Protocolado n. 114.991/2008

Conflito positivo de atribuições

 

Suscitante: Fundação de Apoio à Tecnologia - FAT

 

Suscitado: 15º Promotor de Justiça de Sorocaba

Conflito positivo de atribuições. Ré em ação civil pública por ato de improbidade administrativa, representa suscitando conflito positivo de atribuições entre Membros do Ministério Público, subscritor da ação civil pública – 15º Promotor de Justiça de Sorocaba – e a Promotoria de Justiça Cível da Capital, exercente de funções de Promotoria de Justiça de Fundações. O conflito de atribuições somente se caracteriza na hipótese de dois Membros do Ministério Público pretenderem atuar no mesmo feito ou, ao contrário, não aceitarem a atribuição. Terceiro não pode substituir a vontade de Membro do Ministério Público. Fatos, ademais, distintos e capazes por si só de justificar a atuação, tanto para velar pela probidade administrativa (atuação marcada pelo local do dano), quanto da fiscalização in abstrato das fundações (art. 66 do Código Civil). Conflito não conhecido.

 

1. Relatório

                                                         A Fundação de Apoio à Tecnologia – FAT, pessoa jurídica de direito privado, com sede na Capital, representou suscitando conflito positivo de atribuições entre Membros do Ministério Público. Diz que o 15º Promotor de Justiça de Sorocaba ajuizou ação para imposição das penas relativas à improbidade administrativa, cumulada com de extinção de fundação, com pedido de tutela antecipada parcial (cópia fls. 53/81), sendo certo que o velamento das fundações sediadas na Capital é da Promotoria de Justiça Cível, razão pela qual enxerga dupla atuação de Órgãos ministeriais. Considerando que o Ministério Público é uno e indivisível, requer o conhecimento do conflito de atribuições, dirimindo-o para fixar a qual Órgão Ministerial deve orientar sua gestão.

 

                                                         Juntou cópia de seus estatutos (fls. 6/16) e a Promoção de Arquivamento do Pt nº. 1111/2006 (Análise e fiscalização do cumprimento das finalidades estatutárias), que tramitou pela Promotoria de Justiça Cível.

 

                                                         É a síntese do necessário.

 

2. Fundamentação

 

                                                         Desde logo, verifica-se que não está, no caso, configurado o conflito de atribuições.

 

                                                         Como se sabe, é extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente como princípio no art. 127, §1º da Constituição.

 

                                                         O respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho de suas funções de execução (cf. art. 19, inc. I, alínea “d” da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

 

                                                         Deste modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta configuração, bem como da iniciativa dos órgãos de execução envolvidos, no sentido de suscitar o conflito.

 

                                                         Essa é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar[1] (cf. g.n.).

 

                                                         Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)”[2].

 

                                                         A questão da necessidade de respeito à independência funcional encontra bom exemplo nos casos em que há negativa do membro do Ministério Público para oficiar em determinado feito, de natureza cível. O fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a analogia com o art. 28 do Código de Processo Penal[3].

 

                                                         Mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

 

                                                         Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública”[4].

 

                                                         O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica”[5]. Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi”[6].

 

                                                         O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores e Procuradores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

 

                                                         Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

 

                                                         No caso em exame, os autos se encontram tramitando regularmente perante uma das Varas da Comarca de Sorocaba, havendo notícia de liminar deferida, sequer existindo, por outro lado, manifestação da Promotoria de Justiça Cível, a qual detém a atribuição de velar pelas fundações sediadas na Capital.

 

                                                         Sem a manifestação dos órgãos de execução, não se configura o conflito de atribuições, impedindo seu conhecimento.

 

                                                         De todo modo, bom deixar claro que a atuação ministerial na proteção ao patrimônio público, inclusive com imposição de sanções previstas na Lei nº 8.429/92, implica atuar em relação aos beneficiários (art. 3º), se o caso, não sendo possível limitar o pedido expressado em ação por Promotor de Justiça, sob pena de indevida interferência do Procurador-Geral de Justiça no Órgão de execução. Como se depreende do acima afirmado, a independência funcional é valor de excepcional relevância para o Ministério Público e não pode ser conspurcado.

 

3) Decisão.

 

                                                         Diante do exposto, não conheço do conflito de atribuições.

 

                                                         Publique-se. Comunique-se. Registre-se e encaminhe-se cópia à Requerente.

 

                                                         Providencie-se remessa de cópias para os dignos Promotores de Justiça mencionados no requerimento, para conhecimento.

 

São Paulo, 3 de outubro de 2008.

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça



[1] GARCIA. Emerson. Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196.

[2] MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487.

[3] Nesse sentido: MAZZILLI, Hugo Nigro. Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson Garcia, Ministério Público, op. cit., p.73)

[4] MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.121. Confira-se ainda, a respeito desse tema: ARAÚJO, Edmir Netto de.  Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.106/109.

[5] MARONGIU. Giovanni. Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969,p. 626.

[6] GIANNINI. Massimo Severo. Diritto Amministrativo, v. I, 3ªed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 12.