Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº 107011/09
(Inquérito civil n.
19/09)
Suscitante: 4º Promotor de Justiça do Consumidor da
Capital
Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Marília
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital; suscitado: 2º. Promotor de Justiça de Marília. Inquérito civil instaurado para apurar irregularidades nos aparelhos telefônicos e serviços prestados pela empresa Telefonia Telefônica em Marília, inclusive atendimento à população, por intermédio dos “orelhões”. Encaminhamento dos autos à Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital, com suporte no art. 93, II, da Lei n. 8.078/90.
2. Inexistência de dano de âmbito regional a legitimar a atuação da Promotoria Especializada da Capital. As regras de determinação da competência não valem apenas para a propositura de ações judiciais. Servem, também, como orientação para determinar o órgão competente para a instauração de inquérito civil e a realização de termo de ajustamento de conduta. Em respeito ao princípio do promotor natural, somente o promotor de justiça lotado no local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano ou o ilícito é que poderá instaurar inquérito civil para apuração dos fatos e seguir nas investigações.
3. No caso dos direitos transindividuais, pela sua dimensão social, política e jurídica, resta claro o interesse público no sentido que a competência territorial se exprima como absoluta, justificando-se essa opção para: a) facilitar a instrução probatória; b) permitir que a demanda seja julgada pelo juiz que de alguma forma teve contato com o dano ou ameaça de dano a direito transindividual. É a lição da melhor doutrina: “È chiaro che quando il legislatore prevede criteri di competenza per territorio inderogabili, manifesta l’esistenza di un interesse pubblicistico al rispetto di tali criteri.” (PISANI, Andrea Proto. Lezioni di Diritto Processuale Civile. Quinta edizione. Napoli: Jovene, 2006, p. 272),.
4. Ausência de elementos aptos a demonstrar dispersão suficiente para justificar a intervenção da Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital. Inaplicabilidade do art. 93, II, da Lei n. 8.078/90.
5. Conflito conhecido e dirimido, declarando caber ao suscitado, 2º Promotor de Justiça de Marília, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.
Vistos,
1)Relatório.
Tratam estes
autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 4º
Promotor de Justiça do Consumidor da Capital e como suscitado o 2º.
Promotor de Justiça de Marília.
O 2º.
Promotor de Justiça de Marília instaurou inquérito civil para apurar as más
condições de uso dos aparelhos telefônicos e serviços prestados pela empresa Telefonia Telefônica em Marília,
inclusive atendimento à população, por intermédio dos “orelhões” (Portaria n. 19/09
– 2º Promotoria de Justiça de Marília – Curadoria de Proteção e Defesa do
Consumidor de Marília – fls. 02).
A princípio,
o 2º. Promotor de Justiça de Marília oficiou à Empresa Telefônica solicitando informações e providências (fls.07),
ao que referida companhia respondeu, trazendo dados de Bauru e Marília. Quanto
a este último município, a Empresa
Telefônica mencionou que as irregularidades da prestação do serviço
decorreram do considerável índice de vandalismo apurado no mês de março de 2009
(37,86%).
Manifestação
do representante a fls. 18/19.
Em breve
manifestação, o 2º. Promotor de Justiça de Marília determinou
o encaminhamento dos autos à Curadoria do Consumidor da Capital, com suporte no
art. 93, II, da Lei n. 8.078/90 (fls. 20).
Encaminhados
os autos ao 2º Promotor de Justiça do
Consumidor da Capital, este determinou a remessa do expediente ao 5º Promotor de Justiça do Consumidor da
Capital (fls. 23). Por sua vez, ao receber o protocolado, o 5º Promotor de Justiça do Consumidor da
Capital determinou a remessa dos autos ao 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, o qual, por final,
suscitou o conflito negativo de atribuições (fls. 26/29).
Argumenta o
suscitante - 4º Promotor de Justiça do
Consumidor da Capital-:
“A notícia do mau estado de conservação e/ou funcionalidade dos telefones públicos, pelos dados que dispomos nesta Especializada, não é endêmica a ponto de se buscar uma solução para o Estado inteiro, razão pela qual não se justifica a atuação desta Especializada no presente investigatório” (fls. 28).
É
o relato do essencial.
2)Fundamentação.
A
doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do
Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado
ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que
deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério
Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).
Em
outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in
abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução
do Ministério Público “(a) dois ou mais
deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias
atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos
um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que
já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público,
6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).
Embora
os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional,
o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior
quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados
aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem,
com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder
hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.
Como
anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade
administrativa superior para “distribuir
e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus
agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu
quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e
corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração
Pública” (Direito Administrativo
Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda,
a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.
421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito
Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.
O
reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano
estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado,
anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia
estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na
medida em que “questo vincolo, fondandosi
su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire
amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa
che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo
dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII,
Milano, Giuffre, 1969, p. 626).
Do
mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a
existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos,
de um “potere di risoluzione di conflitti
tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività
degli stessi” (Diritto Amministrativo,
v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).
O
reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo
algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de
Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações
processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de
qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa
atuação.
Em
outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público
atuar, mas pode e deve dizer se deve
ou não atuar, e qual o membro ou
órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.
No
caso em análise, impende saber se há ou não dano de âmbito regional a legitimar
a atuação da Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital.
As
regras de determinação da competência não valem apenas para a propositura de
ações judiciais. Servem, também, como orientação para determinar o órgão
competente para a instauração de inquérito civil e a realização de termo de
ajustamento de conduta. Em respeito ao princípio do promotor natural, somente o
promotor de justiça lotado no local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano ou o
ilícito é que poderá instaurar inquérito civil para apuração dos fatos.
O
tema da competência chegou a ser considerado o calcanhar-de-aquiles do direito
processual civil coletivo, tamanha a discussão causada para delimitar os
contornos da expressão “competência funcional” e danos de âmbito “nacional” ou
“regional”.
Autorizada doutrina sustenta que a competência no processo
coletivo adquire peculiaridades próprias quando comparada com o sistema
tradicional do processo civil, “com autonomia praticamente completa e bases
próprias para especificação” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: RT, 2002, p. 215).
Observou, com sensibilidade, Elton Venturi:
“De fato, seja em função da pouca clareza do tratamento legislativo dos critérios de fixação da competência, alicerçados em conceitos fluidos ou indeterminados (local do dano, dano local, dano regional, dano nacional), seja em função da natural problematização política que desperta, que motivou, inclusive, uma indevida porém intencional confusão entre os institutos da competência jurisdicional e da extensão subjetiva da coisa julgada, a competência jurisdicional para a tutela coletiva está a merecer análise aprofundada, tanto de lege lata como de lege ferenda” (VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos, p.266).
O processo civil coletivo, portanto, não segue a regra tradicional do processo civil individual brasileiro, que somente admite a modificação da competência pela conexão nos casos de competência relativa, e não absoluta.
Com efeito. Nada impede que a competência territorial seja qualificada como absoluta, sempre que haja um motivo de interesse público envolvido. Cabe ao direito positivo determinar os casos em que a competência é absoluta ou relativa, assim como determinar as hipóteses em que se permitirá sua modificação, uma vez que se trata de posicionamento jurídico-positivo e não lógico-jurídico.
No caso dos direitos transindividuais, pela sua dimensão social, política e jurídica, resta claro o interesse público no sentido que a competência territorial se exprima como absoluta. Nas palavras de Proto Pisani:
“È chiaro che quando il legislatore prevede criteri di competenza per territorio inderogabili, manifesta l’esistenza di un interesse pubblicistico al rispetto di tali criteri.” (PISANI, Andrea Proto. Lezioni di Diritto Processuale Civile. Quinta edizione. Napoli: Jovene, 2006, p. 272).
Na mesma linha, Leonel:
“Apenas a princípio a competência territorial tem natureza relativa, por ser determinada em função do interesse das partes. Quando determinada em função do interesse público, como quando é fixada pelas funções do juiz no processo ou por fases deste, ganha conotação funcional, tornando-se absoluta e improrrogável” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 217).
Justifica-se a opção pela competência absoluta pelas seguintes razões: a) facilitar a instrução probatória; b) permitir que a demanda seja julgada pelo juiz que de alguma forma teve contato com o dano ou ameaça de dano a direito transindividual.
O local do resultado coincide, muitas vezes, “com o domicílio das vítimas e da sede dos entes e pessoas legitimadas, facilitando o acesso à justiça e a produção da prova” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Da defesa do consumidor em juízo. In: Benjamin, A H V; Fink, D R; Filomeno, J G; Grinover, Ada Pellegrini; Nery Júnior, N; Denari, Z. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004 , p. 877).
Hugo Nigro Mazzilli, no mesmo rumo, ensina que o escopo de fixar o local do dano “é facilitar o ajuizamento da ação e a coleta da prova, bem como assegurar que a instrução e o julgamento sejam realizados pelo juízo que maior contato tenha tido ou possa vir a ter com o dano efetivo ou potencial aos interesses transindividuais” (MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 207.
Leonel acrescenta que a fixação da competência no local do dano tem por escopo “facilitar a instrução, pois a proximidade do juízo com relação à prova milita em favor de sua elaboração. Como nas demandas coletivas há maior interesse público e preocupação com a busca da verdade real, adequado propiciar a proximidade entre o juiz e o dinamismo dos atos de colheita das provas. Isto implica o respeito máximo ao direito constitucional de ação e à garantia do acesso à justiça e à ordem jurídica justa”(LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 220).
A intenção de fixar o foro do local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano ou o ilícito como o competente para a causa foi a de seguir o critério do resultado, “que vai coincidir, em muitos casos, com o do domicílio das vítimas e da sede dos entes e pessoas legitimadas, facilitando o acesso à justiça e a produção da prova”(GRINOVER, Ada Pellegrini. “Da defesa do consumidor em juízo”. In: Benjamin, A H V; Fink, D R; Filomeno, J G; Grinover, Ada Pellegrini; Nery Júnior, N; Denari, Z. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004 , p. 877).
Pois bem. No caso ora sob análise não há nenhuma informação
no sentido de que o dano tenha dispersão suficiente para justificar a intervenção
da Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital, sobretudo porque o próprio
objeto da investigação circunscreve-se à qualidade dos serviços prestados pela
empresa investigada na municipalidade de Marília. Em virtude das regras acima
expostas, nota-se competir ao 2º Promotor de Justiça de Marília prosseguir na
investigação, em seus ulteriores termos.
3)Decisão.
Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao suscitado, 2º Promotor de Justiça de Marília, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.
Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.
Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 14 de setembro de
2009.
Fernando Grella
Vieira
Procurador-Geral
de Justiça
ef