Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 116.177/08

(Protocolado nº 4914/08 – SMA nº 43.0156.0000853/08.9 – Ribeirão Preto)

(Procedimento nº 09/08 – Descalvado)

 

Suscitante: 8º Promotor de Justiça de Ribeirão Preto

Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Descalvado

 

Ementa:

1)Conflito de atribuições. Procedimento investigatório. Notícia de enriquecimento indevido de servidor público, por evolução patrimonial incompatível com a remuneração (art.9º VII da Lei nº8429/92).

2)Art.9º VII da Lei nº8429/92. Hipótese em que a tipificação do ato se dá residualmente. Indefinição quanto ao local da prática de atos que teriam implicado aumento desproporcional do patrimônio. Irrelevância da identificação do local.

3)Lesão aos princípios da Administração Pública. Concretização em todos os locais onde, supostamente, foram verificados fatos ou atos capazes de demonstrar a evolução desproporcional do patrimônio do agente público (sede funcional ou local onde se verificou a aquisição de bens sem lastro patrimonial).

4)Competência funcional para a ação civil pública pelo local do dano, e em caso de conflito, pela prevenção (art.2º e parágrafo único da Lei nº7347/85). Critério similar, previsto em lei, para definição de conflitos de atribuições entre órgãos do Ministério Público (art.114 §3º in fine da Lei Complementar Estadual nº734/93).

5)Conflito conhecido e dirimido, com a declaração de caber ao suscitado (1º Promotor de Justiça de Descalvado) prosseguir no feito, em seus ulteriores termos.

 

 

Vistos.

 

 

1)Relatório.

 

         Tratam estes autos de procedimento investigatório instaurado para apurar a prática de ato de improbidade administrativa, em tese tipificado como enriquecimento ilícito (previsto no art.9º VII da Lei nº8429/92), por ex-policial militar (na época dos fatos lotado no 1º Pelotão da 4ª Companhia do 3º Batalhão de Polícia Rodoviária).

 

         Originariamente, a representação foi direcionada ao DD. 1º Promotor de Justiça de Descalvado, que exerce as funções de Promotor de Justiça da Cidadania daquela comarca, com ofício nº 3ºBPRv-241/06/08, instruído com cópias da Sindicância nº 3ºBPRv-038/06/05, instaurada para apurar a ocorrência de aquisição de bens em valor desproporcional à renda do agente público.

 

         Segundo consta dos autos, durante as investigações realizadas pela própria Polícia Militar, constatou-se que: (a) em 2005 o ex-policial teria adquirido uma camionete GM S-10, posteriormente trocada por um veículo Jeep Grand Cherokee; (b) no referido período, o agente público teria finalizado a construção de um imóvel avaliado em R$ 45.580,47, e possuía depósito em conta corrente, em conjunto com seu genitor, no montante de R$ 33.378,38; (c) no mesmo período o pai do investigado adquiriu veículos Mercedes Bens e Citroen C3, avaliados em R$ 86.613,00; (d) o investigado e seu genitor possuíam, conjuntamente, renda mensal de R$ 2.600,00.

 

         Identificando, em tese, a ocorrência do ato de improbidade previsto no art.9º VII da Lei nº 8429/92, o DD. 1º Promotor de Justiça de Descalvado determinou o encaminhamento dos autos à Promotoria da Cidadania de Ribeirão Preto, alegando que: (a) o investigado, quando da prática dos atos ilícitos na condição de policial militar rodoviário, estava lotado no 1º Pelotão da 4ª Companhia do 3º Batalhão de Polícia Rodoviária, cuja sede fica na cidade de Ribeirão Preto; (b) o investigado jamais prestou serviços na cidade de Descalvado; (c) a representação apenas foi encaminhada, pela Polícia Militar, à Promotoria da Cidadania de Descalvado, por terem sido adquiridos bens móveis e imóveis naquela comarca, e pelo fato de o ex-policial ter conta bancária (Banco Bradesco) junto à agência situada naquele Município.

 

         Recebendo os autos, o DD. 8º Promotor de Justiça de Ribeirão Preto, que exerce as funções de Promotor de Justiça da Cidadania, suscitou o conflito negativo de atribuições, anotando que: (a) o 1º Pelotão da 4ª Companhia do 3º Batalhão da Polícia Rodoviária do Estado possui sede em Ribeirão Preto, mas atua em extenso território, que abrange várias comarcas e municípios; (b) o flagrante pela prática de concussão teria ocorrido na rodovia Anhanguera, em localidade pertencente ao Município de Santa Rita do Passa Quatro; (c) na época dos fatos, o ex-agente público trabalhava na base operacional da Polícia Rodoviária de Santa Rita do Passa Quatro; (d) não há demonstração quanto ao local onde teriam ocorrido os fatos que concretizaram o enriquecimento ilícito; (e) deve ser adotada, como critério para definição, a regra geral do art.94 do CPC, pela qual a ação deve ser proposta no foro do domicílio do réu; (f) todos os bens adquiridos ilicitamente estão situados em Descalvado, de forma que eventual decreto de indisponibilidade e produção de provas poderão ser viabilizados, com maior facilidade, naquela cidade e comarca.

 

         É o relato do essencial.

 

2)Fundamentação.

 

         É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

 

         Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196).

 

         Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão jurisdicional competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço judicial. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

 

         Esta idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2ºvol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

 

         Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a própria lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não haveria razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não partisse de elementos do caso concreto.

 

         Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

 

         A hipótese em exame diz respeito à perquirição quanto à possível prática, por parte do agente público, de ato de improbidade administrativa tipificado, em tese, no art.9º VII da Lei de Improbidade Administrativa.

 

         Segundo tal dispositivo, constitui ato de improbidade “importando enriquecimento ilícito (...) adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público”. Trata-se, na ponderação de abalizada doutrina, de “norma residual para a punição do enriquecimento ilícito no exercício de função pública” (Wallace Paiva Martins Júnior, Probidade administrativa, São Paulo, Saraiva, 2001, p.198).

 

         Como anota Emerson Garcia, nessa hipótese, “a desproporção entre a evolução patrimonial e o subsídio percebido pelo agente erige-se como indício demonstrador da ilicitude daquela”, pois “o legislador deteve-se sobre os resultados da ação, relegando a plano secundário e presuntivo a ação injusta” (Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves, Improbidade administrativa, 3ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris Editora, 2006, p.253).

 

         Dito de outro modo, eventual petição inicial de ação civil por improbidade deverá descrever os elementos configuradores da evolução patrimonial desproporcional do agente, pois essa é a fattispecie eleita pelo legislador para a tipificação do ilícito descrito no art.9º VII da Lei de Improbidade Administrativa.

 

         Por transposição lógica, os fatos aptos à demonstração do resultado tipificado no art.9º VII da Lei nº 8429/92 serão objeto da investigação. E assim como dos elementos da causa se extraem os dados para a delimitação da competência judicial, é do objeto da investigação (rectius = hipótese normativa que caracteriza, em abstrato, o ato de improbidade) é que serão extraídos os aspectos objetivos para a identificação do órgão ministerial com atribuições para conduzir a apuração.

 

         Embora a Lei de Improbidade Administrativa não traga regra específica para a definição de competência, não há dúvida no sentido da aplicação da norma prevista no art.2º da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7347/85), que prevê a competência funcional do “foro do local onde ocorrer o dano”, prevendo ainda o parágrafo único do mencionado dispositivo a aplicação da regra da prevenção para equacionamento de problemas relacionados à conexão, litispendência ou continência entre ações coletivas (Nesse sentido: Rodolfo de Camargo Mancuso, Ação civil pública, 9ªed., São Paulo, RT, 2004, p.79 e ss; Hugo Nigro Mazzilli, A defesa dos interesses difusos em juízo, 11ªed., São Paulo, Saraiva, 1999, p.136 e ss).

 

         E essas regras, em especial a da prevenção, são de extrema utilidade. Os conflitos de interesses que são o pano de fundo da tutela jurisdicional coletiva são dispersos, complexos, e nem sempre claramente delimitáveis. Exigem mecanismos em prol da boa operacionalidade do sistema processual, evitando que as demandas coletivas se percam em discussões formais, deixando de lado a indispensável composição do conflito.

 

         No caso em exame, como já sinalizado, eventual ação deverá descrever as circunstâncias objetivas aptas a demonstrar, in concreto, a configuração do ato de improbidade hipoteticamente previsto no art.9º VII da Lei nº 8429/92. Deverá, portanto, delinear os elementos de fato aptos a indicar que, em determinado período, no exercício de atividade pública, o investigado acumulou patrimônio incompatível com a remuneração que percebia do Estado.

 

         Como apontam o suscitante e o suscitado, há vários dados no caso que poderão ser utilizados para a descrição de tal fato típico concretamente configurado. Entre eles, exemplificativamente, podemos citar: (a) a sede funcional do agente público (unidade da Polícia Militar Rodoviária sediada na cidade de Ribeirão Preto); (b) a aquisição de veículos e de imóvel (ou construção de imóvel) incompatíveis com a remuneração do agente (fatos estes, ao que tudo indica, ocorridos em Descalvado); (d) a existência de contas bancárias (do investigado e de seu genitor) cuja movimentação demonstrou-se suspeita (ambas em agências bancárias em Descalvado); entre outros dados que poderão ser coligidos em diligências ulteriores.

 

         Note-se: não se mostra indispensável, no contexto do ilícito investigado, perquirir sobre outros atos que, especificamente, poderiam configurar outros tipos previstos na Lei de Improbidade Administrativa, como por exemplo, percepção de determinada vantagem econômica para a prática de ato ou omissão quanto a dever de ofício. Na hipótese de obtenção de alguma informação dessa natureza, a conduta típica poderia ser outra, que não aquela prevista no art.9º VII da Lei de Improbidade.

 

         Mas, para a configuração do ilícito objeto da investigação (art.9º VII da Lei nº 8429/92) o que se mostra relevante é a descrição, quando da propositura da ação, da desproporção entre a evolução patrimonial e a renda.

 

         Isso nos levará à conclusão de que qualquer dos elementos da investigação, aptos a demonstrar tal resultado, poderiam servir para a definição do órgão judicial competente para a ação civil, e, conseqüentemente, para identificar o órgão ministerial com atribuições para investigar o ilícito.

 

         Em outros termos, ponderando que os atos de improbidade administrativa tangenciam valores e princípios caros à matriz constitucional da Administração Pública, chegar-se-á à conclusão de que a revelação do ato de improbidade indicará a lesão a tais princípios e valores em todos os lugares onde sua configuração se der.

 

         E na hipótese da evolução patrimonial desproporcional à remuneração (art.9º VII da Lei nº 8429/92), essa lesão aos princípios da Administração Pública, protegidos pela lei de regência, se concretiza tanto no lugar no qual o agente público tem sua sede funcional, como ainda naquele no qual ficou evidenciado o crescimento patrimonial incompatível, ou seja, onde foram depositados os recursos econômicos suspeitos, ou adquiridos bens móveis ou imóveis.

 

         Nessa linha de raciocínio, tanto o suscitante, como o suscitado, têm atribuições para investigar a conduta ilícita que constitui o objeto deste procedimento, na medida em que tanto na cidade de Ribeirão Preto (sede funcional do agente policial) como em Descalvado (local de aquisição de bens que demonstram evolução patrimonial incompatível) revelou-se a lesão aos interesses supra-individuais protegidos pela Lei de Improbidade Administrativa.

 

         Diante desse quadro, o critério da prevenção se apresenta como o mais adequado para a solução do presente conflito negativo de atribuições.

 

         Assim, com a devida vênia quanto aos argumentos lançados no vertente conflito, caberá ao DD. 1º Promotor de Justiça de Descalvado conduzir a investigação e propor, se for o caso, a ação civil pública, visto que lhe foi endereçada, em caráter precípuo, a representação oriunda da Polícia Militar.

 

         Aliás, essa é a regra que decorre do art.114 §3º in fine da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº 734/93).

 

3)Decisão.

 

         Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art.115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao DD. 1º Promotor de Justiça de Descalvado prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

 

         Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

 

         Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 30 de setembro de 2008.

 

 

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça