Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 112.709/09

Suscitante: 10º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 29º Promotor de Justiça de Guarulhos

Ementa:

1)Conflito positivo de atribuições. 10º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e 29º Promotor de Justiça de Guarulhos (suscitado).

2)Ato de improbidade administrativa. Aprovação de EIA-RIMA, pelo CONSEMA, relativamente ao projeto denominado “Trem de Guarulhos e Expresso Aeroporto”.

3)Ação de improbidade administrativa. Ausência de regra expressa de competência na Lei nº 8429/92. Aplicação subsidiária da Lei nº 7347/85. Competência do foro do local do dano. Ato administrativo praticado na cidade de São Paulo. Lesão, em tese, a princípios da Administração Pública (art. 11 da Lei nº 8429/92). Local do dano que se identifica com a sede da entidade de direito público.

4)Conflito positivo conhecido e dirimido, determinando-se caber ao suscitante prosseguir nas investigações.

Vistos,

1)Relatório.

Tratam estes autos de conflito positivo de atribuições, figurando como suscitante a DD. 10º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, e como suscitado o DD. 29º Promotor de Justiça de Guarulhos.

O DD. 29º Promotor de Justiça de Guarulhos (suscitado) instaurou, de ofício, o Inquérito Civil nº 85/09, tendo como objeto a apuração de ato de improbidade administrativa relativamente à aprovação de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) do projeto “Trem de Guarulhos e Expresso Aeroporto” (cópia da portaria às fls. 6/10).

Na Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital foi instaurado outro procedimento (PJPP-CAP nº 513/2009), distribuído ao DD. 10º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante), com o mesmo objeto.

Este último foi remetido, pelo suscitante, esta Procuradoria-Geral de Justiça, argumentando-se em síntese que: (a) a investigação versa sobre eventual prática de ato de improbidade administrativa por integrantes do Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA), consistente na aprovação indevida do EIA-RIMA relativo ao projeto “Trem de Guarulhos e Expresso Aeroporto”, elaborado pela empresa GEOTEC Consultoria Ambiental; (b) o CONSEMA é vinculado à Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, localizada na cidade de São Paulo; (c) a aprovação do EIA-RIMA, assim, deu-se na cidade de São Paulo, o que permite concluir que a atribuição para a investigação é da Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, e não da Promotoria de Justiça de Guarulhos; (d) eventual ação civil por improbidade administrativa deverá ser proposta no foro da comarca da Capital, e não em Guarulhos, visto que naquela, e não nesta, aperfeiçoou-se o ato administrativo.

O DD 29º Promotor de Justiça de Guarulhos (suscitado), sustentou que a hipótese se encontra na esfera de suas atribuições, destacando em suma que: (a) ao vislumbrar ilegalidades no Estudo e Impacto Ambiental e respectiva aprovação pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente, com a conseqüente expedição de licença ambiental prévia para os projetos “Expresso Aeroporto e Trem de Guarulhos”, ajuizou ação civil pública, com pedido de liminar, em face da Fazenda do Estado de São Paulo, Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), e da empresa GEOTEC – Consultoria Ambiental; (b) os danos ambientais que a ação civil pretende prevenir ocorrerão, caso realizadas as obras, nas cidades de Guarulhos e São Paulo; (c) está prevento para o caso, nos termos do art. 114 § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93, tendo em vista que primeiro instaurou inquérito civil e ajuizou ação civil pública a respeito dos fatos; (d) com a ação coletiva, o juízo de direito da 1ª Vara da Fazenda Pública de Guarulhos tornou-se competente, por prevenção, para todas as eventuais ações conexas, nos termos do art. 2º, parágrafo único da Lei nº 7347/85; (e) o conflito de atribuições é apenas aparente, devendo ser resolvido em conformidade com o interesse preponderante ou mais especializado, conforme disposto no art. 114, §§ 2º e 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93, que na hipótese é a Promotoria de Justiça do Meio Ambiente de Guarulhos; (f) a ação de improbidade deverá ser proposta no local do dano, que não se confunde com o local do domicílio, ou mesmo da sede, do agente público ímprobo; (g) os danos decorrentes do ato de improbidade administrativa são eminentemente ambientais e se estendem pelas comarcas da Capital e de Guarulhos, o que leva à solução do conflito em favor de Guarulhos, tendo em vista a prevenção decorrente da propositura da ação ambiental (fls. 22/26).

Juntou ainda, o suscitado, cópias da ação civil pública ambiental por ele proposta em face da Fazenda do Estado de São Paulo, Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), e da empresa GEOTEC – Consultoria Ambiental (fls. 27/69).

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

Está configurado, no caso, o conflito de atribuições.

Isso decorre do posicionamento de diversos órgãos de execução do Ministério Público, quando “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487). No mesmo sentido Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196/197.

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

No caso em exame, é oportuno destacar com precisão qual é o objeto da investigação, para, a partir daí, definir-se o conflito.

O objeto da investigação é a verificação quanto à ocorrência ou não de ato de improbidade administrativa, por força da aprovação, pelo CONSEMA, de EIA-RIMA relativo ao projeto denominado “Trem de Guarulhos e Expresso Aeroporto”.

É fato notório, divulgado através dos meios de comunicação, que através do “Trem de Guarulhos e Expresso Aeroporto” pretende-se o estabelecimento de ligação ágil, mediante transporte ferroviário através de duas novas linhas, de Guarulhos ao Centro da cidade de São Paulo.

Assim, eventual impacto ambiental e urbanístico que decorrerá da implantação do referido projeto se concretizará não apenas na cidade de São Paulo, ou exclusivamente em Guarulhos, mas em ambas.

Dessa forma, quanto a eventuais danos ao meio ambiente ou em perspectiva urbanística, tomando como parâmetro a idéia de que o ato em tese lesivo produzirá efeitos em mais de uma cidade, torna-se viável a aplicação da regra da prevenção, prevista no art. 2º, parágrafo único da Lei nº 7347/85.

Essa conclusão é pertinente tanto para a definição do foro competente para a ação coletiva, como para a identificação do órgão de execução do Ministério Público que poderá investigar o caso.

A questão é diversa, entretanto, quando considerado eventual ato de improbidade administrativa consistente, nos termos da portaria de instauração de inquérito civil pelo DD. 29º Promotor de Justiça de Guarulhos, na aprovação alegadamente irregular do EIA-RIMA.

Embora a Lei de Improbidade Administrativa não traga norma específica para a definição de competência, é viável aplicar subsidiariamente a regra prevista no art. 2º da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7347/85), que indica a competência funcional (absoluta) do foro do local do dano.

O problema reside então em saber qual o foro que se identifica com o local do dano, nas hipóteses de atos de improbidade administrativa.

No caso de ato de improbidade em que haja enriquecimento ilícito do agente público (art. 9º da Lei nº 8429/92), é razoável sustentar que o dano se verifica em todo e qualquer local onde tenha sido praticado ato que induziu ao acréscimo patrimonial indevido.

A situação é diversa, entretanto, quanto se trata de ato que gera dano ao erário, ou mesmo por simples violação a princípios aplicáveis à Administração Pública (art. 10 e 11 da Lei nº 8429/92).

Nesses casos, a prática do ato ímprobo afeta diretamente a própria entidade pública envolvida, à qual se encontra funcionalmente vinculado o agente público. Nesse contexto, mostra-se lícito concluir que a sede daquela entidade administrativa identifica-se com o foro do local do dano.

Esse é o sentido das ponderações de Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves, quando assentam que “a questão da competência territorial para a ação de improbidade, à falta de regra específica na Lei nº 8429/92 e tendo em conta o regime de mútua complementariedade entre as ações exercitáveis no âmbito da jurisdição coletiva, demanda a incidência do art. 2º da Lei nº 7347/85, supra, podendo considerar-se como local do dano, numa primeira aproximação interpretativa, a sede da pessoa jurídica de direito público lesada pela improbidade (Improbidade Administrativa, 3ª Ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006, p. 698, g.n.). No mesmo sentido ainda, o entendimento de Wallace Paiva Martins Júnior, Probidade Administrativa, 3ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 412.

Acrescente-se ainda, conforme pontuado por Sérgio Turra Sobrane, que nos casos em que a improbidade administrativa foi cometida em comarca diversa daquela em que o dano ambiental se verificou, quando “órgãos ambientais situados na Capital ou em centros regionais analisem empreendimentos a serem implantados em outras comarcas”, não se deve olvidar que “a atuação do Promotor do Meio Ambiente está adstrita ao local do dano, que fixa, inclusive, a competência do Juízo (art. 2º da Lei nº 7347/85). Não lhe seria possível, assim, formular pedido cumulando a pretensão de imposição das sanções da Lei de Improbidade Administrativa por atos ímprobos praticados em outras Comarcas (“Improbidade Administrativa em matéria ambiental”, em Manual Prático da Promotoria do Meio Ambiente, v. 1, São Paulo, Imprensa Oficial, 2005, p. 143, g.n.).

Em outras palavras, é possível em tese, em uma única ação civil pública, a cumulação de pedidos de tutela específica da obrigação com imposição de sanções decorrentes de atos de improbidade administrativa, desde que o dano ambiental e os atos de improbidade se tenham verificado no mesmo foro.

Isso não será viável, entretanto, se concretizados em foros distintos, mormente considerando o caráter absoluto da regra de competência prevista no art. 2º da Lei da Ação Civil Pública, e em decorrência disso a impossibilidade de prorrogação, que só se aplica aos casos de competência relativa, nos termos do art. 102 do CPC.

No sentido da impossibilidade da prorrogação da competência, quando absoluta, confira-se: Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, cit., p. 82; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, cit., p. 284; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, cit., p. 155; Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, vol I, 47ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2007, p. 207; Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, vol I, 4ª ed., São Paulo, Malheiros, 2004, p. 441; Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, vol I, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 345; entre outros.

Nem serviria, para chegar à conclusão oposta, a afirmação de que com a propositura da ação civil pública ambiental na comarca de Guarulhos, teria ocorrido a prevenção, tornando forçoso o ajuizamento de eventual ação por ato de improbidade administrativa perante o juízo ao qual foi distribuída a primeira demanda coletiva.

A regra da prevenção só é aplicável aos casos em que há vários juízos abstratamente competentes. Nessa situação, com o primeiro contato com o caso, um deles se torna concretamente competente. Essa premissa impede a aplicação da prevenção quando há incompetência absoluta de um dos juízos em pauta.

Nesse sentido, confira-se na doutrina: Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, cit., 83; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, cit., p. 276; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, cit., 193 e ss., Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, vol. I, cit., p. 350; Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil, vol. I, cit., p. 209/210; Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, vol. I, cit., p. 442/444; Moacyr Amaral Santos, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, vol. 1, 25ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 260/261; entre inúmeros outros.

A regra de competência funcional relativa às ações coletivas exige, assim, em casos dessa natureza, que a ação civil postulando proteção para o meio ambiente lesado seja proposta no foro onde se deu o dano ambiental, e a ação pugnando pela aplicação das sanções decorrentes da improbidade administrativa seja ajuizada no foro onde ocorreu o ato de improbidade.

Sendo tais foros distintos e observado o caráter absoluto da regra de competência no processo coletivo, não se mostra possível falar em modificação por meio de prorrogação, e tampouco em prevenção.

Daí, como consequência, a identificação de órgãos distintos para a consecução de cada uma das atribuições ministeriais, nessa hipótese específica.

Dessa forma, o conflito será dirimido, declarando-se caber ao DD. 10º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital prosseguir na investigação relativamente à apuração da ocorrência de ato de improbidade administrativa.

3)Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito positivo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, DD. 10º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se a ementa. Comunique-se.

Cumpra-se, providenciando-se a restituição destes autos, bem como a remessa do inquérito civil instaurado na Promotoria de Justiça de Guarulhos, ao suscitante.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 13 de outubro de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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