Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado n.
0131392/09
Autos
Judiciais n. 692/2009 (Pedido de Providências)
Suscitante: Juiz
de Direito da Vara da Infância e da Juventude de São Carlos
Conflito
positivo envolvendo a Promotoria de Justiça de Meio Ambiente e Urbanismo de São
Carlos e a Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude
Ementa:
1) Procedimento de Pedido de Providências que tramita perante a Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Carlos.
2) Atuação, no feito, do Promotor com atribuições na área da Infância e da Juventude.
3) Manifestação encaminhada ao R. Juízo da Infância, pelo Promotor de Justiça com atribuições na área de Meio Ambiente e Habitação, para pleitear providência oposta à vislumbrada pelo Promotor da Infância.
4) Conflito de atribuições que se caracteriza na hipótese de dois Membros do Ministério Público pretenderem atuar no mesmo feito, mormente quando assumem posturas díspares.
5) Das razões externadas quando do encaminhamento dos presentes autos à Procuradoria-Geral de Justiça, ficou evidenciado que a situação configura-se como conflito positivo, na medida em que duas posições antagônicas se evidenciam: (a) primeiro, o entendimento do Promotor da Infância e Juventude, que se manifestou a fls. 207/212, posicionando-se favoravelmente ao funcionamento da entidade de atendimento, requerendo, inclusive, fosse reconhecida a inexigibilidade de regramento administrativo pelo município; (b) segundo, a posição da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente e Urbanismo, ao oficiar nos autos e pleitear a interdição da unidade de atendimento
6) Conflito de atribuições caracterizado e afirmada a atribuição da Promotoria da Infância e da Juventude, por ser objeto do procedimento a verificação do funcionamento de unidade de semi-liberdade instalada na comarca, ou seja, de entidade de atendimento assim definida pelo art. 90 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Vistos.
1) Relatório
Tratam os autos de Pedido de Providências que tramita perante a Vara da Infância e Juventude da Comarca de São Carlos, em função de ofício encaminhado ao referido Juízo pela Fundação Casa, noticiando a interdição da Casa de Semiliberdade de São Carlos, promovida pela Prefeitura Municipal e baseada na falta de alvará de funcionamento.
Atuação, no feito, do Promotor de Justiça com atribuições na área da Infância e da Juventude.
Manifestação, nos autos do procedimento de Pedido de Providências, que tramita pelo R. Juízo da Infância e Juventude, do Promotor de Justiça com atribuições na área de Meio Ambiente e de Urbanismo. Intervenção no feito, produzindo prova documental, bem como pleiteando decisão judicial em sentido diverso ao sustentado pelo Promotor de Justiça com atribuições para atuar no feito.
Decisão judicial (fls. 333) que vislumbra conflito de atribuições
a ser dirimido pelo Procurador-Geral de Justiça, ante a divergência de
entendimentos dos membros do parquet.
É o relato do essencial.
2) Fundamentação
É possível afirmar que restou caracterizado o conflito positivo de atribuições, pois, como bem destacou o Nobre Magistrado, “o presente caso traz situação em que dois Promotores de Justiça, tutelando interesses diversos, oficiam nos autos. O primeiro, na seara de habitação e urbanismo, e o segundo, no campo da Infância e Juventude. Os pareceres foram em sentidos diversos e opostos. Todavia, s.m.j., apenas um promotor deve oficiar nos autos” (fls. 333).
Portanto,
está, de fato, configurado, no caso, o conflito de atribuições.
Isso
decorre do posicionamento de diversos órgãos de execução do Ministério Público,
quando “(a) dois ou mais deles
manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias
atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos
um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que
já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público,
6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487). No mesmo sentido Emerson Garcia,
Ministério Público, 2ª ed., Rio de
Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196/197.
Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.
Esta idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de
determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no
direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe
Chiovenda (Princípios de derecho procesal
civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto
Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e
Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.
Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para
atuar em determinado feito deve levar em consideração os dados do caso concreto.
No
caso em exame, é oportuno destacar com precisão qual é o objeto do procedimento
jurisdicional, para, a partir daí, definir-se o conflito.
O
objeto é a verificação do funcionamento de unidade de semi-liberdade instalada
na comarca, ou seja, de entidade de atendimento assim definida pelo art. 90 do
Estatuto da Criança e do Adolescente, nos seguintes termos:
Art. 90. As
entidades de atendimento são responsáveis pela manutenção das próprias
unidades, assim como pelo planejamento e execução de programas de proteção e
sócio-educativos destinados a crianças e adolescentes, em regime de:
I - orientação
e apoio sócio-familiar;
II - apoio
sócio-educativo em meio aberto;
III -
colocação familiar;
IV - abrigo;
V - liberdade
assistida;
VI -
semi-liberdade;
VII -
internação.
O
Estatuto da Criança e do Adolescente ainda regra a questão da fiscalização das entidades
em seu art. 95:
Art. 95. As
entidades governamentais e não-governamentais referidas no art. 90 serão
fiscalizadas pelo Judiciário, pelo Ministério Público e pelos Conselhos
Tutelares.
Por
fim, o ECA regula o procedimento destinado à Apuração de Irregularidades em Entidade de Atendimento, a partir do
art. 191, estabelecendo que:
Art. 191. O
procedimento de apuração de irregularidades em entidade governamental e
não-governamental terá início mediante portaria da autoridade judiciária ou
representação do Ministério Público ou do Conselho Tutelar, onde conste,
necessariamente, resumo dos fatos.
No
caso em tela, portanto, o procedimento é afeto à Justiça da Infância e
Juventude, de tal forma que as atribuições para funcionar no feito são do
Promotor de Justiça da Infância e Juventude.
Quanto
a eventuais questões urbanísticas, não se discute a atribuição da Promotoria de
Justiça de Meio Ambiente e Urbanismo de São Carlos.
Entretanto,
das razões externadas quando do encaminhamento dos presentes autos à Procuradoria-Geral
de Justiça, ficou evidenciado que a situação configura-se como conflito
positivo, na medida em que duas posições antagônicas se evidenciam: (a)
primeiro, o entendimento do Promotor da Infância e Juventude, que se manifestou
a fls. 207/212, posicionando-se favoravelmente ao funcionamento da entidade de
atendimento, requerendo, inclusive, fosse reconhecida a inexigibilidade de
regramento administrativo pelo município; (b) segundo, a posição da Promotoria
de Justiça do Meio Ambiente e Urbanismo, ao oficiar nos autos e pleitear a
interdição da unidade de atendimento.
É
essencialmente comum, visto que é inerente à própria vida das pessoas, às
relações sociais, e conseqüentemente ao direito, que determinados fatos, dada
sua relevância, recebam tratamento por diversos diplomas legislativos. São os
fatos de múltipla incidência normativa.
Quando
tipificados como fatos jurídicos, tais acontecimentos passam a provocar
desdobramentos – efeitos no mundo do direito – em todas as esferas nas quais
foram arrolados em caráter hipotético (tipicidade abstrata) pelo legislador.
Inúmeros
são os exemplos dessa realidade, e entre eles encontra-se a situação versada
nestes autos.
Entretanto,
considerando a divisão de funções atualmente existente (de lege lata), é necessário fixar a atribuição para a atuação no caso
concreto, que, como demonstrado, é da Promotoria de Justiça da Infância e
Juventude.
Como
se sabe, é extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima
apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição
concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de
inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da
independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente
como princípio constitucional no art.127 §1º da CR/88.
O
respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido
e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações
do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter
vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho
de suas funções de execução (cf. art.19 I d
da Lei Complementar Estadual nº734/93).
Deste
modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições
depende de sua concreta configuração, bem como da iniciativa no sentido
de suscitar o conflito.
Essa
é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito de atribuições
quando são antagônicos os posicionamentos assumidos por dois ou mais órgãos
de execução do Ministério Público.
Em
outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in
abstracto, como se disse acima, quando, considerado o posicionamento de órgãos
de execução do Ministério Público “(a)
dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação
das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo);
(b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro
membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva,
2007, p. 486/487).
A
questão da necessidade de respeito à independência funcional encontra bom
exemplo nos casos em que há negativa do membro do Ministério Público para
oficiar em determinado feito, de natureza cível.
O
fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a
analogia com o art. 28 do Código de Processo Penal (Nesse sentido: Hugo Nigro
Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ª
ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, cit., p. 73).
Mas
nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público
tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer
injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas
manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E
estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles,
poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico,
disciplinar, regulamentar, etc.
Como
anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a
autoridade administrativa superior para “distribuir
e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus
agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu
quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e
corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração
Pública” (Direito Administrativo
Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda,
a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423;
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito
Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.
O
reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano
estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado,
anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia
estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na
medida em que “questo vincolo, fondandosi
su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire
amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa
che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo
dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII,
Milano, Giuffrê, 1969, p. 626).
Do
mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a
existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos,
de um “potere di risoluzione di conflitti
tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività
degli stessi” (Diritto Amministrativo,
v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).
O
reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo
algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores e
Procuradores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de
suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a
administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns
aspectos dessa atuação.
Em
outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público
atuar, mas pode e deve dizer se deve
ou não atuar, e qual o membro ou
órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.
No
caso em exame, por tudo o que foi demonstrado, a atribuição é da Promotoria de
Justiça da Infância e da Juventude para oficiar no procedimento que tramita
perante a Vara da Infância e da Juventude.
3) Decisão
Diante do exposto, conheço do conflito de atribuições, declarando que a atribuição para atuar no presente procedimento é da Promotoria da Infância e da Juventude.
Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.
Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 6 de novembro de 2009.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça
/md