a conveniência de que remanescesse no âmbito de Promotorias de Justiça a tutela de interesses individuais homogêneos – o que, ademais, consulta ao interesse público.

         Por essa razão foi encaminhado ao colendo Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça proposta para alteração do inciso I do art. 2º do Ato Normativo n. 672/10 para, suprimindo a expressão “e individuais homogêneos”, constar a seguinte redação:

“Art. 2º. Caberão ao GEDUC as seguintes atribuições:

I - promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses difusos e coletivos relacionados a todos os níveis e modalidades da educação básica e, no que couber, da educação superior, com todas as prerrogativas funcionais inerentes”. (NR)

Posto isso, correta a conclusão do GEDUC no sentido de não ter atribuição para a tutela de direitos individuais homogêneos, que permanece com a Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude.

A Promotoria da Infância e da Juventude da Capital, anteriormente, tinha atribuições para tutelar os “interesses metaindividuais das crianças e adolescentes”, de acordo com o disposto no art. 295, IV, da Lei Complementar Estadual n. 734/93, bem como em função do ato de criação (ATO N. 191/98 do PGJ, que homologou a implantação da Promotoria de Justiça dos Interesses Difusos e Coletivos da Infância e da Juventude da Capital).

Na atualidade, o ATO Nº 43/2011 – PGJ, de 30 de maio de 2011, atribuição ao 15º e ao 16º Promotores de Justiça da Promotoria de Justiça de Infância e da Juventude da Capital a atribuição para atuar em “feitos e procedimentos de defesa dos interesses difusos e coletivos da Infância e Juventude”.

Por sua vez, a Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude do Foro Regional de São Miguel Paulista, nos termos do ATO N.º 044/2006 - PGJ, de 9 de junho de 2006, tem atribuições para atuar nos “feitos da Vara da Infância e Juventude afetos aos Juízes Titular e Auxiliar”.

Sendo assim, a atribuição para atuar em feito que tramita no Foro Regional de São Miguel Paulista, perante a Vara da Infância e da Juventude, que não se refere à tutela de direitos difusos e coletivos no sentido estrito, é do 5º Promotor de Justiça do Foro Regional de São Miguel Paulista.

Posto isso, conheço do conflito de atribuições e decido que a atribuição para se manifestar nos autos é da Promotoria de Justiça da Infância e Juventude do Foro Regional de São Miguel Paulista.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, Promotoria de Justiça da Infância e Juventude do Foro Regional de São Miguel Paulista, a atribuição para oficiar nos autos.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 11 de agosto de 2011.

 

Álvaro Augusto Fonseca de Arruda

Procurador-Geral de Justiça

Em exercício

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