Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 0124508/11 (Inquérito Civil n. 01/03)

Suscitante: Promotor de Justiça de São Sebastião

Suscitado: Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente – GAEMA (Núcleo Litoral Norte)

 

 

 

Ementa:

1.      Conflito negativo de atribuições. Promotor de Justiça de São Sebastião e Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente – GAEMA (Núcleo Litoral Norte).

2.      Inquérito civil para apurar eventual parcelamento irregular de solo na Fazenda Abras do Una (Gleba Descrita na matrícula n. 14.680 do CRI) – Ausência de autorização dos órgãos competentes – Apuração de eventual possibilidade de regularização, bem como da existência de áreas públicas e infraestrutura – Apuração dos danos ambientais e as medidas necessárias para a sua recuperação.

3.       Em conformidade com o Ato Normativo nº 552/2008, PGJ, de 04 de setembro de 2008, as atribuições executivas do GAEMA dizem respeito à sua atuação na defesa e proteção dos “bens ambientais eleitos como prioritários, mediante atuação integrada com o Promotor de Justiça Natural” (cf. art. 5º, a, do Ato Normativo nº 552/2008). Interpretação sistemática dos dispositivos que delimitam as atribuições do GAEMA (art. 3º, § 3º, art. 5º, e art. 14).

4.      Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento do Promotor de Justiça de São Sebastião.

 

Vistos.

1)  Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. Promotor de Justiça de São Sebastião, e como suscitado o Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente – GAEMA – Núcleo Litoral Norte.

Ao que consta, instaurou-se inquérito civil para apurar eventual parcelamento irregular de solo na Fazenda Abras do Una (Gleba Descrita na matrícula n. 14.680 do CRI), a ausência de autorização dos órgãos competentes, a eventual possibilidade de regularização, bem como da existência de áreas públicas e infraestrutura. Por fim, para apurar os danos ambientais e as medidas necessárias para a sua recuperação.

Instaurou-se o Inquérito Civil, perante a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, em 23 de outubro de 2008. A Portaria Inaugural das investigações é de 12 de dezembro de 2002.

Segundo se observa da manifestação de fls. 1308, o membro do Ministério Público do Estado de São Paulo com atribuição para atuar no Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (GAEMA – Núcleo Litoral Norte) assentou que:

“A APP de curso d’água existente na área deste procedimento não é a do rio Uma, rio este que foi considerado em estado de criticidade e, por tal razão, incluído nas metas do Gaema.

Por outro lado a APP do grande imóvel rural em que o Gaema deverá intervir pressupõe um dano ambiental nela causado. O objeto central do IC n. 01/03 é o parcelamento ilegal do solo realizado na APP de um grande imóvel rural. Logo o dano é de caráter urbanístico. O fato deste dano ter gerado alguns danos ambientais, como reflexo natural, não indica que este procedimento deve ser investigado pelo Gaema, até porque a APP de curso d’água existente na área não está incluída nas metas deste Grupo”.

O Promotor de Justiça de São Sebastião, por sua vez, afirmou que o dano a ser investigado é ambiental (predominantemente) e que é meta do GAEMA a proteção do grande imóvel rural. Em síntese, conclui pela atribuição do GAEMA por se tratar de área de preservação permanente de grande imóvel rural.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central da investigação reside, ao que consta do objeto do procedimento, no parcelamento do solo no loteamento clandestino implantado na área conhecida como “Fazenda Abras do Una”, como se vê da portaria de instauração do inquérito civil:

“Considerando as informações constantes do presente procedimento, que relatam provados, de forma cabal, diversos danos urbanísticos e ambientais causados pela implantação, sem autorização dos órgãos competentes, de um clandestino parcelamento do solo na gleba descrita na matrícula n. 14.680 (aproximadamente 2722 há, dos quais a maioria se encontra no PESM), cuja área é conhecida como FAZENDA ABRAS DO UNA, como acesso pela Estrada do Morrote, Bairro Barra do UMA, em que figura como proprietário a empresa Abras do Uma Agroindústria, Agricultura e Comércio, representada por Flabio Furtado de Andrade – os quais juntamente como Marcelo de Melo Furtado (entre possivelmente outros ainda não identificados) vem loteando e dando prosseguimento aos danos e ilegalidades ambientais urbanísticas...

Há indícios de que, atualmente, se prossegue na implantação do parcelamento, uma vez que há fotos que demonstrar a existência de placas de venda de lotes e piqueteamento (...)

Os danos ambientais são praticados inicialmente pelos responsáveis pela parcelamento, seja pela implantação do loteamento em si, inclusive vias de acesso, seja por meio de abertura de uma clareira no lote. Após, os adquirentes de lotes prosseguem na degradação, seja pela mera utilização de um imóvel ambientalmente insustentável, seja mediante a supressão da vegetação que resta no lote”.

O Ato Normativo n. 682/2011-PGJ, de 15 de fevereiro de 2011 (Pt. nº 17.988/2011), o qual “Dispõe sobre as metas gerais e regionais para a atuação do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (GAEMA) e da Rede de Atuação Protetiva do Meio Ambiente”, objetivou fixar metas gerais e regionais para a atuação integrada do GAEMA e da Rede de Atuação Protetiva do Meio Ambiente, ao lado de fomentar a atuação conjunta e integrada de todos os órgãos de execução do Ministério Público.

No que toca ao Núcleo IV (Litoral Norte), foram fixadas as seguintes metas:

 IV – NÚCLEO IV – LITORAL NORTE

1. Coleta e destinação final de resíduos sólidos.

2. Saneamento ambiental (implementação de políticas públicas referentes à coleta, afastamento e ao tratamento de esgoto doméstico, à destinação dos resíduos sólidos domésticos e industriais e à qualidade da água).

3. Empreendimentos, obras ou atividades que necessitem de EIA/RIMA por determinação de Resolução do CONAMA.

4. Espaços territoriais especialmente protegidos e seus atributos naturais – APP e Reserva Legal, nas seguintes hipóteses:

4.1. APP do grande imóvel rural, assim definido nos termos do art. 4° da Lei n° 8.629/93;

4.2. APP dos cursos d’água considerados em estado de criticidade pelo respectivo comitê de Bacia Hidrográfica ou pelo próprio GAEMA, a saber:

4.2.1. Rio Grande, Rio Acaraú, Rio Itamambuca, Rio Indaiá, Rio Perequê-Mirim e Rio Tabatinga (margem Ubatuba);

4.2.2. Rio Tabatinga (margem Caraguatatuba), Rio Guaximduba, Rio Juqueriquerê, Rio Claro e Rio Massaguaçu (Caraguatatuba);

4.2.3. Rio Uma, Rio Juquehy, Rio Barra do Sahy, Rio Paúba, Rio Maresias, Rio Toque Toque Grande e Rio São Francisco (São Sebastião);

4.2.4. Córrego Bicuíba, Ilha Bela/Cachoeira, Água Branca, Ribeirão do Pombo e Córrego Paquera/Cego (Ilhabela);

4.3. Reserva Legal do grande imóvel rural, assim definido nos termos do art. 4°, da Lei n° 8.629/93.

5. Acompanhamento de projetos de regularização fundiária de interesse social de ocupações de baixa renda em Áreas de Preservação Permanente e inseridas em área urbana consolidada, em conformidade com a Lei n. 11.977, de 08 de julho de 2009 e em Unidades de Conservação, em parceria com o Promotor de Justiça local.

6. Unidades de Conservação Integral.

7. Complexos vegetacionais objeto de especial proteção, levando-se em consideração as metas identificadas nos respectivos núcleos regionais:

7.1. Restinga definida pela Resolução CONAMA 303/02, nas áreas em estado de criticidade apontadas por estudos técnicos;

7.2. Costão Rochoso da Cidade de Ilhabela em estado de criticidade apontado por estudos técnicos.

8. Danos ambientais causados por estabelecimentos comerciais em faixa de marinha e praia.

Não há, nos dispositivos do referido ato regulamentar, disposições que fixem, de antemão, parâmetros para a definição inflexível das hipóteses que deverão ser indicadas como preferenciais quanto à sua atuação.

Essa permeabilidade tem em vista, como destaca a motivação contida no preâmbulo do referido ato normativo, “o caráter transcendental das questões ambientais, a identidade de hipóteses de atuação e a necessidade de atuação integrada, coordenada e concentrada”, bem como “a necessidade de eleição de prioridades e metas que respeitem as peculiaridades locais e regionais, bem como o referido caráter transcendental da tutela ambiental”.

Dessa forma, essa eleição de questões prioritárias que invoca a atuação do GAEMA naturalmente envolve, ao menos de modo implícito, situações em que a questão ambiental se apresente de modo regionalizado, recomendando a atuação uniforme do Ministério Público, desconsiderando os limites tradicionais de divisão de atribuições em sentido territorial (comarca e foros).

Essa nova modalidade de atuação ministerial, de outro lado, deve privilegiar, na fixação de atribuições, aspectos geográficos relacionados ao próprio meio ambiente a ser protegido.

Tanto assim que o Ato Normativo 552/2008 também adota como justificativa, em seu preâmbulo, a afirmação de que “nos termos do artigo 1º, inciso V, da Lei 9.433, de 08/01/1997, a bacia hidrográfica é a unidade territorial para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, podendo ser empregada como caráter definidor das atuações regionalizadas”.

Foi a partir dessas premissas que foram estruturados os Núcleos Regionais do GAEMA a partir de grandes bacias hidrográficas, tendo em vista a necessidade de definição de política ministerial de atuação regionalizada e uniforme em matéria ambiental.

Embora esta Procuradoria-Geral de Justiça tenha, em outros conflitos de atribuição em que há mais de um interesse metaindividual presente, decido pelo critério da prevenção, no caso em análise a questão merece atenção peculiar, na medida em que a controvérsia envolve a atuação do GAEMA.

A razão disso é a premissa que justificou a própria criação do referido Grupo de Atuação Especial, ou seja, conferir tratamento prioritário para casos em que, na área do meio ambiente, seja perceptível a diversa dimensão, intensidade, e importância da questão sob investigação.

Nesse sentido é a conclusão que se pode extrair da interpretação sistemática de dispositivos do Ato Normativo nº 552/08-PGJ, visto que por força do ato regulamentar, caberá ao GAEMA: (a) oficiar em representações, inquéritos civis, procedimentos preparatórios de inquéritos civis para a defesa e proteção de bens ambientais eleitos como prioritários (art. 5º, a); (b) promover medidas judiciais necessárias à defesa e proteção dos bens ambientais eleitos como prioritários (art. 5º, c).

Dessa forma, a disposição do Ato Normativo nº 552/08-PGJ que permite a atuação do GAEMA, excepcionalmente, em procedimentos afetos à defesa da ordem urbanística (art. 3º, § 3º), bem como outra que determina que os procedimentos das antigas Promotorias com atuação regionalizada na área do meio ambiente sejam concluídos pelo Grupo de Atuação Especial (art. 14), “ainda que não abrangidos nas metas e prioridades a serem estabelecidas”, devem ser compreendidas em perspectiva teleológica.

Em outros termos, da leitura sistemática dos dispositivos referidos, pode-se concluir que: (a) o GAEMA deverá atuar em casos prioritários e revestidos de repercussão regional na área do meio ambiente; (b) deverá prosseguir nos feitos já em andamento antes de sua criação, desde que sejam da área do meio ambiente; (c) poderá atuar em casos relacionados à defesa da ordem urbanística, desde que inseridos no espectro mais abrangente de situação prioritária, envolvendo proteção ao meio ambiente.

Aliás, mesmo antes da criação do GAEMA, esta Procuradoria-Geral de Justiça vinha decidindo que apenas casos de repercussão regional deveriam ficar a cargo da Promotoria com atuação regionalizada, e não todos aqueles relacionados à proteção ambiental.

Nesse sentido, confiram-se as seguintes ementas:

“Ementa: 1) Conflito negativo de atribuições. Promotoria de Justiça com atuação regionalizada no Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo – Litoral Norte (suscitada), e Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo de Ubatuba (suscitante). 2) Danos ao meio ambiente. Parcelamento clandestino. Alcance de área de preservação permanente. Danos locais. Ausência de repercussão regional. 3) Conflito conhecido e dirimido. Determinação para que o Promotor da Comarca prossiga no feito, em seus ulteriores termos (Protocolado nº 68.721/2008; Inquérito Civil nº100/06 – Ubatuba; Suscitante: Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo de Ubatuba; Suscitada: Promotoria com atuação regionalizada no Meio Ambiente – Litoral Norte)

“Ementa: 1) Conflito negativo de atribuições. Promotoria de Justiça com atuação regionalizada no Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo – Litoral Norte (suscitada), e Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo de Ubatuba (suscitante). 2) Danos ao meio ambiente. Parcelamento clandestino. Alcance de área de preservação permanente. Danos locais. Ausência de repercussão regional. 3) Conflito conhecido e dirimido. Determinação para que o Promotor da Comarca prossiga no feito, em seus ulteriores termos.” (Protocolado nº 69.472/08; Inquérito Civil nº. 76/06 – Ubatuba; Suscitante: Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo de Ubatuba; Suscitada: Promotoria com atuação regionalizada no Meio Ambiente – Litoral Norte).

Ainda nesse sentido a decisão proferida em conflito de atribuição referente ao Protocolado nº 129.875/08 e a referente ao Protocolado nº 105.190/11.

 

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, Promotor de Justiça de São Sebastião, a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 14 de setembro de 2011.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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