Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 132.685/2010

(Ref. Ação Civil Pública nº 3.029/2010)

Suscitante: 4º Promotor de Justiça de Carapicuíba (Direitos Humanos)

Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Carapicuíba (Consumidor)

 

Ementa:

1)     Conflito negativo de atribuições. 4º Promotor de Justiça de Carapicuíba – Direitos humanos (suscitante) e 2º Promotor de Justiça de Carapicuíba – Consumidor (suscitado).

2)     Representação. Ação civil pública. Tutela das condições de segurança em estádio de futebol, em função da realização de campeonato de futebol amador, organizado pela “Liga de Futebol de Carapicuíba”.

3)     Existência de relação de consumo por equiparação legal, nos termos do Estatuto do Torcedor (Lei nº 10.671, de 2003, arts. 2º, 3º e 40).

4)     Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento com a atuação do 2º Promotor de Justiça de Carapicuíba – Consumidor (suscitado).

Vistos.

1)   Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 4º Promotor de Justiça de Carapicuíba (Direitos Humanos), e como suscitado o DD. 2º Promotor de Justiça de Carapicuíba (Consumidor), nos autos da ação civil pública nº 3.029/2010.

O Comandante do 33º Batalhão da Polícia Militar formulou representação à Promotoria de Justiça de Carapicuíba, noticiando a realização iminente do 2º Campeonato Paulista de Futebol Amador de Seleções Municipais do Estado, evento a ser realizado no dia 17/10/2010 no Campo do Niterói, na cidade de Carapicuíba. A representação noticiava a não observância pela entidade organizadora, a Liga de Futebol de Carapicuíba, de providências indispensáveis à segurança dos torcedores que compareceriam ao evento (cf. ofício nº 33BPMM – 599/030/10, fls. 20/21).

Distribuída a representação à suscitada, DD. 2º Promotor de Justiça de Carapicuíba (Consumidor), esta declinou de atuar no caso, afirmando que não estaria caracterizada, na hipótese, relação de consumo. Além disso, determinou a remessa do expediente ao órgão ministerial com atribuição na área de Direitos Humanos (fls. 16/19).

Uma vez encaminhado o expediente, o DD. 1º Promotor de Justiça de Carapicuíba, oficiando em substituição automática (em razão da noticiada ausência da titular da atribuição de Direitos Humanos, atuando na realização de “audiências concentradas na Entidade de Acolhimento Associação Santa Terezinha”, mediante convite do Juízo, cf. fls. 48/49), ajuizou a ação civil pública (que recebeu o nº 3.029/2010, e foi distribuída à 3ª Vara Cível de Carapicuíba), dada a premência de adoção de providências por parte do Ministério Público. Obteve, inclusive, decisão judicial que, liminarmente, suspendeu a realização do evento (cf. decisão de fls. 28).

Posteriormente, a DD. 4º Promotor de Justiça de Carapicuíba (Direitos Humanos), suscitou o conflito, afirmando que a atribuição para oficiar na referida ação civil pública não lhe cabe (fls. 3/6).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central da ação já proposta se refere à tentativa de assegurar adequadas condições de segurança aos torcedores de campeonato amador de futebol denominado “2º Campeonato Paulista de Futebol Amador de Seleções Municipais do Estado”, organizado pela entidade denominada “Liga de Futebol de Carapicuíba”, que figura como ré na ação civil pública proposta pelo MP.

Ordinariamente, a configuração da existência ou não de relação de consumo depende da presença, em determinado caso concreto, dos elementos indicativos dessa moldura da relação jurídica de direito material, que são extraídos dos artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 1990).

Daí a afirmação de que consumidor é quem “adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (art. 2º da Lei nº 8.078, de 1990); bem como que fornecedor é quem desenvolve “atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços” (art. 3º da Lei nº 8.078, de 1990).

A partir dessa conceituação geral é que, diante de situações concretas, se afere a existência ou não de relação de consumo.

A hipótese em exame, entretanto, é diversa, na medida em que, com o devido respeito ao entendimento em sentido diverso, manifestado pela suscitada (cf. fls. 19), a caracterização da relação de consumo se dá por imposição legal.

No caso da utilização de estádios de futebol por torcedores, é possível constatar a existência de relação de consumo por força do que determina o Estatuto de Defesa do Torcedor (Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003).

De fato, o art. 2º da Lei nº 10.671, de 2003, estabelece que torcedor é “toda pessoa que aprecie, apóie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada modalidade esportiva”.

De outro lado, quanto ao conceito de fornecedor, o art. 3º do referido Estatuto prevê que “para todos os efeitos legais, equiparam-se a fornecedor, nos termos da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, a entidade responsável pela organização da competição, bem como a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo”.

Não bastasse isso, a Lei nº 10.671, de 2003, em seu art. 40, expressamente determina que, na defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dos torcedores, que inclui as questões relativas à segurança dos locais destinados à prática desportiva, seja aplicada “a mesma disciplina da defesa dos consumidores em juízo de que trata o Título III da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990”.

Em outras palavras, a lei equipara a relação existente entre o organizador da competição desportiva e o torcedor às relações de consumo, para permitir a defesa mais adequada e ampla dos interesses e direitos dos torcedores.

Trata-se, portanto, de relação de consumo por imposição legal.

Dessa forma, em que pese nosso respeito pelo entendimento diverso, identifica-se, portanto, fundamento para a atuação da suscitada (2º Promotor de Justiça de Carapicuíba – Consumidor), a quem caberá prosseguir na ação que já foi proposta.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à suscitada, 2º Promotor de Justiça de Carapicuíba (Consumidor), a atribuição para dar seguimento à ação civil pública já proposta.

Publique-se a ementa.

Comunique-se.

Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 27 de outubro de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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