Conflito de atribuições – Cível

 

Protocolado nº117.698/08

(PJC-CAP nº455/2008)

 

Suscitante: 8º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital

Suscitado: 10º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital

 

Ementa:

1) Conflito negativo de atribuições. Inquérito civil. Investigação que tem como objeto a notícia de pagamento de “propina” para favorecimento em licitações e contratos com a Administração Pública estadual (METRÔ vs ALSTOM).

2)Requisição de cópias de contratos envolvendo a entidade pública e outras empresas. Identificação de possíveis irregularidades, nos contratos e respectivos aditamentos, independentes da notícia relacionada ao pagamento de vantagem ilícita a servidores públicos. Extração de cópias dos contratos e aditamentos, para apurações autônomas, com relação a cada um dos contratos e aditamentos, que envolvem diversas empresas.

3)Conflito negativo suscitado, sob o argumento da prevenção do Promotor de Justiça que requisitou os contratos, bem como a unidade de convicção, economia, e afastamento do risco de conflito lógico de soluções para cada um dos casos.

4)Critérios a adotar na solução do conflito. Necessidade de ponderação e convívio entre as regras relativas à prevenção, a garantia da inamovibilidade e o promotor natural. Adequada interpretação da regra da prevenção, inclusive à luz da conveniência ou não, dada a complexidade da investigação, de unificação das investigações em um único procedimento, e propositura de uma só ação.

5)Mecanismo da prevenção. Equívoco na interpretação de que o órgão ministerial que se antecipa aos demais estará prevento para a investigação de determinado caso concreto, em promotorias em que há vários membros da instituição com atribuições similares.

6)Conflito conhecido e dirimido, declarando-se caber ao suscitante prosseguir na investigação.

 

 

Vistos,

 

1)Relatório.

 

         Os presentes autos (PJC-CAP nº455/2008 – 8º PJ) foram formados a partir de cópias extraídas do inquérito civil PJC-CAP nº204/08, instaurado ex officio pelo DD. 10º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital, que aqui figura como suscitado, com o escopo de apurar “o suposto pagamento de propina a agentes públicos da ELETROPAULO- ELETRICIDADE DE SÃO PAULO e da COMPANHIA DO METROPOLITANO DE SÃO PAULO (METRÔ), para viabilizar a contratação da ALSTOM S/A, a partir da década de 1990” (cf. relatório elaborado pelo 10º Promotor de Justiça da Cidadania, fls.03 e ss).

 

         Como se infere dos autos, notícias veiculadas na imprensa internacional deram conta de que autoridades suíças e francesas investigam a empresa parisiense ALSTOM, por ter esta, supostamente, efetuado o pagamento de vantagem pecuniária, em torno de duzentos milhões de dólares, com a finalidade de ser favorecida em licitações e contratos em países latino-americanos. Estas informações, ademais, davam conta de que referida empresa teria realizado pagamento a servidores do Governo do Estado de São Paulo, especialmente do METRÔ e da ELETROPAULO, e que tais vantagens ilícitas totalizariam algo em torno de seis milhões e oitocentos mil dólares, a fim de vencer, no Brasil, contratos de até quarenta e cinco milhões de dólares.

 

         Embora o objeto do inquérito civil de origem (PJC-CAP nº204/2008) se cingisse à apuração quanto ao “pagamento de propina” a funcionários do METRO e da ELETROPAULO, bem como, eventualmente, a agentes políticos, foram requisitadas cópias dos contratos que, segundo noticiado, teriam sido firmados entre o METRÔ outras empresas, num total de onze contratos, e inúmeros aditivos a cada um deles.

 

         Diante da existência de indícios de irregularidades quanto a tais contratos e aditamentos, independentes e distintos da notícia inicial relacionada ao pagamento de propina, o DD. 10º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital (suscitado) determinou a extração de cópias e encaminhamento à Secretaria da Promotoria de Justiça da Cidadania, a fim de que, separadamente, fossem apurados os casos relacionados a cada um dos contratos e eventuais aditamentos.

 

         Nos presentes autos, cujas cópias acabaram sendo distribuídas ao DD. 8º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital (suscitante), o encaminhamento se deu para realização de investigação acerca do contrato nº7261025001, firmado entre o METRÔ e a empresa CMW Equipamentos S/A, em novembro de 1994 (cujo objeto era a prestação de serviços de implantação de modificações no sistema de sinalização e controle de tráfego de trens na linha leste-oeste, e a prestação de assistência técnica referente a este sistema), com valor inicial de R$ 4.060.795,94 (quatro milhões, sessenta mil, setecentos e noventa e cinco reais e noventa e quatro centavos). O objetivo da investigação, conforme constou do ofício de encaminhamento de cópias, era a apuração de, “entre outros fatos, o aumento do prazo contratual (de 51 para 112 meses) apesar da limitação legal (60 meses)” (cf. ofício de encaminhamento de cópias subscrito pelo suscitado, fls.2).

 

         Com a distribuição das cópias ao DD. 8º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital, e com novo registro (PJC-CAP nº455/2008), foi suscitado o conflito negativo de atribuições, essencialmente com a indicação das seguintes razões:

 

(a) as cópias dos contratos e aditamentos foram requisitadas em função da notícia no sentido de pagamento de “propina” a servidores, para favorecimento em licitações e subseqüentes contratos;

 

(b) a cisão da investigação desconsiderou a conexão probatória existente entre as inúmeras contratações, os aditamentos operados, e as denúncias de pagamento de “propina” a servidores públicos;

 

(c) não se pode creditar ao acaso a notícia de que o METRÔ e a ALSTOM, assim como suas coligadas ou consorciadas teriam, em diversas contratações, concluído com o aumento de preços, com a conseqüente modificação do objeto contratual originário, frustrando, assim, o próprio procedimento licitatório;

 

(d) a cisão da investigação impedirá a formação de visão abrangente do caso, prejudicando a coleta da prova, o destino das investigações, bem como a identificação da má-fé dos agentes públicos envolvidos;

 

(e) a cisão da investigação, e a multiplicação das ações, poderão gerar, também, soluções díspares e o conflito de julgados, o que já se verificou em caso anterior, envolvendo contratações realizadas no âmbito da Secretaria de Segurança Pública do Estado (anos de 2001/2002);

 

(f) a concentração da investigação e eventual iniciativa judicial em um único procedimento, apresentarão maior probabilidade de êxito na atuação ministerial;

 

(g) ao realizar atos investigatórios no procedimento originário que instaurara, o suscitado (10º Promotor de Justiça da Cidadania) tornou-se prevento, “ampliando, de forma tácita, o espectro da investigação originária, a ela se vinculando como Promotor de Justiça Natural”, aplicando-se à hipótese a regra contida no art.114 §3º in fine da Lei Complementar Estadual nº734/93 (cf. manifestação de fls.261 e ss).

 

         É o relato do essencial.

 

2)Fundamentação.

 

         É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

 

         Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196).

 

            Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

 

         Esta idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2ºvol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

 

         Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a própria lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não haveria razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não partisse de elementos do caso concreto.

 

         Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

 

         O aspecto fundamental para a elucidação do caso presente, em nosso sentir, reside no encontro do ponto de equilíbrio entre as regras relativas à prevenção, e aquelas atinentes ao respeito ao Promotor natural.

 

         É necessário, para a elucidação da hipótese em exame, indagar se Membro do Ministério Público, oficiando em Promotoria de Justiça que contemple mais de um Órgão com iguais atribuições, pode requisitar documentos, instaurar inquérito civil e continuar na sua instrução a despeito da existência de critério prévio de distribuição de serviços.

 

         Ao tratar dessa questão deve-se ter em vista o princípio do promotor natural, valor excepcional para o Ministério Público, cuja existência pode ser extraída, ainda que indiretamente, do sistema de garantias de independência dos membros do Ministério Público, em especial da inamovibilidade (art.128 §5º I b da CR/88), do próprio princípio do juiz natural (art.5º LIII da CR/88), bem como de dispositivos da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público que contém aplicações do tema (v.g. o art.225 e §§ da Lei Complementar Estadual nº734, de 26 de novembro de 1993).

 

         A regra do promotor natural deve encontrar aplicação em todos os casos, quer nas hipóteses em que determinado Membro do Ministério Público quer atuar, quanto naquela em que, eventualmente, não pretende fazê-lo. Trata-se de garantia imediata do Promotor de Justiça, e mediata da sociedade conjuntamente considerada, assegurando-se que a investigação será levada a efeito por aquele Órgão previamente determinado, segundo critérios fixados e aprovados pela Administração Superior.

 

            Identifica-se, ademais, a correlação estreita entre o promotor natural e a garantia constitucional da inamovibilidade. É necessário compreender a inamovibilidade de forma adequada. Sua interpretação restrita pode ensejar a equivocada idéia de que ela se resume a garantir que o membro do Ministério Público não será transferido da comarca ou da seção judiciária em que atua. Tal garantia tem espectro mais amplo e abrange bem mais que esse aspecto meramente territorial, vinculando-se às funções relacionadas ao cargo do qual o promotor não pode ser movido.

 

         Conjuga-se, desse modo, a inamovibilidade com o princípio do promotor natural, segundo o qual, nas palavras de Hugo Nigro Mazzilli: “(...) deve existir um órgão do Ministério Público previamente investido nas atribuições legais, o qual não poderá ser afastado do cargo e das funções a ele agregadas. Isso significa que a lei deve discriminar previamente as atribuições do órgão ministerial, não se aceitando designações ilimitadas e discricionárias só a pretexto da unidade e chefia da instituição. Tanto assim que, no anteprojeto Conamp, a aspiração comum foi externada de forma criativa na figura de uma inamovibilidade ‘no cargo e nas respectivas funções’. Caso contrário, a inamovibilidade seria uma falácia: bastaria que o procurador-geral, mantendo o promotor na comarca, lhe suprimisse as funções.” (Regime jurídico do Ministério Público, 5. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001, p.278).

 

            Apenas a própria Constituição da República pode, validamente, estabelecer ressalvas à garantia da inamovibilidade. E o faz ao admitir a transferência do membro do Ministério Público se, por motivo de interesse público, assim o decidir o órgão colegiado competente, integrante do próprio Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, assegurada a defesa ampla. A inamovibilidade e, via de conseqüência, o próprio princípio do promotor natural, são valores essenciais para a preservação, inclusive, da credibilidade da atuação do Ministério Público.

 

         A inamovibilidade e o promotor natural devem ser observados sob qualquer ângulo que se apresente a dúvida associada à sua aplicação. Tanto naqueles casos em que determinado órgão ministerial possa ver-se afastado de suas funções, quanto naqueles em que Membro do Ministério Público se recusa a atuar, ainda que por defensáveis razões, como é o caso examinado.

 

         Não custa relembrar que os princípios são as idéias centrais de um sistema, ao qual dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de se organizar (cf. Carlos Ary Sundfeld, Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 143).

 

         Como anota Celso Antônio Bandeira de Mello, “Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. (...) Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. (...) Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura neles esforçada”(Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p.230).

 

         Por fim, necessário dizer que o princípio do promotor, defendido há muito no Ministério Público do Estado de São Paulo (Jaques de Camargo Penteado, “O princípio do Promotor natural”, Justitia [da PGJ de São Paulo]. São Paulo : PGJ/APMP, nº 129, p. 114-124, abr/jun de 1985), já encontrou guarida no E. STF (RTJ 150/123 e 148/181), devendo ser prestigiado pela Chefia da instituição.

 

            Pois bem.

 

         Como sintetizado inicialmente, o suscitado (10º Promotor de Justiça da Capital), no curso de investigação destinada à apuração a respeito do pagamento de propinas a servidores para favorecimento de empresa em licitações e contratos com a administração pública estadual, requisitou informações relativas a contratos e aditamentos ,envolvendo várias pessoas jurídicas.

 

         Entretanto, como as possíveis irregularidades de tais contratos e aditamentos extravasam do objeto originário da investigação, o princípio do promotor natural impede que o suscitado (requisitante das informações), instaure procedimento reservando a si – com exclusividade e a priori – a tarefa de conduzir as investigações nos casos não compreendidos nos limites da apuração inicial.

 

         A requisição de cópias de contratos procedida pelo suscitado, ao contrário do que pareceu ao suscitante, não fixa aquele como o promotor natural para o caso.

 

         Trata-se de atuação necessária de órgão ministerial que teve notícia de ilegalidades praticadas, cabendo a ele, por dever de ofício, tomar providência visando dar o primeiro passo para a apuração. Mas devia mesmo distribuir, subsequentemente e de forma livre, as peças de informação, em estrita obediência ao princípio do promotor natural.

 

         Essa afirmação pode ser extraída do art.26 §5º da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei nº8625/93), pelo qual “toda representação ou petição formulada ao Ministério Público será distribuída entre os membros da instituição que tenham atribuições para apreciá-la, observados os critérios fixados pelo Colégio de Procuradores”, regra esta reproduzida pelo art.103 §3º da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público.

 

         Evidentemente não se trata, neste caso, de representação oferecida por terceiros, mas providência adotada por um dos integrantes da Promotoria de Justiça da Cidadania, da qual ambos – suscitante e suscitado – são integrantes. Mas para atender ao disposto na lei e, notadamente, ao princípio do promotor natural, é necessário interpretar adequadamente a norma, com observância de seus fins.

 

            A requisição de documentos ou cópias de contratos visando instaurar inquéritos civis, procedimentos preparatórios, ou quaisquer outros no âmbito do Ministério Público, não pode e não deve se constituir em elemento a fixar prevenção do requisitante, se, no caso concreto, tangenciar a regra que colima a impessoalidade na atuação do Ministério Público. A interpretação sustentada pelo suscitante legitimaria a conclusão de que, em Promotorias com vários cargos com idênticas atribuições, aquele que se antecipasse aos demais, requisitando informações ou mesmo instaurando procedimento investigatório quanto a certo caso concreto, estaria sempre prevento.

 

            Essa interpretação não é legítima, na medida em que a prevenção é um mecanismo para solucionar dúvidas quanto à competência de órgão jurisdicional ou atribuições de órgãos ministeriais, mas não para burlar o esquema legal, previamente estabelecido, de repartição da atividade funcional dos órgãos envolvidos.

 

            Não fosse assim, a regra da prevenção – de extração infraconstitucional – seria utilizada para burlar a própria garantia da inamovibilidade (corretamente compreendida, abrangente das funções do cargo), que, em última análise, tem assento na Constituição da República.

 

            Também o Ato Normativo nº. 484-CPJ, de 5 de outubro de 2006 que estabelece parâmetros para as investigações civis a cargo do Ministério Público, confere validade à interpretação aqui sustentada. Confira-se:

 

Art. 7º. A atividade investigatória do Ministério Público rege-se pelos princípios gerais da atividade administrativa, pelos direitos e garantias individuais e pelos princípios especiais que regulam o Ministério Público, obedecendo notadamente:

I – (...)

X – à distribuição ao órgão do Ministério Público dotado de atribuição legal fixada por critérios objetivos prévios;

(...)

Art. 9º. A atribuição do membro do Ministério Público deverá obedecer às regras ordinárias de distribuição de serviços, recaindo naquele que for dotado de atribuição legal fixada por critérios objetivos prévios, salvo:

I – nos casos de substituição por falta, impedimento, suspeição, afastamento temporário ou vacância;

II – por designação de outro membro à vista da recusa de homologação de promoção de arquivamento ou de provimento de recurso contra o indeferimento de representação;

III – por ato excepcional e fundamentado do Procurador-Geral de Justiça, condicionado à prévia autorização do Conselho Superior do Ministério Público;

IV – nos casos de concordância do titular da atribuição;

V – nos demais casos previstos em lei.

 

            Não se pode deixar de considerar o entendimento do Conselho Nacional do Ministério Público, vazado pela Resolução nº. 23, de 17 setembro de 2007, que regulamenta os artigos 6º, inciso VII, e 7º, inciso I, da Lei Complementar nº75/93 e os artigos 25, inciso IV, e 26, inciso I, da Lei nº8.625/93, disciplinando, no âmbito do Ministério Público, a instauração e tramitação do inquérito civil. É da norma:

 

“Art. 4º. O inquérito civil será instaurado por portaria, numerada em ordem crescente, renovada anualmente, devidamente registrada em livro próprio e autuada, contendo:

I – (...)

Parágrafo único. Se, no curso do inquérito civil, novos fatos indicarem necessidade de investigação de objeto diverso do que estiver sendo investigado, o membro do Ministério Público poderá aditar a portaria inicial ou determinar a extração de peças para instauração de outro inquérito civil, respeitadas as normas incidentes quanto à divisão de atribuições.”

 

         A norma do parágrafo único, para atender ao princípio do promotor natural, só pode ser lida com a ênfase exigida na última oração. Tanto na hipótese de aditamento da portaria inicial, quanto de extração de peças, deverá ser obedecida a divisão de atribuições e, caso exista mais de um Órgão com as mesmas atribuições, a regra prévia de distribuição.

 

            Resta ainda dizer que, no caso concreto, nem mesmo a prevenção, decorrente da conexão ou continência, justificaria a fixação da atribuição do suscitado.

 

            Cabe ressaltar que a reunião de feitos em razão da prevenção, decorrente da conexão ou continência, tem como razão de ser a economia processual, com o aproveitamento da prova, a maior probabilidade de acerto na solução final, e evitar-se conflitos lógicos entre decisões.

 

         Guardadas as devidas adaptações, essas idéias são aplicáveis também às hipóteses de reunião de inquéritos civis por prevenção decorrente de conexão ou continência, que tem por objetivo otimizar a investigação e, num segundo momento, evitar soluções logicamente conflitantes nas eventuais ações civis públicas.

 

         Essa razão é assente em doutrina. Anote-se, por exemplo, o pensamento de Enrico Tullio Liebman, no sentido de que a conexão de ações leva, dentro do possível, à sua propositura conjunta, com “notevole economia di attività e di spese, particolarmente quando la loro decisione pressuppone l’esame di una o più questioni comuni alle varie azione, com l’ulteriore vantaggio di evitare in questo caso decisioni contradditorie” (Manuale di diritto processuale civile, 6ªed., atual. a cura di Vittorio Colesanti, Elena Merlin, Edoardo F. Ricci, Milano, Giuffrè, 2002, p.180).

 

         No mesmo diapasão o pensamento clássico externado por Giuseppe Chiovenda (Instituições de direito processual civil, 2ºvol., 2ªed., trad. J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.215 e ss), ressaltando, entretanto, a imposição de limites sistemáticos à união de feitos, como por exemplo, na hipótese em que um dos feitos tramita em segundo grau de jurisdição (op. cit., p.224).

 

         Pode-se mesmo afirmar, sem temor, que a conveniência é critério determinante para aferir se, em determinada hipótese, deverá ou não ocorrer a reunião de feitos conexos em razão da prevenção. Se uma de suas finalidades é a economia processual, e se no caso específico esta não terá lugar, dever-se-á evitar a reunião.

 

         É bem verdade que boa parte da doutrina reconhece na regra que prevê a reunião de feitos em razão da conexão ou continência uma imposição, e não uma faculdade (Nesse sentido, v.g., Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, vol.I, 11ªed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p.350, em comentários ao art.105 do CPC; bem como Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código de processo civil comentado, 10ª ed., São Paulo, RT, 2008, p.362, nota n.7 ao art.105 do CPC).

 

         Mas, com o devido respeito, essa posição não pode ser aplicada em termos absolutos. A interpretação das regras processuais e procedimentais não pode perder de vista seus fins. Se a aplicação de uma norma determinada leva a resultado diverso daquele que inspirou sua edição, deve ser mitigada sua incidência.

 

         Nesse sentido, pondera Patrícia Miranda Pizzol, ao comentar o art.105 do CPC, afirmando que a não observância da regra determinante da reunião de feitos conexos não deve levar ao reconhecimento de qualquer vício processual, “se o tribunal verificar que, muito embora havendo conexão, a sentença proferida, por seu conteúdo, não tem o condão de causar lesão às partes, uma vez que não há o risco de julgados contraditórios, o pronunciamento não deverá ser anulado. Pode-se fundamentar o entendimento ora esposado no princípio da instrumentalidade das formas, bem como na súmula nº 235 do STJ” (Código de Processo civil interpretado, coord. Antônio Carlos Marcado, São Paulo, Atlas, 2004, p.301).

 

            Aliás, nesse sentido tem decidido o E. STJ, como se infere do julgado cuja ementa segue transcrita, a título de exemplificação:

 

 “Processo civil. Conexão. Margem de discricionariedade do juiz. Sociedade de Economia Mista. Competência da Justiça Estadual. Processamento do recurso. Não conhecimento. Segundo orientação predominante, o art.105, CPC, deixa ao juiz certa margem de discricionariedade na avaliação da intensidade da conexão, na gravidade resultante da contradição de julgados e, até, na determinação da oportunidade da reunião de processos (...) (STJ, RESP 5.270/SP, 4ªT., rel. Min. Sálvio  de Figueiredo Teixeira, j. 11.2.1992, DJU 16.3.1992, p.3100).

 

            Essa é, também, a essência do fundamento que ensejou a edição da súmula acima mencionada, no E. STJ:

 

“Súmula nº235: A conexão não determina a reunião dos processos se um deles já foi julgado”.

 

            A interpretação sistemática também legitima tal conclusão.

 

         Sabe-se que um dos fundamentos do litisconsórcio é, em observação singela, a conexão entre as demandas cumuladas pelos litisconsortes. Em outras palavras, fossem elas propostas separadamente, seria, em tese, viável a reunião, desde que identificada a conexão.

 

         Entre tanto, a lei abre ensejo para solução contrária, na hipótese do denominado “litisconsórcio multitudinário”, previsto no art.46 parágrafo único do CPC. Como prevê referido dispositivo, “o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa”.

 

         Defendendo o acerto do legislador ao prever a possibilidade de limitação ao litisconsórcio, pondera Cândido Rangel Dinamarco que “a conveniência do cúmulo termina, porém, onde começam os embaraços mais graves, que o número muito grande de litisconsortes pode ocasionar” (Litisconsórcio, 3ªed., São Paulo, Malheiros, 1994, p.347).

 

         Assim, é possível afirmar, por identidade de razões, que se a reunião de procedimentos investigatórios ou de ações conexas levará à inviabilidade do proveito prático desejado, dever-se-á evitar a junção de feitos.

 

         Também a interpretação analógica e extensiva levaria à solução aqui propugnada, bastando consultar a solução contida, ao propósito, na legislação processual penal.

 

         Conexão e continência são determinantes da reunião de feitos criminais, com ressalvas, contudo, que incluem a conveniência (cf. art.80 e 82 do CPP).

 

         Tais idéias, singelamente alinhavadas, são inteiramente aplicáveis à análise da pertinência da reunião, ou não, de investigações civis a respeito de casos que apresentem, em maior ou menor grau, conexão de qualquer sorte, ainda que probatória.

 

         Em outros termos, poder-se-ia argumentar que a reunião em um só procedimento acabaria por trazer benefícios à investigação, eventualmente facilitando a prova do pagamento de propina. Ocorre que tantos são os contratos, conforme demonstra o relatório elaborado pelo suscitado (fls. 965/990), que inviabilizada estaria toda a investigação, e quiçá o êxito de eventual ação civil pública, mormente considerando o número de pessoas investigadas. A reunião dos procedimentos investigatórios, e a unificação da ação civil, na espécie, não alcançarão o escopo que o instituto da prevenção, nesses casos, pretende homenagear.

 

            Além disso, a prática de ato de improbidade administrativa, ante os fatos narrados no ofício de encaminhamento de cópias para instauração de investigação autônoma (a cargo, após a distribuição, do suscitante), em tese está configurada independentemente da conclusão da investigação quanto ao pagamento da propina noticiada, objeto do Inquérito Civil nº204/2008.

 

            Acrescente-se que nem mesmo seria necessário ingressar na discussão a respeito da existência ou não de continência. Parece mais adequado concluir que sequer seria caso de reconhecimento de continência dos pedidos, uma vez que o pagamento de vantagem econômica ilícita configura ato de improbidade administrativa previsto no artigo 9º, e a ilegalidade em relação ao contrato ou aditamento é igual ato de improbidade administrativa, mas previsto no artigo 10, ambos da Lei nº8.429/92.

 

            Finalmente, a Procuradoria-Geral de Justiça já decidiu idêntica hipótese no Protocolado nº3.364/06, de 18 de maio de 2006, em que figuravam como suscitante o 10º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital e suscitada a 7ª Promotora de Justiça da Cidadania. É da decisão:

 

“1. Trata-se de conflito negativo de atribuições suscitado pelo 10º Promotor de Justiça da Cidadania, em face da 7ª Promotora de Justiça da Cidadania, relativo ao procedimento n. 576/04-PJC-CAP.

Este último foi instaurado pelo 8º Promotor de Justiça da Cidadania, tendo por objeto eventual prática de improbidade administrativa na contratação de escritórios de advocacia pelo METRÔ, sem prévia licitação, para prestação de serviços de assessoria jurídica especializada. Promovido o arquivamento do feito, este foi rejeitado pelo Egrégio Conselho Superior do Ministério Público, sendo então designado o 7º Promotor de Justiça da Cidadania (na qualidade de substituto automático do 8º) para dar prosseguimento à investigação.

Oficiando nos autos, a DD 7ª Promotora de Justiça da Cidadania entendeu necessário o desmembramento dos autos, diante do número significativo de contratos, que a seu ver demandam análise diferenciada. Encaminhou, em conseqüência, 12 grupos de contratos ao Secretário da Promotoria de Justiça, solicitando sua distribuição aos demais integrantes daquele órgão ministerial.

Recebendo um dos procedimentos desmembrados, o DD. 10º Promotor de Justiça da Cidadania entendeu que, tendo havido designação da 7ª Promotora de Justiça pelo Procurador-Geral, não haveria lugar para redistribuição; considera, ainda, conveniente a manutenção de todos os contratos num único procedimento, para análise conjunta, “inclusive para verificar a existência de eventual conluio entre os diretores do METRÔ”, aduzindo que a complexidade da matéria não é óbice à realização da investigação.

2. Respeitando embora os argumentos do douto suscitante, penso que o desmembramento da investigação, nos moldes propostos pela digna suscitada, melhor atende ao interesse público.

Com efeito, os contratos juntados aos autos originais abrangem um período de doze anos (de 1992 a 2004), passando por várias administrações da Companhia do Metropolitano.

As circunstâncias fáticas e jurídicas da celebração de cada um desses contratos são, muito provavelmente, diversas, reclamando exame caso a caso. Enfeixar todos os contratos numa única investigação produziria efeito tumultuário, não só para a investigação, mas sobretudo em eventual demanda a ser proposta, como bem apontou a ilustre suscitada (fls. 53).

Certo que tal avaliação cabe, evidentemente, ao órgão de execução. E este assim o fez, decidindo legitimamente pelo desmembramento, de maneira fundamentada (fls. 53/57).(...)”

 

            Decidiu-se, no caso, pela atribuição do suscitante naquele conflito negativo de atribuições, que havia se contraposto ao desmembramento efetuado.

 

         Em síntese: (a) a regra da prevenção, como forma de definição de competência jurisdicional ou atribuição de órgãos ministeriais não é absoluta; (b) sua aplicação não pode descurar de valores mais relevantes, em especial a preservação da garantia da inamovibilidade, e a regra do promotor natural; (c) não se deve promover a reunião de feitos por prevenção quando isso significar, em prognóstico formulado com amparo em peculiaridades do caso concreto, risco de maiores dificuldades que vantagens tanto para a investigação, como para ulterior ação em juízo.

 

            Daí a conclusão de que, na hipótese em exame, a atribuição para a investigação é do suscitante.

 

3)Decisão.

 

         Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art.115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao DD. 8º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital (suscitante) prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

 

         Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

 

         Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 07 de outubro de 2008.

 

 

 

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça