Protocolado n. 117.703/2008

Conflito negativo de atribuições

Suscitante: 8ª Promotor de Justiça da Cidadania da Capital

Suscitado: 10º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital

 

Ementa: 1) Conflito negativo de atribuições. Inquérito civil. Investigação que tem como objeto a notícia de pagamento de “propina” para favorecimento em licitações e contratos com a Administração Pública estadual (METRÔ vs ALSTOM). 2) Requisição de cópias de contratos envolvendo a entidade pública e outras empresas. Identificação de possíveis irregularidades, nos contratos e respectivos aditamentos, independentes da notícia relacionada ao pagamento de vantagem ilícita a servidores públicos. Extração de cópias dos contratos e aditamentos, para apurações autônomas, com relação a cada um dos contratos e aditamentos, que envolvem diversas empresas. 3) Conflito negativo suscitado, sob o argumento da prevenção do Promotor de Justiça que requisitou os contratos, bem como a unidade de convicção, economia, e afastamento do risco de conflito lógico de soluções para cada um dos casos. 4) Critérios a adotar na solução do conflito. Necessidade de ponderação e convívio entre as regras relativas à prevenção, a garantia da inamovibilidade e o promotor natural. Adequada interpretação da regra da prevenção, inclusive à luz da conveniência ou não, dada a complexidade da investigação, de unificação das investigações em um único procedimento, e propositura de uma só ação. 5) Mecanismo da prevenção. Equívoco na interpretação de que o órgão ministerial que se antecipa aos demais estará prevento para a investigação de determinado caso concreto, em promotorias em que há vários membros da instituição com atribuições similares. 6) Conflito conhecido e dirimido, declarando-se caber ao suscitante o prosseguimento no feito, inclusive para resolver a questão da distribuição por semelhança ao objeto do PJC/CAP nº 126/2004, no âmbito da Promotoria de Justiça da Cidadania da Capital.

 

1. Relatório

                                                         O 10º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital instaurou investigação (PJC-CAP 204/2008) sobre o recebimento de propina por empregado do METRÔ, envolvendo a ALSTOM S/A.

 

                                                         Tratou ainda o suscitado de requisitar cópias de contratos e seus aditivos, apurando que a Companhia do Metropolitano de São Paulo – METRÔ celebrou contratos com o Consórcio Via Amarela (nºs. 4130121201 e 4130121202) e Consórcio Camargo Correa/Andrade Gutierrez/Siemens (nº. 4130121203). Em 30 de novembro de 2006 foi firmado o Aditivo nº. 03 ao Contrato nº. 4130121202, tendo por finalidade adicionar aos serviços de projeto civil e de obras civis, os serviços referentes à construção parcial da Estação São Paulo, acrescendo-se ao original o valor de R$ 42.840.321,93.

 

                                                         Entendendo que esse aditamento deve ser investigado separadamente, tratou o 10º Promotor de Justiça da Cidadania de encaminhar os documentos obtidos à livre distribuição, indo ao 8º Promotor de Justiça da Cidadania, tendo em conta a similitude com o objeto do PJC/CAP nº. 126/2004 que por aquela Promotoria havia tramitado.

 

                                                         Em alentada manifestação, suscitou este o conflito, afirmando que a cisão da investigação desconsidera a provável conexão probatória existente entre as inúmeras contratações, os aditamentos realizados e as denúncias de pagamento de propina. Diz que a análise isolada de um determinado contrato e seus aditamentos pode não propiciar a verificação de similitude de conduta dos dirigentes do METRÔ, a exemplo do que já se verificou em outra investigação levada a efeito pela Promotoria de Justiça da Cidadania em 2001/2002, envolvendo mais de uma centena de contratos e ações, que ocasionaram pronunciamentos diversos do Judiciário.

 

                                                         Finalmente, sustenta que mesmo não sendo o caso de conexão probatória, é o Suscitado o promotor natural do caso, pois uma vez instaurado o inquérito civil objetivando a investigação do pagamento de propina, foram requisitadas cópias dos contratos administrativos firmados pelas empresas referidas com a ALSTOM e suas coligadas, bem como os aditamentos e outras informações. Dessa forma, praticou atos investigatórios a respeito dos contratos, ampliando de forma tácita o espectro da investigação, não cabendo a outro Membro da Instituição continuar nas investigações, senão aquele que deu início a elas. Daí concluir que todos os fatos devem ser objeto de apenas uma investigação, já instaurada pelo suscitado.

 

                                                         Assim, suscitou o DD. 8ª Promotor de Justiça da Cidadania da Capital o conflito negativo de atribuições, bem caracterizado, a ser dirimido pela Procuradoria-Geral de Justiça, com remessa dos autos ao DD. 10º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital. Pede ainda que, caso não seja dessa forma entendido, que se assim não for, devem os autos ir a nova e livre distribuição, em razão da anterior ter sido marcada pela semelhança com outro protocolado que tramitou pela 8ª Promotoria de Justiça da Cidadania, mas que possui distinto objeto.

 

                                                         É a síntese do necessário.

 

2. Fundamentação

 

                                                         O aspecto fundamental para a elucidação do caso, em nosso sentir, reside na compatibilização das regras relativas à prevenção, com aquelas atinentes ao respeito ao Promotor natural.

 

                                                         É necessário, para solucionar o caso em exame, saber se Membro do Ministério Público, oficiando em Promotoria de Justiça que contemple mais de um Órgão, com iguais atribuições, pode/deve requisitar documentos, instaurar inquérito civil e continuar na sua instrução a despeito da existência de critério prévio de distribuição de serviços.

 

                                                         Ao tratar dessa questão deve-se ter em vista o princípio do promotor natural, valor excepcional para o Ministério Público, cuja existência pode ser extraída, ainda que indiretamente, do sistema de garantias de independência dos membros do Ministério Público, em especial da inamovibilidade (art.128, § 5º, inc. I, alínea “b” da Constituição), do próprio princípio do juiz natural (art. 5º, inc. LIII da Constituição), bem como de dispositivos da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº 734/93) que contém aplicações do tema (v.g. o art. 225 e §§ da Lei Complementar Estadual nº. 734, de 26 de novembro de 1993).

 

                                                         Considera-se ainda, que o princípio do promotor natural deve encontrar aplicação em todos os casos, quer nas hipóteses que determinado Membro do Ministério Público quer atuar, quanto naquela em que, eventualmente, quer deixar de fazê-lo, tratando-se de garantia imediata do Promotor de Justiça, e mediata da sociedade conjuntamente considerada, assegurando-se que a investigação será levada a efeito por aquele Órgão previamente determinado, segundo critérios fixados e aprovados pela Administração Superior.

 

                                                         Por fim, mas não menos importante, o princípio do promotor natural guarda estreita ligação com a garantia constitucional da inamovibilidade. Esta deve ser bem compreendida, porquanto sua interpretação restrita pode ensejar a equivocada idéia de que ela se resume a garantir que o membro do Ministério Público não será transferido da comarca ou da seção judiciária em que atua. Efetivamente, a garantia tem espectro mais amplo e abrange bem mais que esse aspecto meramente territorial, vinculando-se às funções relacionadas ao cargo do qual o promotor não pode ser movido. Conjuga-se, desse modo, a inamovibilidade com o princípio do promotor natural[1], segundo o qual, nas autorizadas palavras de Hugo Nigro Mazzilli:

“(...) deve existir um órgão do Ministério Público previamente investido nas atribuições legais, o qual não poderá ser afastado do cargo e das funções a ele agregadas. Isso significa que a lei deve discriminar previamente as atribuições do órgão ministerial, não se aceitando designações ilimitadas e discricionárias só a pretexto da unidade e chefia da instituição. Tanto assim que, no anteprojeto Conamp, a aspiração comum foi externada de forma criativa na figura de uma inamovibilidade ‘no cargo e nas respectivas funções’. Caso contrário, a inamovibilidade seria uma falácia: bastaria que o procurador-geral, mantendo o promotor na comarca, lhe suprimisse as funções.”[2]

 

                                                         Apenas a própria Constituição da República pode, validamente, estabelecer ressalvas à garantia da inamovibilidade, e o faz ao admitir a transferência do membro do Ministério Público se, por motivo de interesse público, assim o decidir o órgão colegiado competente, integrante do próprio Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, assegurada a ampla defesa àquele cuja transferência se discute. A inamovibilidade e, via de conseqüência, o próprio princípio do promotor natural, são valores essenciais inclusive para a preservação da credibilidade da atuação do Ministério Público.

 

                                                         A observância da inamovibilidade e do promotor natural devem ser propugnadas sob qualquer ângulo que se apresente a dúvida associada à sua aplicação. Tanto naqueles casos em que determinado Órgão seja afastado de suas funções, quanto naqueles em que Membro do Ministério Público se recusa a atuar, ainda que por defensáveis razões, como é o caso examinado.

 

                                                         Não custa relembrar que os princípios são as idéias centrais de um sistema, ao qual dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de se organizar.[3] Não se pode falar em princípios sem referência ao conceito de Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo o qual:

“Princípio (...) é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. (...) Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. (...) Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura neles esforçada”.[4]

 

                                                         Por fim, necessário dizer que o princípio do promotor natural é defendido há muito tempo no Ministério Público do Estado de São Paulo[5], regra não inscrita na Constituição Federal, mas que encontrou guarida no Pretório Excelso[6] e, de resto, está hoje estabelecida em outras normas.

 

                                                         Pois bem.

 

                                                         Segundo narram os autos, o 10º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital instaurou o Inquérito Civil nº 204/2008, cujo objeto é: “apuração de denúncia de recebimento de propina por empregado do METRÔ” (fl.). A par disso, cumprindo aquilo que determinado no Manual de Atuação Funcional em relação ao fato objeto do inquérito civil[7], tratou de requisitar cópias de contratos celebrados entre as pessoas jurídicas referidas.

 

                                                         O princípio do promotor natural impede que o suscitado (requisitante das informações), instaure procedimento reservando a si – com exclusividade e a priori – a tarefa de levar a cabo as investigações.

 

                                                         A requisição levada a efeito é nada mais que atuação necessária de Órgão ministerial que teve notícia de ilegalidades praticadas, cabendo a ele, por dever de ofício, tomar providência visando dar o primeiro passo para a apuração, tal qual fosse um cidadão ou outro Órgão que representasse à Promotoria de Justiça da Cidadania. Requisitados os documentos ou cópias de contratos, não só pode como deve o Órgão ministerial requisitante distribuir livremente as peças, em estrita obediência ao princípio do promotor natural.

 

                                                         Tal providência vem determinada na Lei Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993:

Art. 26. No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá:

I – (...)

§ 5º Toda representação ou petição formulada ao Ministério Público será distribuída entre os membros da instituição que tenham atribuições para apreciá-la, observados os critérios fixados pelo Colégio de Procuradores.

 

                                                         Essa determinação é reproduzida na Lei Complementar Estadual nº. 734, de 26 de novembro de 1993, visando justamente impedir que a apuração de certo fato seja direcionado a determinado Órgão ministerial[8]. Evidentemente não se trata neste caso de representação oferecida por terceiros, mas providência adotada por um dos integrantes da Promotoria de Justiça da Cidadania, da qual ambos – suscitante e suscitado – são integrantes. Mas para atender ao disposto na lei e, notadamente, no princípio do promotor natural, é necessário interpretar adequadamente a norma, com observância de seus fins.

 

                                                         A requisição de documentos ou cópias de contratos visando instaurar inquéritos civis, procedimentos preparatórios, ou quaisquer outros no âmbito do Ministério Público, não pode e não deve se constituir em elemento a fixar prevenção do requisitante, se, no caso concreto, tangenciar a regra que colima a impessoalidade na atuação do Ministério Público. A interpretação sustentada pelo suscitante legitimaria a conclusão de que, em Promotorias com vários cargos com idênticas atribuições, aquele que se antecipasse aos demais, requisitando informações ou mesmo instaurando procedimento investigatório quanto a certo caso concreto, estaria sempre prevento.

 

                                                         Essa interpretação não é legítima, na medida em que a prevenção é um mecanismo para solucionar dúvidas quanto à competência de órgão jurisdicional ou atribuições de órgãos ministeriais, mas não para burlar o esquema legal, previamente estabelecido, de repartição da atividade funcional dos órgãos envolvidos.

 

                                                         Em outra perspectiva, a regra da prevenção – de extração infraconstitucional – seria utilizada para burlar a própria garantia da inamovibilidade (corretamente compreendida, abrangente das funções do cargo), que, em última análise, tem assento na Constituição.

 

                                                         Também o Ato Normativo nº. 484-CPJ, de 5 de outubro de 2006 que estabelece parâmetros para as investigações civis a cargo do Ministério Público, confere validade à interpretação aqui sustentada. Confira-se:

Art. 7º. A atividade investigatória do Ministério Público rege-se pelos princípios gerais da atividade administrativa, pelos direitos e garantias individuais e pelos princípios especiais que regulam o Ministério Público, obedecendo notadamente:

I – (...)

X – à distribuição ao órgão do Ministério Público dotado de atribuição legal fixada por critérios objetivos prévios; (g.n.)

Art. 9º. A atribuição do membro do Ministério Público deverá obedecer às regras ordinárias de distribuição de serviços, recaindo naquele que for dotado de atribuição legal fixada por critérios objetivos prévios, salvo:

I – nos casos de substituição por falta, impedimento, suspeição, afastamento temporário ou vacância;

II – por designação de outro membro à vista da recusa de homologação de promoção de arquivamento ou de provimento de recurso contra o indeferimento de representação;

III – por ato excepcional e fundamentado do Procurador-Geral de Justiça, condicionado à prévia autorização do Conselho Superior do Ministério Público;

IV – nos casos de concordância do titular da atribuição;

V – nos demais casos previstos em lei.

 

                                                         Não se pode deixar de considerar o entendimento do Conselho Nacional do Ministério Público, vazado pela Resolução nº. 23, de 17 setembro de 2007, que regulamenta os artigos 6º, inciso VII, e 7º, inciso I, da Lei Complementar nº 75/93 e os artigos 25, inciso IV, e 26, inciso I, da Lei nº 8.625/93, disciplinando, no âmbito do Ministério Público, a instauração e tramitação do inquérito civil. É da norma:

Art. 4º O inquérito civil será instaurado por portaria, numerada em ordem crescente, renovada anualmente, devidamente registrada em livro próprio e autuada, contendo:

I – (...)

Parágrafo único. Se, no curso do inquérito civil, novos fatos indicarem necessidade de investigação de objeto diverso do que estiver sendo investigado, o membro do Ministério Público poderá aditar a portaria inicial ou determinar a extração de peças para instauração de outro inquérito civil, respeitadas as normas incidentes quanto à divisão de atribuições.

 

                                                         A norma do parágrafo único, para atender ao princípio do promotor natural, só pode ser lida com a ênfase exigida na última oração. Tanto na hipótese de aditamento da portaria inicial, quanto de extração de peças, deverá ser obedecida a divisão de atribuições e, caso exista mais de um Órgão com as mesmas atribuições, a regra prévia de distribuição.

 

                                                         Resta ainda dizer que, no caso concreto, nem mesmo a prevenção, decorrente da conexão ou continência, justificaria a fixação da atribuição do suscitado.

 

                                                         Cabe ressaltar que a reunião de feitos em razão da prevenção, decorrente da conexão ou continência, tem como razão de ser a economia processual, com o aproveitamento da prova, a maior probabilidade de acerto na solução final, e evitar-se conflitos lógicos entre decisões.

 

                                                         Guardadas as devidas adaptações, essas idéias são aplicáveis também às hipóteses de reunião de inquéritos civis por prevenção decorrente de conexão ou continência, que tem por objetivo otimizar a investigação e, num segundo momento, evitar soluções logicamente conflitantes nas eventuais ações civis públicas.

 

                                                         Essa razão é assente em doutrina. Anote-se, por exemplo, o pensamento de Enrico Tullio Liebman, no sentido de que a conexão de ações leva, dentro do possível, à sua propositura conjunta, com “notevole economia di attività e di spese, particolarmente quando la loro decisione pressuppone l’esame di una o più questioni comuni alle varie azione, com l’ulteriore vantaggio di evitare in questo caso decisioni contradditorie”[9]

 

                                                         No mesmo diapasão o pensamento clássico externado por Giuseppe Chiovenda[10], ressaltando, entretanto, a imposição de limites sistemáticos à união de feitos, como por exemplo, na hipótese em que um dos feitos tramita em segundo grau de jurisdição[11].

 

                                                         Pode-se mesmo afirmar, sem temor, que a conveniência é critério determinante para aferir se, em determinada hipótese, deverá ou não ocorrer a reunião de feitos conexos em razão da prevenção. Se uma de suas finalidades é a economia processual, e se no caso específico esta não terá lugar, dever-se-á evitar a reunião.

 

                                                         É bem verdade que boa parte da doutrina reconhece na regra que prevê a reunião de feitos em razão da conexão ou continência uma imposição, e não uma faculdade[12]. Mas, com o devido respeito, essa posição não pode ser aplicada em termos absolutos. A interpretação das regras processuais e procedimentais não pode perder de vista seus fins. Se a aplicação de uma norma determinada leva a resultado diverso daquele que inspirou sua edição, deve ser mitigada sua incidência.

 

                                                         Nesse sentido, pondera Patrícia Miranda Pizzol, ao comentar o art.105 do CPC, afirmando que a não observância da regra determinante da reunião de feitos conexos não deve levar ao reconhecimento de qualquer vício processual, “se o tribunal verificar que, muito embora havendo conexão, a sentença proferida, por seu conteúdo, não tem o condão de causar lesão às partes, uma vez que não há o risco de julgados contraditórios, o pronunciamento não deverá ser anulado. Pode-se fundamentar o entendimento ora esposado no princípio da instrumentalidade das formas, bem como na súmula nº 235 do STJ”[13].

 

                                                         Aliás, nesse sentido tem decidido o Superior Tribunal de Justiça, conforme o Resp nº. 5.270-SP, da 4ª Turma, relatado pelo Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXERA, julgado em 11 de fevereiro de 1992, publicado no Diário da Justiça de 16 de março de 1992, p. 3.100, como se infere do julgado cuja ementa segue transcrita, a título de exemplificação:

 “Processo civil. Conexão. Margem de discricionariedade do juiz. Sociedade de Economia Mista. Competência da Justiça Estadual. Processamento do recurso. Não conhecimento. Segundo orientação predominante, o art.105, CPC, deixa ao juiz certa margem de discricionariedade na avaliação da intensidade da conexão, na gravidade resultante da contradição de julgados e, até, na determinação da oportunidade da reunião de processos (...).”

 

                                                         Essa é, também, a essência do fundamento que ensejou a edição da súmula acima mencionada, no E. STJ:

“Súmula nº. 235: “A conexão não determina a reunião dos processos se um deles já foi julgado”.

 

                                                         A interpretação sistemática também legitima tal conclusão.

 

                                                         Sabe-se que um dos fundamentos do litisconsórcio é, em observação singela, a conexão entre as demandas cumuladas pelos litisconsortes. Em outras palavras, fossem elas propostas separadamente, seria, em tese, viável a reunião, desde que identificada a conexão.

 

                                                         Entretanto, a lei abre ensejo para solução contrária, na hipótese do denominado “litisconsórcio multitudinário”, previsto no art. 46, parágrafo único do CPC. Como prevê referido dispositivo, “o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa”.

 

                                                         Defendendo o acerto do legislador ao prever a possibilidade de limitação ao litisconsórcio, pondera Cândido Rangel Dinamarco que “a conveniência do cúmulo termina, porém, onde começam os embaraços mais graves, que o número muito grande de litisconsortes pode ocasionar”[14].

 

                                                         Assim, é possível afirmar, por identidade de razões, que se a reunião de procedimentos investigatórios ou de ações conexas levará à inviabilidade do proveito prático desejado, dever-se-á evitar a junção de feitos.

 

                                                         Também a interpretação analógica e extensiva levaria à solução aqui propugnada, bastando consultar a solução contida, ao propósito, na legislação processual penal.

 

                                                         Conexão e continência são determinantes da reunião de feitos criminais, com ressalvas, contudo, que incluem a conveniência (cf. art. 80 e 82 do CPP).

 

                                                         Tais idéias, singelamente alinhavadas, são inteiramente aplicáveis à análise da pertinência da reunião, ou não, de investigações civis a respeito de casos que apresentem, em maior ou menor grau, conexão de qualquer sorte, ainda que probatória.

 

                                                         Em outros termos, poder-se-ia argumentar que a reunião em um só procedimento acabaria por trazer benefícios à investigação, eventualmente facilitando a prova do pagamento de propina. Ocorre que tantos são os contratos conforme demonstra o relatório elaborado pelo suscitado (fls.), que inviabilizada estaria toda a investigação, e quiçá o êxito de eventual ação civil pública, mormente considerando o número de pessoas investigadas. A reunião dos procedimentos investigatórios e a unificação da ação civil, na espécie, não alcançaria o escopo que o instituto da prevenção, nesses casos, pretende homenagear.

 

                                                         Além disso, a prática de ato de improbidade administrativa, ante o aditamento questionado, em tese está configurado independentemente da conclusão da investigação quanto ao pagamento da propina noticiada e objeto do Inquérito Civil nº 204/2008.

 

                                                         Acrescente-se que nem mesmo seria necessário ingressar na discussão a respeito da existência ou não de continência. Parece mais adequado concluir que sequer seria caso de reconhecimento de continência dos pedidos, uma vez que o pagamento de vantagem econômica ilícita configura ato de improbidade administrativa previsto no artigo 9º e a ilegalidade em relação ao aditamento é igual ato de improbidade administrativa, mas previsto no artigo 10, ambos da Lei nº 8.429/92 e ambos em tese considerados.

 

                                                         Finalmente, a Procuradoria-Geral de Justiça já decidiu idêntica hipótese no Protocolado nº 3.364/06, de 18 de maio de 2006, em que figuravam como suscitante o 10º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital e suscitada a 7ª Promotora de Justiça da Cidadania. É da decisão:

“1. Trata-se de conflito negativo de atribuições suscitado pelo 10º Promotor de Justiça da Cidadania, em face da 7ª Promotora de Justiça da Cidadania, relativo ao procedimento n. 576/04-PJC-CAP.

Este último foi instaurado pelo 8º Promotor de Justiça da Cidadania, tendo por objeto eventual prática de improbidade administrativa na contratação de escritórios de advocacia pelo METRÔ, sem prévia licitação, para prestação de serviços de assessoria jurídica especializada. Promovido o arquivamento do feito, este foi rejeitado pelo Egrégio Conselho Superior do Ministério Público, sendo então designado o 7º Promotor de Justiça da Cidadania (na qualidade de substituto automático do 8º) para dar prosseguimento à investigação.

Oficiando nos autos, a DD 7ª Promotora de Justiça da Cidadania entendeu necessário o desmembramento dos autos, diante do número significativo de contratos, que a seu ver demandam análise diferenciada. Encaminhou, em conseqüência, 12 grupos de contratos ao Secretário da Promotoria de Justiça, solicitando sua distribuição aos demais integrantes daquele órgão ministerial.

Recebendo um dos procedimentos desmembrados, o DD. 10º Promotor de Justiça da Cidadania entendeu que, tendo havido designação da 7ª Promotora de Justiça pelo Procurador-Geral, não haveria lugar para redistribuição; considera, ainda, conveniente a manutenção de todos os contratos num único procedimento, para análise conjunta, “inclusive para verificar a existência de eventual conluio entre os diretores do METRÔ”, aduzindo que a complexidade da matéria não é óbice à realização da investigação.

2. Respeitando embora os argumentos do douto suscitante, penso que o desmembramento da investigação, nos moldes propostos pela digna suscitada, melhor atende ao interesse público.

Com efeito, os contratos juntados aos autos originais abrangem um período de doze anos (de 1992 a 2004), passando por várias administrações da Companhia do Metropolitano.

As circunstâncias fáticas e jurídicas da celebração de cada um desses contratos são, muito provavelmente, diversas, reclamando exame caso a caso. Enfeixar todos os contratos numa única investigação produziria efeito tumultuário, não só para a investigação, mas sobretudo em eventual demanda a ser proposta, como bem apontou a ilustre suscitada (fls. 53).

Certo que tal avaliação cabe, evidentemente, ao órgão de execução. E este assim o fez, decidindo legitimamente pelo desmembramento, de maneira fundamentada (fls. 53/57).(...)”

 

                                                         Decidiu-se, no caso, pela atribuição do suscitante naquele conflito negativo de atribuições, que havia se contraposto ao desmembramento efetuado.

 

                                                         Em síntese: (a) a regra da prevenção, como forma de definição de competência jurisdicional ou atribuição de órgãos ministeriais não é absoluta; (b) sua aplicação não pode descurar de valores mais relevantes, em especial a preservação da garantia da inamovibilidade, e a regra do promotor natural; (c) não se deve promover a reunião de feitos por prevenção quando isso significar, em prognóstico formulado com amparo em peculiaridades do caso concreto, risco de maiores dificuldades que vantagens tanto para a investigação, como para ulterior ação em juízo.

 

                                                         Daí a conclusão de que, na hipótese em exame, a atribuição para prosseguimento da investigação deverá recair no suscitante. Não deixamos de considerar a observação trazida no último parágrafo da manifestação do suscitante, dando conta da distribuição levada a efeito por semelhança de objetos com aquele do Inquérito Civil nº. 126/04. Ocorre que esse particular escapa ao âmbito restrito da solução do conflito de atribuições, devendo ser solucionado na Promotoria de Justiça da Cidadania.

 

3) Decisão.

 

                                                         Diante do exposto, conheço do presente conflito de atribuições e o dirimo com fundamento no art. 115 da Lei Complementar Estadual nº 732/93, declarando caber ao suscitante, DD.  8ª Promotor de Justiça da Cidadania da Capital, prosseguir no feito, inclusive para resolver a questão da distribuição por semelhança ao objeto do PJC/CAP nº. 126/2004, no âmbito da Promotoria de Justiça da Cidadania da Capital.

 

                                                         Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

 

                                                         Providencie-se a remessa de cópias em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 3 de outubro de 2008.

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça



[1] Para Hugo Nigro Mazzilli: “Dentre as garantias fundamentais do indivíduo, assenta-se o princípio de que ‘ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente’. Ora, normalmente, quando a Constituição menciona ‘processar e julgar’, está querendo referir-se à tarefa jurisdicional. Entretanto, partindo-se da privatividade da promoção da ação penal, agora conferida ao Ministério Público, e considerando-se, ainda, a inamovibilidade de que gozam juízes e promotores, bem como o predicamento da independência funcional dos agentes políticos, o qual não é uma garantia só para estes últimos, e sim e especialmente para a sociedade, final destinatária de sua atuação, vemos que o princípio do promotor natural hoje faz parte do devido processo legal.” (Regime jurídico do Ministério Público, 5. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 227).

[2] MAZZILLI, Hugo Nigro, Op. cit..p. 278.

[3] SUNDFELD, Carlos Ary. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 143.

[4] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987. p. 230.

[5] PENTEADO, Jaques de Camargo. O princípio do Promotor natural. Justitia [da PGJ de São Paulo]. São Paulo : PGJ/APMP, nº. 129, p. 114-124, abr/jun de 1985.

[6] RTJ 150/123 e 148/181.

[7] Ato nº. 168/98-PGJ-CGMP – Art. 399 - Proceder à prévia identificação das irregularidades apontadas, atentando para aquelas que autorizam a atuação do Ministério Público e restringindo às mesmas o objeto da investigação.

[8] Art. 103. São funções institucionais do Ministério Público, nos termos da legislação aplicável:

I – (...)

§ 3º. Toda a representação ou petição formulada ao Ministério Público será distribuída entre os membros da instituição que tenham atribuições para apreciá-la, observados os critérios fixados pelo Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça.

[9] LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di diritto processuale civile, 6ª ed., atual. a cura di Vittorio Colesanti, Elena Merlin, Edoardo F. Ricci, Milano, Giuffrè, 2002, p.180.

[10] CHIOVENDA. Giuseppe. Instituições de direito processual civil, 2ºvol., 2ªed., trad.J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.215 e seguintes.

[11] Op. cit., p. 224.

[12] Nesse sentido, v.g., BARBI, Celso Agrícola, Comentários ao CPC, vol. I, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 350, em comentários ao art.105 do CPC; bem como NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade, Código de processo civil comentado, 10ª ed., São Paulo, RT, 2008, p. 362, nota n. 7 ao art.105 do CPC

[13] PIZZOL, Patrícia Miranda. Código de Processo civil interpretado, coord. Antônio Carlos Marcado, São Paulo, Atlas, 2004, p. 301.

[14] DINAMARCO. Cândido Rangel. Litisconsórcio, 3ªed., São Paulo, Malheiros, 1994, p.347.