Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº127.547/08
(MPF PI nº1.34.010.000667/2008; PPIC nº019/2008)
Suscitante: Promotor de Justiça de
Igarapava
Suscitado: Procurador da República de
Ribeirão Preto
Ementa: 1)Conflito
negativo de atribuições. Promotor de Justiça de Igarapava (suscitante) e
Procurador da República atuando na cidade de Ribeirão Preto (suscitado).
Procedimento investigatório civil. Identificação, pela Controladoria-Geral da
União, de irregularidades na execução do Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar – PRONAF, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento
Agrário. 2)Hipótese
em que, confirmadas as irregularidades, verificar-se-á prejuízo ao erário
federal. Programa social consubstanciado em concessão de crédito, com amparo
em recursos federais, através de instituições financeiras conveniadas. 3)Irregularidades
que, em tese, podem configurar atos de improbidade administrativa.
Possibilidade de dano ao patrimônio público, em decorrência de falhas na
execução do programa social. Competência da Justiça Federal (art.109 I da
CR/88). Aplicação da súmula nº208 do E. STJ. 4)Representação
conhecida e acolhida, determinando-se a remessa dos autos ao E. STF para a
apreciação do conflito negativo entre Ministérios Públicos. |
Vistos,
1)Relatório.
Tratam estes autos de representação
para fins de instauração de conflito negativo de atribuições entre o Ministério
Público do Estado de São Paulo e o Ministério Público Federal, figurando como
suscitante o DD. Promotor de Justiça de Igarapava,
e como suscitado DD. Procurador da
República - Ribeirão Preto.
No
âmbito da Procuradoria da República - Ribeirão Preto -, foi instaurado
procedimento investigatório (Peça de Informação), a partir da remessa de
relatório gerencial da Controladoria-Geral da União (CGU), decorrente da 25ª
Etapa do Programa de Fiscalização a partir de Sorteios Públicos, com objetivo
de apurar a regularidade quanto à execução, pelo Município de Aramina/SP de
programas sociais do Governo Federal.
A
fiscalização foi realizada com enfoque no emprego de verbas federais, por parte
dos Ministérios respectivos, sendo certo que nestes autos foi apurada a
existência de irregularidades na execução de programa vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, qual
seja o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF).
A partir do relatório da CGU,
verificou-se que a existência das irregularidades estava limitada a falhas por
parte do agente financeiro, ou seja, a Agência do Banco do Brasil S/A nº0419-7,
da cidade de Igarapava.
Tais
falhas, em síntese, teriam consistido em: (a) não ter o agente financeiro
solicitado declaração do agricultor quanto às suas dívidas junto a outros
bancos de crédito rural; (b) não ter o agente financeiro realizado fiscalização
em nenhuma das operações do PRONAF executadas e liberadas pela agência bancária
mencionada; (c) não existirem projetos técnicos nos dossiês analisados na agência
bancária referida, e tampouco na entidade responsável pela elaboração da
Declaração de Aptidão ao PRONAF (Casa do Agricultor em Aramina), não havendo,
assim, previsão de assistência técnica (cf. fls.52/53).
O
DD Procurador da República (suscitado) oficiante admitiu expressamente que
eventual malversação de recursos públicos significaria prejuízo ao erário
federal, e conseqüentemente competência da Justiça Federal (art.109 I da
CR/88).
Contudo,
ao vislumbrar que o relatório da fiscalização fez referência apenas a “irregularidades na execução dos programas,
constatando insuficiência na prestação dos serviços (qualidade dos serviços),
tais como as referidas falhas, pelo agente financeiro, na execução do Programa
de Agricultura Familiar – PRONAF”, concluiu que “a necessidade de eventual judicialização de demanda a fim de suprir
ineficiência e/ou improbidade administrativa na execução dos referidos
programas caberá ao Ministério Público do Estado”.
Com
amparo nesse argumento, remeteu os autos à Promotoria de Justiça de Igarapava
(fls.76).
O
DD. Promotor de Justiça de Igarapava, por seu turno, suscitou o conflito de
atribuições, afirmando em síntese que: (a) há interesse da União quando à
correta aplicação de recursos federais utilizados em programas sociais; (b) em
caso de judicialização da demanda, será competente a Justiça Federal, aplicando-se
à hipótese a súmula nº208 do E. STJ.
É
o relato do essencial.
2)Fundamentação.
A quaestio
iuris cuja solução se mostra imprescindível para o equacionamento do
presente conflito diz respeito à identificação dos limites para a atuação do
Ministério Público Federal e do Estadual em matéria de defesa do patrimônio
público, e sua interação com a questão da competência jurisdicional.
Como
se sabe, as hipóteses materiais que definem a competência da Justiça Federal,
na comumente denominada “competência de jurisdição”, são de extração
essencialmente constitucional (Cf. Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada
Pellegrini Grinover, e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo. 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007,
p.253; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição
e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.71; Patrícia Miranda
Pizzol, A competência no processo civil,
São Paulo, RT, 2003, p.255 e ss; Daniel Amorin Assumpção Neves, Competência no processo civil, São
Paulo, Método, 2005, p.137 e ss). Sendo alvo de discriminação expressa, sua
incidência deve ser entendida de forma estrita, não sendo aplicável por
extensão ou interpretação analógica.
Daí
também ser possível inferir que só a Constituição Federal é que pode definir, ratione materiae e ratione personae, quais são os casos cuja apreciação caberá à
Justiça Federal, sendo os demais, por exclusão, atinentes à Justiça Estadual
Comum – ressalvada, evidentemente, a matéria atribuída às Justiças
Especializadas -, não cabendo à legislação infraconstitucional dispor sobre tal
tema (cf. STF, ADI 2.473-MC, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 13-9-01,
DJ de 7-11-03).
Claro
está, na hipótese em exame, que eventual ação civil deverá ser aforada perante
a Justiça Federal, nos termos do que dispõe o art.109 I da CR/88, com a devida
vênia quanto à argumentação adotada pelo DD. Procurador da República que figura
como suscitado.
Tal
conclusão decorre da formulação, em caráter hipotético, dos eventuais contornos
que teria a demanda: seria, em princípio, destinada ao aprimoramento na
execução do programa social em tela, com o escopo, evidentemente, de evitar a
ocorrência de mau emprego de recursos da União. Poderia, também, ser
contemplada pretensão de punição pela prática de ato de improbidade
administrativa, com proteção, em última análise, do patrimônio da União.
A
propósito, da leitura da súmula nº208 do E. STJ, aplicável ao caso mutatis muntandis, pode-se extrair
diretamente a conclusão acima:
“Súmula nº208: Compete à Justiça Federal processar e julgar prefeito municipal por desvio de verba sujeita a prestação de contas perante órgão federal.”
A compreensão da hipótese em exame
exige, ainda que de forma singela, exame da configuração concedida pela
Administração Federal ao denominado PRONAF.
Nos
termos de informação acessível no sítio virtual do Ministério do Desenvolvimento Agrário - Secretaria da Agricultura
Familiar, em manual de orientação destinado aos beneficiários do Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (PRONAF), (conforme endereço eletrônico http://www.mda.gov.br/saf/arquivos/1137912740.doc),
verifica-se que se trata de programa do Governo Federal instituído para apoiar
o desenvolvimento rural sustentável e garantir segurança alimentar,
fortalecendo a agricultura familiar, por meio de financiamentos as agricultoras
e os agricultores, bem como às suas associações e cooperativas.
Literalmente,
o objetivo deste programa cinge-se ao “fortalecimento
e a valorização do agricultor familiar, visando integrá-lo à cadeia de
agronegócios e proporcionar-lhe aumento de renda e agregação de valor ao
produto e à propriedade, com sua profissionalização e com modernização do seu
sistema produtivo (cf. manual antes referido)”.
Para
acesso ao crédito, o interessado deve obter a “Declaração de Aptidão ao PRONAF –
DAP”, através de entidades autorizadas pelo Governo Federal, dirigindo-se, com
os documentos necessários, ao agente financeiro (Banco) devidamente
credenciado.
Assim,
o que se pode afirmar é que: (a) a execução do programa é implementada por
entidades governamentais e instituições financeiras cadastradas pelo Governo
Federal; (b) os recursos envolvidos são de origem federal, e na hipótese de
irregularidade que provoque qualquer malversação, desvio, ou emprego irregular,
o dano será sofrido pelo erário da União; (c) a prestação de contas quanto aos
recursos envolvidos será feita a órgãos da União, como, por exemplo, o Tribunal
de Contas da União.
Nesse
quadro, é viável concluir que eventual ação relativa ao tema deverá mesmo ser
proposta perante a Justiça Federal, pelo Ministério Público Federal.
Cumpre
recordar que a Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar
nº75/93), prevê: (a) como função institucional do Ministério Público da União a
defesa do patrimônio nacional e do
patrimônio público e social (art.5º III, a e b); (b) confere-lhe
atribuição para promover o inquérito civil e a ação civil pública para a
proteção do patrimônio público e social
(art.6º VII b); (c) atribui-lhe a
propositura de ações cabíveis para declaração de nulidade de atos ou contratos
geradores do endividamento externo da
União, de suas autarquias, fundações e demais entidades controladas pelo Poder
Público Federal, ou com repercussão
direta ou indireta em suas finanças (art.6º XVII b); (d) prevê que o Ministério Público Federal exercerá suas
funções nas causas de competência de
quaisquer juízes e tribunais, para, entre outras coisas, a defesa de
direitos e interesses integrantes do patrimônio
nacional (art.37 II); (e) determina que o Ministério Público Federal
exercerá a defesa dos direitos constitucionais do cidadão sempre que se cuidar
de garantir-lhes o respeito pelos Poderes Públicos Federais, bem como por
órgãos da administração pública federal
direta ou indireta (art.39 I e II).
Assim,
por mais de um fundamento normativo é viável afirmar que a defesa do patrimônio
da União é constitucionalmente deferida ao Ministério Público Federal.
Ademais,
note-se que não se trata, na hipótese em exame, de má aplicação de recursos
transferidos pela União ao Município, mediante convênio, e incorporadas ao
patrimônio municipal. Fosse esse o caso, seria aplicável por igualdade de
motivos a posição dominante, consoante a súmula nº209 do E. STJ, pela qual:
“Súmula nº209: Compete à Justiça Estadual processar e julgar prefeito por desvio de verba transferida e incorporada ao patrimônio municipal”.
A
dinâmica do PRONAF direciona-se, como visto, ao incremento da agricultura
familiar, sendo os créditos concedidos diretamente a pequenos produtores
rurais, através de instituições financeiras credenciadas.
Assim,
concreta ou virtualmente, o risco de lesão cinge-se mesmo ao erário da União,
configurando-se a hipótese normativa que identifica a competência da Justiça
Federal para apreciar eventual demanda judicial.
Finalmente,
quanto à questão da competência para o julgamento do conflito de atribuições
entre Ministérios Públicos, que já gerou intensas polêmicas e incertezas, a
doutrina já sinalizava, há algum tempo, à falta de outra solução expressa no
direito positivo, no sentido do reconhecimento da competência do E. Supremo
Tribunal Federal, com fundamento no art.102 I f da CR/88 (cf. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, O Ministério Público no processo civil e penal, 6ª ed., Rio de
Janeiro, Forense, 2001, p.214 e ss).
Essa
competência acabou sendo assimilada pelo E. STF, que vem julgando conflitos de
atribuições entre Ministérios Públicos Estaduais (Cf. STF, Pet. 3.631, Rel.
Min. Cezar Peluso, julgamento em 6-12-07, Informativo 491), e entre estes e o
Ministério Público Federal (Pet. 3.528, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em
28-9-05, DJ de 3-3-06; ACO 1041/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 16/04/2008,
DJE-077, DIVULG 29/04/2008; Pet. 1462/RJ, rel Min. Joaquim Barbosa, j.
06/06/2007, DJ 20/06/2007, PP-00027; ACO 911/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski,
j.14/12/2006, DJ 01/02/2007, PP-00082 ; entre outros).
3)Decisão.
Diante
do exposto, acolhe-se a representação formulada pelo DD. Promotor de Justiça de Igarapava, determinando-se a remessa dos
autos ao E. Supremo Tribunal Federal, a fim de que seja dirimido o conflito
negativo de atribuições surgido na hipótese em exame.
Publique-se
a ementa. Comunique-se. Providencie-se a remessa dos autos. Cumpra-se.
Providencie-se
a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de
Tutela Coletiva.
São Paulo, 29 de outubro de 2008.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça