Protocolado n. 122.619/2008
Conflito negativo de
atribuições
Suscitante: 6ª Promotora de Justiça da Cidadania da Capital
Suscitado: 10º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital
Ementa: 1) Conflito negativo de
atribuições. Inquérito civil. Investigação que tem como objeto a notícia de
pagamento de “propina” para favorecimento em licitações e contratos com a Administração
Pública estadual (METRÔ vs ALSTOM). 2) Requisição de cópias de
contratos envolvendo a entidade pública e outras empresas. Identificação de
possíveis irregularidades, nos contratos e respectivos aditamentos, independentes
da notícia relacionada ao pagamento de vantagem ilícita a servidores públicos.
Extração de cópias dos contratos e aditamentos, para apurações autônomas, com
relação a cada um dos contratos e aditamentos, que envolvem diversas empresas. 3)
Conflito negativo suscitado, sob o argumento da prevenção do Promotor de
Justiça que requisitou os contratos, bem como a unidade de convicção, economia,
e afastamento do risco de conflito lógico de soluções para cada um dos casos. 4)
Critérios a adotar na solução do conflito. Necessidade de ponderação e
convívio entre as regras relativas à prevenção, a garantia da inamovibilidade e
o promotor natural. Adequada interpretação da regra da prevenção, inclusive à
luz da conveniência ou não, dada a complexidade da investigação, de unificação
das investigações em um único procedimento, e propositura de uma só ação. 5)
Mecanismo da prevenção. Equívoco na interpretação de que o órgão
ministerial que se antecipa aos demais estará prevento para a investigação de
determinado caso concreto, em promotorias em que há vários membros da instituição
com atribuições similares. 6) Conflito conhecido e dirimido,
declarando-se caber à suscitante o prosseguimento no feito.
1. Relatório
O
10º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital instaurou investigação (PJC-CAP
204/2008) sobre o recebimento de propina por empregado do METRÔ, envolvendo a
ALSTOM S/A.
Tratou
ainda o suscitado de requisitar cópias de contratos e seus aditivos, apurando
que a Companhia do Metropolitano de São Paulo – METRÔ celebrou contratos com o
Consórcio constituído pela Alstom e Siemens Ltda., para execução de projeto
executivo, fornecimento e implantação de sistemas para o trecho Ana Rosa – Vila
Madalena da Linha 2 – Verde, do Metrô de São Paulo. Esse contrato sofreu
sucessivos aditamentos, inclusive majoração do valor e alteração do prazo
contratual.
Entendendo
que esses aditamentos devem ser investigados separadamente, tratou o 10º Promotor
de Justiça da Cidadania de encaminhar os documentos obtidos à livre
distribuição, indo à 6º Promotora de Justiça da Cidadania.
Em
alentada manifestação, suscitou esta o conflito, afirmando que a cisão da
investigação desconsidera a provável conexão probatória existente entre as
inúmeras contratações, os aditamentos realizados e as denúncias de pagamento de
propina. Diz que a análise isolada de um determinado contrato e seus aditamentos
pode não propiciar a verificação de similitude de conduta dos dirigentes do
METRÔ, a exemplo do que já se verificou em outra investigação levada a efeito
pela Promotoria de Justiça da Cidadania em 2001/2002, envolvendo mais de uma
centena de contratos e ações, que ocasionaram pronunciamentos diversos do
Judiciário.
Finalmente,
sustenta que mesmo não sendo o caso de conexão probatória, é o Suscitado o promotor natural do caso, pois uma vez
instaurado o inquérito civil objetivando a investigação do pagamento de
propina, foram requisitadas cópias dos contratos administrativos firmados pelas
empresas referidas com a ALSTOM e suas coligadas, bem como os aditamentos e
outras informações. Dessa forma, praticou atos investigatórios a respeito dos
contratos, ampliando de forma tácita o espectro da investigação, não cabendo a
outro Membro da Instituição continuar nas investigações, senão aquele que deu
início a elas. Daí concluir que todos os fatos devem ser objeto de apenas uma
investigação, já instaurada pelo suscitado.
Assim,
suscitou a DD. 6ª Promotora de Justiça da Cidadania da Capital o conflito
negativo de atribuições, bem caracterizado, a ser dirimido pela
Procuradoria-Geral de Justiça, com remessa dos autos ao DD. 10º Promotor de
Justiça da Cidadania da Capital.
É
a síntese do necessário.
2. Fundamentação
O
aspecto fundamental para a elucidação do caso, em nosso sentir, reside na
compatibilização das regras relativas à prevenção, com aquelas atinentes ao
respeito ao promotor natural.
É
necessário, para solucionar o caso em exame, saber se Membro do Ministério Público,
oficiando em Promotoria de Justiça que contemple mais de um Órgão, com iguais
atribuições, pode/deve requisitar documentos, instaurar inquérito civil e
continuar na sua instrução a despeito da existência de critério prévio de
distribuição de serviços.
Ao
tratar dessa questão deve-se ter em vista o princípio do promotor natural, valor excepcional para o Ministério Público, cuja
existência pode ser extraída, ainda que indiretamente, do sistema de garantias
de independência dos membros do Ministério Público, em especial da
inamovibilidade (art.128, § 5º, inc. I, alínea “b” da Constituição), do próprio princípio do juiz natural (art. 5º,
inc. LIII da Constituição), bem como de dispositivos da Lei Orgânica Estadual
do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº 734/93) que contém aplicações
do tema (v.g. o art. 225 e §§ da Lei Complementar Estadual nº. 734, de 26 de novembro
de 1993).
Considera-se
ainda, que o princípio do promotor natural deve encontrar aplicação em todos os casos,
quer nas hipóteses que determinado Membro do Ministério Público quer atuar,
quanto naquela em que, eventualmente, quer deixar de fazê-lo, tratando-se de
garantia imediata do Promotor de Justiça, e mediata da sociedade conjuntamente
considerada, assegurando-se que a investigação será levada a efeito por aquele
Órgão previamente determinado, segundo critérios fixados e aprovados pela
Administração Superior.
Por fim, mas não menos importante, o princípio do promotor natural guarda estreita ligação com a garantia constitucional da inamovibilidade. Esta deve ser bem compreendida, porquanto sua interpretação restrita pode ensejar a equivocada idéia de que ela se resume a garantir que o membro do Ministério Público não será transferido da comarca ou da seção judiciária em que atua. Efetivamente, a garantia tem espectro mais amplo e abrange bem mais que esse aspecto meramente territorial, vinculando-se às funções relacionadas ao cargo do qual o promotor não pode ser movido. Conjuga-se, desse modo, a inamovibilidade com o princípio do promotor natural[1], segundo o qual, nas autorizadas palavras de Hugo Nigro Mazzilli:
“(...) deve existir um órgão do Ministério Público previamente investido nas atribuições legais, o qual não poderá ser afastado do cargo e das funções a ele agregadas. Isso significa que a lei deve discriminar previamente as atribuições do órgão ministerial, não se aceitando designações ilimitadas e discricionárias só a pretexto da unidade e chefia da instituição. Tanto assim que, no anteprojeto Conamp, a aspiração comum foi externada de forma criativa na figura de uma inamovibilidade ‘no cargo e nas respectivas funções’. Caso contrário, a inamovibilidade seria uma falácia: bastaria que o procurador-geral, mantendo o promotor na comarca, lhe suprimisse as funções.”[2]
Apenas a própria Constituição da República pode, validamente, estabelecer ressalvas à garantia da inamovibilidade, e o faz ao admitir a transferência do membro do Ministério Público se, por motivo de interesse público, assim o decidir o órgão colegiado competente, integrante do próprio Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, assegurada a ampla defesa àquele cuja transferência se discute. A inamovibilidade e, via de conseqüência, o próprio princípio do promotor natural, são valores essenciais inclusive para a preservação da credibilidade da atuação do Ministério Público.
A
observância da inamovibilidade e do promotor natural devem ser propugnadas sob
qualquer ângulo que se apresente a dúvida associada à sua aplicação. Tanto
naqueles casos em que determinado Órgão seja afastado de suas funções, quanto
naqueles
Não custa relembrar que os princípios são as idéias centrais de um sistema, ao qual dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de se organizar.[3] Não se pode falar em princípios sem referência ao conceito de Celso Antônio Bandeira de Mello, segundo o qual:
“Princípio (...) é, por
definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele,
disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o
espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente
por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere
a tônica e lhe dá sentido harmônico. (...) Violar um princípio é muito mais
grave que transgredir uma norma. (...) Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as
vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura neles esforçada”.[4]
Por
fim, necessário dizer que o princípio do promotor
natural é defendido há muito tempo no Ministério Público do Estado de São
Paulo[5],
regra não inscrita na Constituição Federal, mas que encontrou guarida no
Pretório Excelso[6]
e, de resto, está hoje estabelecida em outras normas.
Pois
bem.
Segundo
narram os autos, o 10º Promotor de Justiça da Cidadania da Capital instaurou o
Inquérito Civil nº 204/2008, cujo objeto é: “apuração de denúncia de recebimento de propina por empregado do METRÔ”
(fl. 3). A par disso, cumprindo aquilo que determinado no Manual de Atuação
Funcional em relação ao fato objeto do inquérito civil[7],
tratou de requisitar cópias de contratos celebrados entre as pessoas jurídicas
referidas.
O
princípio do promotor natural impede
que o suscitado (requisitante das informações), instaure procedimento reservando
a si – com exclusividade e a priori –
a tarefa de levar a cabo as investigações.
A
requisição levada a efeito é nada mais que atuação necessária de Órgão ministerial
que teve notícia de ilegalidades praticadas, cabendo a ele, por dever de
ofício, tomar providência visando dar o primeiro passo para a apuração, tal
qual fosse um cidadão ou outro Órgão que representasse à Promotoria de Justiça
da Cidadania. Requisitados os documentos ou cópias de contratos, não só pode
como deve o Órgão ministerial requisitante distribuir livremente as peças, em
estrita obediência ao princípio do promotor
natural.
Tal
providência vem determinada na Lei Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993:
Art. 26. No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá:
I – (...)
§ 5º Toda representação ou petição formulada ao Ministério Público será distribuída entre os membros da instituição que tenham atribuições para apreciá-la, observados os critérios fixados pelo Colégio de Procuradores.
Essa
determinação é reproduzida na Lei Complementar Estadual nº. 734, de 26 de
novembro de 1993, visando justamente impedir que a apuração de certo fato seja
direcionado a determinado Órgão ministerial[8].
Evidentemente não se trata neste caso de representação oferecida por terceiros,
mas providência adotada por um dos integrantes da Promotoria de Justiça da Cidadania,
da qual ambos – suscitante e suscitado – são integrantes. Mas para atender ao
disposto na lei e, notadamente, no princípio do promotor natural, é necessário interpretar adequadamente a norma, com
observância de seus fins.
A
requisição de documentos ou cópias de contratos visando instaurar inquéritos
civis, procedimentos preparatórios, ou quaisquer outros no âmbito do Ministério
Público, não pode e não deve se constituir em elemento a fixar prevenção do
requisitante, se, no caso concreto, tangenciar a regra que colima a
impessoalidade na atuação do Ministério Público. A interpretação sustentada
pela suscitante legitimaria a conclusão de que, em Promotorias com vários
cargos com idênticas atribuições, aquele que se antecipasse aos demais,
requisitando informações ou mesmo instaurando procedimento investigatório
quanto a certo caso concreto, estaria sempre prevento.
Essa
interpretação não é legítima, na medida em que a prevenção é um mecanismo para
solucionar dúvidas quanto à competência de órgão jurisdicional ou atribuições
de órgãos ministeriais, mas não para burlar o esquema legal, previamente
estabelecido, de repartição da atividade funcional dos órgãos envolvidos.
Em
outra perspectiva, a regra da prevenção – de extração infraconstitucional –
seria utilizada para burlar a própria garantia da inamovibilidade (corretamente
compreendida, abrangente das funções do cargo), que, em última análise, tem
assento na Constituição.
Também o Ato Normativo nº. 484-CPJ, de 5 de outubro de 2006 que estabelece parâmetros para as investigações civis a cargo do Ministério Público, confere validade à interpretação aqui sustentada. Confira-se:
Art. 7º.
A atividade investigatória do Ministério Público rege-se pelos princípios
gerais da atividade administrativa, pelos direitos e garantias individuais e
pelos princípios especiais que regulam o Ministério Público, obedecendo
notadamente:
I – (...)
X – à distribuição ao órgão do Ministério
Público dotado de atribuição legal fixada por critérios objetivos prévios; (g.n.)
Art. 9º.
A atribuição do membro do Ministério Público deverá obedecer às regras
ordinárias de distribuição de serviços, recaindo naquele que for dotado de
atribuição legal fixada por critérios objetivos prévios, salvo:
I – nos
casos de substituição por falta, impedimento, suspeição, afastamento temporário
ou vacância;
II – por
designação de outro membro à vista da recusa de homologação de promoção de
arquivamento ou de provimento de recurso contra o indeferimento de representação;
III – por
ato excepcional e fundamentado do Procurador-Geral de Justiça, condicionado à
prévia autorização do Conselho Superior do Ministério Público;
IV – nos
casos de concordância do titular da atribuição;
V – nos demais casos previstos em lei.
Não
se pode deixar de considerar o entendimento do Conselho Nacional do Ministério
Público, vazado pela Resolução
nº. 23, de 17 setembro de 2007, que regulamenta
os artigos 6º, inciso VII, e 7º, inciso I, da Lei Complementar nº 75/93 e os
artigos 25, inciso IV, e 26, inciso I, da Lei nº 8.625/93, disciplinando, no
âmbito do Ministério Público, a instauração e tramitação do inquérito civil. É
da norma:
Art. 4º O inquérito civil será instaurado por portaria, numerada em
ordem crescente, renovada anualmente, devidamente registrada em livro próprio e
autuada, contendo:
I – (...)
Parágrafo único. Se, no curso do inquérito civil, novos fatos indicarem
necessidade de investigação de objeto diverso do que estiver sendo investigado,
o membro do Ministério Público poderá aditar a portaria inicial ou determinar a
extração de peças para instauração de outro inquérito civil, respeitadas as normas
incidentes quanto à divisão de atribuições.
A
norma do parágrafo único, para atender ao princípio do promotor natural, só pode ser lida com a ênfase exigida na última
oração. Tanto na hipótese de aditamento da portaria inicial, quanto de extração
de peças, deverá ser obedecida a divisão de atribuições e, caso exista mais de
um Órgão com as mesmas atribuições, a regra prévia de distribuição.
Resta
ainda dizer que, no caso concreto, nem mesmo a prevenção, decorrente da conexão
ou continência, justificaria a fixação da atribuição do suscitado.
Cabe
ressaltar que a reunião de feitos em razão da prevenção, decorrente da conexão
ou continência, tem como razão de ser a economia processual, com o
aproveitamento da prova, a maior probabilidade de acerto na solução final, e
evitar-se conflitos lógicos entre decisões.
Guardadas
as devidas adaptações, essas idéias são aplicáveis também às hipóteses de
reunião de inquéritos civis por prevenção decorrente de conexão ou continência,
que tem por objetivo otimizar a investigação e, num segundo momento, evitar soluções
logicamente conflitantes nas eventuais ações civis públicas.
Essa
razão é assente
No
mesmo diapasão o pensamento clássico externado por Giuseppe Chiovenda[10],
ressaltando, entretanto, a imposição de limites sistemáticos à união de feitos,
como por exemplo, na hipótese em que um dos feitos tramita em segundo grau de
jurisdição[11].
Pode-se
mesmo afirmar, sem temor, que a conveniência é critério determinante para
aferir se, em determinada hipótese, deverá ou não ocorrer a reunião de feitos
conexos em razão da prevenção. Se uma de suas finalidades é a economia
processual, e se no caso específico esta não terá lugar, dever-se-á evitar a
reunião.
É
bem verdade que boa parte da doutrina reconhece na regra que prevê a reunião de
feitos em razão da conexão ou continência uma imposição, e não uma faculdade[12].
Mas, com o devido respeito, essa posição não pode ser aplicada em termos
absolutos. A interpretação das regras processuais e procedimentais não pode
perder de vista seus fins. Se a aplicação de uma norma determinada leva a
resultado diverso daquele que inspirou sua edição, deve ser mitigada sua incidência.
Nesse
sentido, pondera Patrícia Miranda Pizzol, ao comentar o art.105 do CPC,
afirmando que a não observância da regra determinante da reunião de feitos
conexos não deve levar ao reconhecimento de qualquer vício processual, “se o tribunal verificar que, muito embora
havendo conexão, a sentença proferida, por seu conteúdo, não tem o condão de
causar lesão às partes, uma vez que não há o risco de julgados contraditórios,
o pronunciamento não deverá ser anulado. Pode-se fundamentar o entendimento ora
esposado no princípio da instrumentalidade das formas, bem como na súmula nº 235
do STJ”[13].
Aliás,
nesse sentido tem decidido o Superior Tribunal de Justiça, conforme o Resp nº.
5.270-SP, da 4ª Turma, relatado pelo Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXERA, julgado
em 11 de fevereiro de 1992, publicado no Diário da Justiça de 16 de março de
1992, p. 3.100, como se infere do julgado cuja ementa segue transcrita, a
título de exemplificação:
“Processo civil. Conexão.
Margem de discricionariedade do juiz. Sociedade de Economia Mista. Competência
da Justiça Estadual. Processamento do recurso. Não conhecimento. Segundo
orientação predominante, o art.105, CPC, deixa ao juiz certa margem de
discricionariedade na avaliação da intensidade da conexão, na gravidade
resultante da contradição de julgados e, até, na determinação da oportunidade
da reunião de processos (...).”
Essa é, também, a essência do fundamento que ensejou a edição da súmula acima mencionada, no E. STJ:
“Súmula nº. 235: “A conexão não determina a reunião dos
processos se um deles já foi julgado”.
A
interpretação sistemática também legitima tal conclusão.
Sabe-se
que um dos fundamentos do litisconsórcio é, em observação singela, a conexão
entre as demandas cumuladas pelos litisconsortes. Em outras palavras, fossem
elas propostas separadamente, seria, em tese, viável a reunião, desde que
identificada a conexão.
Entretanto,
a lei abre ensejo para solução contrária, na hipótese do denominado
“litisconsórcio multitudinário”, previsto no art. 46, parágrafo único do CPC.
Como prevê referido dispositivo, “o juiz
poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes,
quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa”.
Defendendo
o acerto do legislador ao prever a possibilidade de limitação ao
litisconsórcio, pondera Cândido Rangel Dinamarco que “a conveniência do cúmulo termina, porém, onde começam os embaraços mais
graves, que o número muito grande de litisconsortes pode ocasionar”[14].
Assim,
é possível afirmar, por identidade de razões, que se a reunião de procedimentos
investigatórios ou de ações conexas levará à inviabilidade do proveito prático
desejado, dever-se-á evitar a junção de feitos.
Também
a interpretação analógica e extensiva levaria à solução aqui propugnada,
bastando consultar a solução contida, ao propósito, na legislação processual
penal.
Conexão
e continência são determinantes da reunião de feitos criminais, com ressalvas,
contudo, que incluem a conveniência (cf. art. 80 e 82 do CPP).
Tais
idéias, singelamente alinhavadas, são inteiramente aplicáveis à análise da
pertinência da reunião, ou não, de investigações civis a respeito de casos que
apresentem, em maior ou menor grau, conexão de qualquer sorte, ainda que
probatória.
Em
outros termos, poder-se-ia argumentar que a reunião em um só procedimento acabaria
por trazer benefícios à investigação, eventualmente facilitando a prova do
pagamento de propina. Ocorre que tantos são os contratos conforme demonstra o
relatório elaborado pelo suscitado (fl. 23), que inviabilizada estaria toda a
investigação, e quiçá o êxito de eventual ação civil pública, mormente
considerando o número de pessoas investigadas. A reunião dos procedimentos
investigatórios e a unificação da ação civil, na espécie, não alcançaria o
escopo que o instituto da prevenção, nesses casos, pretende homenagear.
Além
disso, a prática de ato de improbidade administrativa, ante o aditamento
questionado, em tese está configurado independentemente da conclusão da
investigação quanto ao pagamento da propina noticiada e objeto do Inquérito
Civil nº 204/2008.
Acrescente-se
que nem mesmo seria necessário ingressar na discussão a respeito da existência
ou não de continência. Parece mais adequado concluir que sequer seria caso de
reconhecimento de continência dos pedidos, uma vez que o pagamento de vantagem
econômica ilícita configura ato de improbidade administrativa previsto no
artigo 9º e a ilegalidade em relação ao aditamento é igual ato de improbidade
administrativa, mas previsto no artigo 10, ambos da Lei nº 8.429/92 e ambos em
tese considerados.
Finalmente,
a Procuradoria-Geral de Justiça já decidiu idêntica hipótese no Protocolado nº 3.364/06,
de 18 de maio de 2006, em que figuravam como suscitante o 10º Promotor de Justiça
da Cidadania da Capital e suscitada a 7ª Promotora de Justiça da Cidadania. É
da decisão:
“1. Trata-se de conflito negativo de atribuições suscitado
pelo 10º Promotor de Justiça da Cidadania, em face da 7ª Promotora de Justiça
da Cidadania, relativo ao procedimento n. 576/04-PJC-CAP.
Este último foi instaurado pelo 8º Promotor de Justiça da
Cidadania, tendo por objeto eventual prática de improbidade administrativa na
contratação de escritórios de advocacia pelo METRÔ, sem prévia licitação, para
prestação de serviços de assessoria jurídica especializada. Promovido o arquivamento
do feito, este foi rejeitado pelo Egrégio Conselho Superior do Ministério
Público, sendo então designado o 7º Promotor de Justiça da Cidadania (na qualidade
de substituto automático do 8º) para dar prosseguimento à investigação.
Oficiando
nos autos, a DD 7ª Promotora de Justiça da Cidadania entendeu necessário o
desmembramento dos autos, diante do número significativo de contratos, que a
seu ver demandam análise diferenciada. Encaminhou, em conseqüência, 12 grupos
de contratos ao Secretário da Promotoria de Justiça, solicitando sua
distribuição aos demais integrantes daquele órgão ministerial.
Recebendo
um dos procedimentos desmembrados, o DD. 10º Promotor de Justiça da Cidadania
entendeu que, tendo havido designação da 7ª Promotora de Justiça pelo
Procurador-Geral, não haveria lugar para redistribuição; considera, ainda,
conveniente a manutenção de todos os contratos num único procedimento, para
análise conjunta, “inclusive para verificar a existência de eventual conluio
entre os diretores do METRÔ”, aduzindo que a complexidade da matéria não é
óbice à realização da investigação.
2. Respeitando embora os argumentos do douto suscitante,
penso que o desmembramento da investigação, nos moldes propostos pela digna
suscitada, melhor atende ao interesse público.
Com
efeito, os contratos juntados aos autos originais abrangem um período de doze
anos (de
As
circunstâncias fáticas e jurídicas da celebração de cada um desses contratos
são, muito provavelmente, diversas, reclamando exame caso a caso. Enfeixar
todos os contratos numa única investigação produziria efeito tumultuário, não
só para a investigação, mas sobretudo em eventual demanda a ser proposta, como
bem apontou a ilustre suscitada (fls. 53).
Certo que
tal avaliação cabe, evidentemente, ao órgão de execução. E este assim o fez,
decidindo legitimamente pelo desmembramento, de maneira fundamentada (fls.
53/57).(...)”
Decidiu-se,
no caso, pela atribuição do suscitante naquele conflito negativo de
atribuições, que havia se contraposto ao desmembramento efetuado.
Em
síntese: (a) a regra da prevenção, como forma de definição de competência
jurisdicional ou atribuição de órgãos ministeriais não é absoluta; (b) sua
aplicação não pode descurar de valores mais relevantes, em especial a
preservação da garantia da inamovibilidade, e a regra do promotor natural; (c)
não se deve promover a reunião de feitos por prevenção quando isso significar,
em prognóstico formulado com amparo em peculiaridades do caso concreto, risco
de maiores dificuldades que vantagens tanto para a investigação, como para
ulterior ação em juízo.
Daí
a conclusão de que, na hipótese em exame, a atribuição para prosseguimento da
investigação deverá recair na suscitante.
3) Decisão.
Diante
do exposto, conheço do presente conflito de atribuições e o dirimo com
fundamento no art. 115 da Lei Complementar Estadual nº 732/93, declarando caber
à suscitante, DD. 6ª Promotora de Justiça da Cidadania da Capital, prosseguir
no feito em seus ulteriores trâmites.
Publique-se
a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.
Providencie-se
a remessa de cópias em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de
Tutela Coletiva.
São Paulo, 14 de outubro de 2008.
FERNANDO GRELLA VIEIRA
Procurador-Geral de Justiça
[1] Para Hugo Nigro Mazzilli: “Dentre as
garantias fundamentais do indivíduo, assenta-se o princípio de que ‘ninguém
será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente’. Ora,
normalmente, quando a Constituição menciona ‘processar e julgar’, está querendo
referir-se à tarefa jurisdicional. Entretanto, partindo-se da privatividade da
promoção da ação penal, agora conferida ao Ministério Público, e
considerando-se, ainda, a inamovibilidade de que gozam juízes e promotores, bem
como o predicamento da independência funcional dos agentes políticos, o qual
não é uma garantia só para estes últimos, e sim e especialmente para a
sociedade, final destinatária de sua atuação, vemos que o princípio do promotor
natural hoje faz parte do devido processo legal.” (Regime jurídico do Ministério Público, 5. ed. rev., ampl. e atual.
São Paulo: Saraiva, 2001. p. 227).
[2]
MAZZILLI, Hugo Nigro, Op. cit..p. 278.
[3] SUNDFELD, Carlos Ary.
[4] MELLO,
[5] PENTEADO, Jaques de
Camargo. O princípio do Promotor natural. Justitia [da PGJ de São
Paulo]. São Paulo : PGJ/APMP, nº. 129, p. 114-124, abr/jun de 1985.
[6] RTJ 150/123 e 148/181.
[7] Ato nº. 168/98-PGJ-CGMP
– Art. 399 - Proceder à prévia identificação das irregularidades apontadas,
atentando para aquelas que autorizam a atuação do Ministério Público e
restringindo às mesmas o objeto da investigação.
[8] Art. 103. São funções institucionais do
Ministério Público, nos termos da legislação aplicável:
I – (...)
§ 3º. Toda a representação
ou petição formulada ao Ministério Público será distribuída entre os membros da
instituição que tenham atribuições para apreciá-la, observados os critérios
fixados pelo Órgão Especial do Colégio de Procuradores de Justiça.
[9] LIEBMAN, Enrico Tullio.
Manuale di diritto processuale civile,
6ª ed., atual. a cura di Vittorio Colesanti, Elena Merlin, Edoardo F. Ricci,
Milano, Giuffrè, 2002, p.180.
[10] CHIOVENDA. Giuseppe. Instituições de direito processual civil,
2ºvol., 2ªed., trad.J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.215 e
seguintes.
[11] Op. cit., p. 224.
[12] Nesse sentido, v.g., BARBI, Celso Agrícola, Comentários
ao CPC, vol. I, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 350, em
comentários ao art.105 do CPC; bem como NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria
de Andrade, Código de processo civil
comentado, 10ª ed., São Paulo, RT, 2008, p. 362, nota n. 7 ao art.105 do
CPC
[13] PIZZOL, Patrícia Miranda. Código de Processo civil interpretado,
coord. Antônio Carlos Marcado, São Paulo, Atlas, 2004, p. 301.
[14] DINAMARCO. Cândido Rangel. Litisconsórcio, 3ªed., São Paulo,
Malheiros, 1994, p.347.