Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 119.408/2010

(Ref. Peças de Informação extraídas do IC nº 38/08)

Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Itanhaém (Habitação e Urbanismo)

Suscitado: 4º Promotor de Justiça de Itanhaém (Cidadania)

Ementa:

1)     Terceiro conflito negativo de atribuições relativo aos mesmos fatos. 1º Promotor de Justiça de Itanhaém (Habitação e Urbanismo - suscitante) e 4º Promotor de Justiça de Itanhaém (Cidadania - suscitado).

2)     Inquérito instaurado e instruído na Promotoria da Cidadania (suscitado) para verificar a “possibilidade de extensão da rede de fornecimento de água através da SABESP – Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo”, ao Bairro Jardim Tanise, em Itanhaém.

3)     Aplicação do critério da prevenção (art. 114, § 3º, da Lei Complementar Estadual nº 734/93). Atribuição já fixada, em anteriores conflitos, em relação aos mesmos fatos.

4)     Conflito conhecido e dirimido, com determinação de remessa das peças de informação ao 4º Promotor de Justiça de Itanhaém (suscitado).

Vistos.

1)   Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 1º Promotor de Justiça de Itanhaém (Habitação e Urbanismo), e como suscitado o DD. 4º Promotor de Justiça de Itanhaém (Cidadania), nas peças de informação extraídas dos autos do Inquérito Civil nº 38/08, cujo objeto, conforme consignado na respectiva portaria de instauração é a verificação quanto à “possibilidade de extensão da rede de fornecimento de água através da SABESP – Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo”, ao Bairro Jardim Tanise, em Itanhaém.

Em julho de 2008 a Procuradoria-Geral de Justiça, relativamente aos mesmos fatos, por força do critério da prevenção, dirimiu conflito de atribuições entre a Promotoria de Justiça do Consumidor de Itanhaém e a Promotoria da Cidadania da mesma Comarca, determinando à Promotoria da Cidadania prosseguir nas investigações.

O DD. 4º Promotor de Justiça de Itanhaém, com atribuições na área da Cidadania, então, instaurou o inquérito civil e realizou inúmeras diligências. Porém, por entender que a atribuição seria da Promotoria de Habitação e Urbanismo, remeteu os autos ao suscitante.

O suscitante, DD. 1º Promotor de Justiça de Itanhaém, com atribuições na área de Habitação e Urbanismo, destacou a ocorrência da prevenção do suscitado, remetendo os autos à Procuradoria-Geral de Justiça.

Dirimido o segundo conflito de atribuições, a Procuradoria-Geral de Justiça determinou caber ao suscitado a condução do inquérito civil.

Todavia, o suscitado, DD. 4º Promotor de Justiça de Itanhaém, promoveu o arquivamento do inquérito civil, argumentando que “a regularização da área em questão foge à atribuição da Promotoria de Justiça da Cidadania, sendo tal mister afeto à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, visto que as providências a serem adotadas nesta seara ultrapassam, e muito, ao objeto da presente investigação (que está restrita à falta do serviço de fornecimento de água)” (fls. 152). Determinou, então, a remessa dos autos originais ao Egrégio Conselho Superior do Ministério Público e o encaminhamento de cópia integral do inquérito civil à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo.

Ao receber as peças de informação (cópia do inquérito civil), o DD. 1º Promotor de Justiça de Itanhaém, com atribuições na área de Habitação e Urbanismo, insistiu na ocorrência da prevenção do suscitado, remetendo os autos à Procuradoria-Geral de Justiça, destacando que “é inegável que o arquivamento dos autos e o encaminhamento de cópia a este suscitante representam uma forma transversa de exteriorizar o inconformismo do ilustre colega suscitado em relação as já mencionadas decisões anteriores, que determinaram, já em duas oportunidades, que o suscitado prossiga nas investigações” (fls. 09).

Acrescentou que, “não havendo fato novo a analisar, causa certa perplexidade a circunstância de semente agora o ilustre 4º Promotoria de Justiça ter arquivado o feito, determinando a imediata remessa de cópia dos autos a este 1º Promotor de Justiça, inclusive, sem aguardar a imprescindível homologação do arquivamento a ser eventualmente feita pelo Egrégio Conselho Superior do Ministério Público” (fls. 9/10).

Arrematou afirmado que “a atribuição para oficiar neste procedimento é do DD. 4º Promotor de Justiça suscitado, por força da prevenção prevista no artigo 114, § 3º, da Lei Complementar n. 734/93, e até mesmo em razão dos conflitos de atribuições já anteriormente dirimidos” (fls. 10).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central da investigação é verificar a “possibilidade de extensão da rede de fornecimento de água através da SABESP – Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo”, ao Bairro Jardim Tanise, em Itanhaém.

Trata-se, portanto, de situação que apresenta repercussão tanto na esfera da Habitação e Urbanismo como da Cidadania.

É oportuno anotar que se afigura extremamente comum que, em determinada investigação, verifique-se a existência de mais de um interesse afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

Em outras palavras, é corriqueiro que haja, em certo caso, sobreposição de matérias atinentes a diferentes áreas de atuação.

A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº 734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo pelo interesse público mais abrangente (art. 114, § 2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art. 114, § 3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art. 114, § 3º).

Diante dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual deles serviria ao caso versado nestes autos.

Tratando do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, a análise da abrangência deve ser feita no sentido do individual para o supra-individual (Regime Jurídico do Ministério Público, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 421/422).

Assim, pondere-se que em casos envolvendo conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção (art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

Aliás, como reforço a tal raciocínio, valeria trazer à colação também a observação de que no processo coletivo, a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei nº 7347/85. Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art. 2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p. 483/484, nota nº 6 ao art. 2º da Lei da Ação civil Pública) que “quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, bem como à continuidade, à eficiência, e à eficácia da atividade ministerial.

Deste modo, havendo no caso concreto interesses relacionados a mais de uma área de atuação em questões supra-individuais que têm abrangência equivalente, o órgão ministerial que primeiro tomou contato com o caso (que já vinha conduzindo a apuração durante considerável lapso temporal e determinou inúmeras diligências) deve prosseguir na investigação, adotando eventualmente as providências judiciais cabíveis.

Por último, deve ser lembrado que este mesmo feito já havia dado margem a anteriores conflitos de atribuições, que foram solucionados com determinação para que o suscitado prosseguisse na investigação. Resolvidos os conflitos, a atribuição assim confirmada deve ser objetivamente observada, a bem da economia procedimental e do melhor resultado da atuação ministerial.

A análise do presente conflito também revela a necessidade de ponderação e convívio entre as regras relativas à prevenção, a garantia da inamovibilidade e o promotor natural, principalmente diante de situação não especificada em lei, que determina uma adequada interpretação da regra da prevenção, inclusive à luz da conveniência ou não, dada a complexidade da investigação, de unificação das investigações em um único procedimento, e propositura de uma só ação.

Nesse contexto, é possível afirmar que o suscitado está prevento em relação à investigação dos fatos, por se tratar do órgão de execução que primeiramente conheceu do feito.

É possível fundamentar a decisão, inclusive, em precedente do STJ, que pode ser aplicado analogicamente.

Com efeito, é sabido que a Lei n. 11.280, de 16.2.2006, determinou a atual redação do inciso II do art. 253, para determinar a distribuição judicial por prevenção se a hipótese é de reiteração do pedido, em situação em que o feito anterior foi extinto sem resolução do mérito.

Por força dessa modificação, o STJ, ao julgar o Conflito de Competência n. 103.778, em que foi Relatora a Ministra LAURITA VAZ (25/05/2009), consignou: “Registre-se que, nos termos do art. 253 do CPC, com a redação dada pela Lei n.º 11.280/2006, quando houver extinção de processo sem julgamento do mérito, o juízo que primeiramente conheceu do feito torna-se prevento para as ações futuras de reiteração do pedido”.

Portanto, referido precedente pode ser utilizado analogicamente para se chegar à conclusão de que a atribuição é do suscitando, por não haver fato novo a ser investigado, de atribuição exclusiva da Promotoria da Habitação e Urbanismo.

Registre-se que a Procuradoria-Geral de Justiça já enfrentou questão semelhante, no Protocolado nº 133.825/09, envolvendo como suscitante o 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital e como suscitado o 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, decidindo o seguinte:

“Ementa: 1) Conflito negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado).

2) Inquérito civil com objeto amplo. Desmembramento, para apuração de parte do objeto já investigado.

3) Adequada exegese da garantia da inamovibilidade e do princípio do promotor natural. Regra procedimental que prevê a distribuição, como mecanismo de preservação da garantia e do princípio acima referidos.

4) Relatividade da diretriz de reunião de feitos em decorrência da conexão.  Possibilidade de desmembramento, por conveniência da investigação, prosseguindo em cada inquérito civil a apuração de fatos diversos.

5) Prevenção, nos termos do art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93, do órgão de execução que já vinha investigando os fatos objeto do inquérito civil desmembrado.

6) Conflito conhecido e dirimido, determinando-se ao suscitado prosseguir na apuração”.

Daí a conclusão de que, na hipótese em exame, a atribuição para a investigação é do suscitado.

 

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, 4º Promotor de Justiça de Itanhaém, a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 23 de setembro de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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