Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 131.269/08

(pt. nº 43.161.747/08 – PJC)

Suscitante: 2º Promotor de Justiça do Consumidor

Suscitado: 6º Promotor de Justiça do Consumidor

 

Ementa:

1)Conflito negativo de atribuições. 2º e 6º Promotores de Justiça do Consumidor da Capital (suscitante e suscitado). Compromisso de ajustamento de conduta prevendo necessidade de que empresa compromissária envie notificação eletrônica, a respeito do escoamento do prazo de vigência de contrato de prestação de serviços, com subseqüente cancelamento.

2)Representação contra a mesma empresa, noticiando o envio de notificação com comunicação a respeito do escoamento do prazo de vigência do contrato de prestação de serviços, e advertência quanto à renovação automática do contrato no caso de inércia do consumidor.

3)Hipótese em que a empresa compromissária, possivelmente, interpreta de forma equivocada a cláusula do compromisso de ajustamento de conduta. Opções do Promotor natural no sentido de (a) aforamento de execução, pelo descumprimento do acordo, (b) formulação de novo compromisso, em aditamento, para aprimoramento da redação da cláusula impositiva, (c) análise quando a possível arquivamento ou aforamento de ação.

4)Representação cuja finalidade encontra-se contemplada no objeto do compromisso de ajustamento, ou é no mínimo conexa a ele.

4)Reconhecimento da prevenção (art.114 §3º in fine da Lei Complementar Estadual nº734/93).

5)Conflito conhecido e dirimido, determinando-se caber ao suscitado prosseguir na apuração.

 

Vistos,

 

1)Relatório.

 

         Trata-se de conflito negativo de atribuições suscitado pela DD. 2ªPromotora de Justiça do Consumidor da Capital, figurando como suscitado o DD. 6º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, nos autos do procedimento investigatório em epígrafe.

 

         A investigação, conforme consta da autuação, versa sobre “Renovação automática de contrato – E-mail noticiando a possibilidade de futuro e próximo cancelamento dos serviços – Vício de informação – Utilização de meios constrangedores na cobrança de débitos.

 

         Originou-se por envio de representação, por meio eletrônico, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva, noticiando que a empresa Catho On Line realiza prática abusiva. O autor da representação informou expressamente o que segue:

 

“O problema da Catho é que ao contratar os serviços por um período (três meses por exemplo) a empresa irá ‘renovar’ o contrato sem a sua autorização. Eles enviam um e-mail solicitando para o consumidor entrar no site da empresa e cancelar caso não queira mais o serviço.

A empresa alega que avisa, no dia em que foi contratado o serviço, que a renovação será automática. Mas primeiro, ela só avisa depois que você já assinou o contrato. Segundo, acredito que há outra cláusula que prevê a má-fé das empresas nos contratos (...)” (fls.2).

 

         Instado a manifestar-se a respeito da representação, tendo em vista a existência de anterior compromisso de ajustamento de conduta envolvendo a mesma empresa, o suscitado (6º Promotor de Justiça do Consumidor) noticiou que:

 

“1.)No procedimento 43.161.732/04-6 celebrou-se TAC, no qual foram previstas obrigações relacionadas aos seguintes temas: (a) possibilidade de rescisão contratual por meio da Internet; (b) regulamentação de cláusula penal e pagamento por meio de cartão de crédito; (c) aviso ao consumidor, por meio de mensagem eletrônica, sobre a iminência de cancelamento da assinatura promocional gratuita.

 

2.)Não vejo, pois, identidade com o objeto da presente representação, que trata, smj, de possível abusividade de cláusula de renovação automática e emprego de meios constrangedores na cobrança de débitos do consumidor.

 

3.)Restituo o expediente, de tal sorte, ao I. 2º Promotor de Justiça do consumidor.”(fls.4).

 

                     A suscitante (2ª Promotora de Justiça do Consumidor), por sua vez, provocou a instauração do conflito negativo, alegando, em síntese, que: (a) o expediente em pauta versa sobre prática comercial abusiva, decorrente do fato de que a empresa investigada renova contratos de modo automático, caso a mensagem via e-mail por ela enviada não seja respondida pelo interessado, dependendo, o cancelamento, de manifestação expressa; (b) no TAC elaborado anteriormente pelo suscitado (no protocolado nº 43.161.732/04-6­), a cláusula 2ª prevê obrigação que proscreve a conduta noticiada na representação que deu ensejo ao presente procedimento; (c) o princípio da eficiência deve nortear a solução do conflito negativo de atribuições (fls.15/18).

 

         É o relato do essencial.

 

2)Fundamentação.

 

         É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

 

         Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196).

 

         Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

 

         Esta idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2ºvol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

 

         Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

 

         Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

 

         Se há duas investigações instauradas a respeito do mesmo tema, é necessário verificar, então, se: (a) existe identidade de objeto ou conexão entre elas; (b) e em caso positivo, qual dos membros do Ministério Público se encontra prevento, pela anterior distribuição, como se pode extrair do art.114 §3º in fine da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº 734/93), que assim prescreve:

 

“Art.114. (...)

§3º. Tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará no feito o órgão do Ministério Público investido na atribuição mais especializada; sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que por primeiro oficiar no processo ou procedimento, ou ao seu substituto legal, exercer todas as funções de Ministério Público.”(g.n.)

        

         O procedimento em exame, no qual surgiu o conflito negativo de atribuições, e o anterior, no qual foi elaborado o compromisso de ajustamento de conduta pelo suscitado, tratam entre outras coisas, de uma mesma questão: ocorrência ou não de abuso no que toca ao direito de informação do consumidor sobre o encerramento do prazo de vigência de contrato de prestação de serviços (notificação por via eletrônica), e o eventual cancelamento ou renovação do serviço prestado pela empresa investigada.

 

         A quaestio iuris cuja definição se mostra imprescindível – definição do membro do Ministério Público com atribuições para o caso – decorre, em síntese, da interpretação a ser conferida à cláusula 2ª do TAC elaborado no protocolado nº 43.161.732/04-6, que ostenta a seguinte redação:

 

“2) A empresa compromissária obriga-se, ainda, a partir do dia 11/07/2005, a enviar uma mensagem por e-mail aos assinantes, com 07 (sete) dias de antecedência do término dos períodos de assinatura, alertando-os sobre o término da assinatura e necessidade de cancelamento, mantendo os avisos desta natureza em seu ‘site’ (fls.32/36);”

 

         De outro lado, na representação que deu ensejo à instauração do presente procedimento insurge-se o interessado contra a conduta da mesma empresa, consistente em: (a) notificar os contratantes, por meio eletrônico, antes do encerramento do prazo de vigência do contrato, advertindo-os quanto à necessidade de solicitar cancelamento, sob pena de renovação automática; (b) renovar automaticamente os contratos cujo cancelamento não for expressamente solicitado.

 

         A cláusula 2ª do TAC lavrado no protocolado nº 43.161.732/04-6, por seu turno, contempla duas imposições à empresa investigada: (a) notificar os contratantes por meio eletrônico antes do encerramento do prazo de vigência do contrato; (b) alertá-los sobre o término da assinatura e “necessidade de cancelamento, mantendo os avisos em seu ‘site’”.

 

         Ao que se extrai da referida cláusula, ficou definido que empresa tem a obrigação de notificar contratantes de seus serviços sobre o esgotamento do prazo do contrato, e que este será cancelado. Essa parece a melhor compreensão da referência à “necessidade de cancelamento”, prevista no compromisso de ajustamento. Do contrário ter-se-ia que interpretar a dicção do preceito como impondo ao consumidor a adoção de providências para o cancelamento, sob pena de renovação automática.

 

         Essa última interpretação não pareceria adequada, na medida em que poderia significar, de fato, autorização para conduta abusiva por parte da empresa investigada, nos termos esboçados na representação que rendeu ensejo a este procedimento.

 

         Tanto é assim que o DD. 6º Promotor de Justiça do Consumidor, que neste incidente figura como suscitado, observou expressamente que a imposição prevista no compromisso de ajustamento, de aviso ao consumidor, por meio de mensagem eletrônica, é destinada a alertá-lo “sobre a iminência de cancelamento da assinatura promocional gratuita” (fls.4).

 

         Ao que se infere da representação que rendeu ensejo a este procedimento, a interpretação que a empresa envolvida concedeu a tal cláusula é no sentido de que deva noticiar aos consumidores o esgotamento do prazo do contrato, mas com o escopo de promover sua renovação automática.

 

         Assim, uma das alternativas a seguir poderá ser implementada: (a) ou será possível vislumbrar descumprimento da cláusula 2ª do compromisso de ajustamento, hipótese em que será pertinente a propositura de ação de execução do título extrajudicial; (b) ou então será necessário analisar a viabilidade de aprimoramento da cláusula, em compromisso complementar, afastando eventuais dúvidas com relação à sua aplicação; (c) ou em ultima análise chegar-se-á à conclusão quanto à legitimidade ou não da conduta da empresa, com arquivamento ou demanda judicial.

 

         Note-se, porém, que em qualquer uma das hipóteses acima aventadas – cuja oportunidade e conveniência encontram-se na esfera de cognição e decisão do membro do Ministério Público oficiante – a conclusão que se extrai do caso é que, de fato, o objeto da representação que deu início a estes autos encontra-se no espetro dos objetivos traçados no compromisso de ajustamento de conduta antes elaborado, e em especial na cláusula já indicada.

 

         Por outro lado, ainda que se admita que não se trata integralmente do mesmo objeto – o que se afirma por argumentação – há no mínimo conexão, a recomendar a aplicação da regra da prevenção para definição do órgão ministerial que deverá atuar no caso.

 

         Deste modo, em que pese o respeitável posicionamento do zeloso membro do parquet que aqui figura como suscitado, a ele incumbirá prosseguir na investigação.

 

3)Decisão.

 

         Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art.115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao DD. 6º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (suscitado) prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

 

         Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

 

         Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 03 de novembro de 2008.

 

 

 

Pedro Franco de Campos

Procurador-Geral de Justiça em exercício