Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 133.825/09

PJCPP-CAP nº 623/2009

Suscitante: 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Ementa:

1)Conflito negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado).

2)Inquérito civil com objeto amplo. Desmembramento, para apuração de parte do objeto já investigado.

3)Adequada exegese da garantia da inamovibilidade e do princípio do promotor natural. Regra procedimental que prevê a distribuição, como mecanismo de preservação da garantia e do princípio acima referidos.

4)Relatividade da diretriz de reunião de feitos em decorrência da conexão.  Possibilidade de desmembramento, por conveniência da investigação, prosseguindo em cada inquérito civil a apuração de fatos diversos.

5)Prevenção, nos termos do art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93, do órgão de execução que já vinha investigando os fatos objeto do inquérito civil desmembrado.

6)Conflito conhecido e dirimido, determinando-se ao suscitado prosseguir na apuração.

Vistos,

1)Relatório.

Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, e como suscitado o DD. 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital.

O Presente inquérito civil (IC nº 623/09) foi instaurado por força de deliberação do suscitado, DD. 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, que, em conformidade com a manifestação de fls. 392/397, emitida nos autos do IC nº 250/08, determinou o desmembramento da investigação, permanecendo no IC nº 250/08 a apuração de “irregularidades na utilização do patrimônio da SABESPREV para pagamento de ‘cursos questionáveis’ a alguns funcionários”, e no feito desmembrado, ou seja, neste IC nº 623/09, apenas a apuração de “eventuais gastos pessoais do Presidente e Diretores da SABESPREV com utilização de cartões corporativos” .

Ao receber estes autos de IC nº 623/09, sustentou o suscitante, DD. 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, cf. sua manifestação de fls. 411/425, que: (a) o caso chegou à Promotoria do Patrimônio Público e Social da Capital por força de encaminhamento pelo Ministério Público Federal, e por distribuição deu origem ao Inquérito Civil nº 498/06, instaurado na 3ª Promotoria de Justiça em fevereiro de 2007 (portaria de fls. 3); (b) diante de novas informações e representações, foi determinado o desmembramento do IC nº 498/06, da 3ª Promotoria de Justiça, com aditamento da portaria e remessa dos documentos para distribuições pertinentes (fls. 80/83); (c) o 3º Promotor de Justiça estava prevento em relação aos fatos constantes da primeira distribuição e não em relação a novas “denúncias” que foram feitas, ou a fatos novos, com relação aos quais não diligenciou; (d) com o desmembramento, houve distribuição ao suscitado, DD. 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, com o objetivo de se apurar a “utilização do patrimônio da SABESPREV para pagamento de cursos ‘questionáveis’ a alguns funcionários, bem como para custeio de despesas pessoais do Presidente e Diretores, através de cartão corporativo”, tudo nos termos da portaria do Inquérito Civil nº 250/08 (fls. 02C e 02D); (e) posteriormente, ao receber o expediente, e uma vez instaurado o IC nº 250/08, o DD. Promotor de Justiça que oficiava na 7º Promotoria de Justiça emitiu manifestação fundamentada, explicitando o objeto da investigação como sendo “a utilização do patrimônio da SABESPREV para pagamento de cursos ‘questionáveis’ a alguns funcionários, bem como para custeio de despesas pessoais do Presidente e Diretores, através de cartão corporativo” , determinando, ademais, realização de novas diligências para investigar a integralidade dos fatos (fls. 111/112); (f) houve aditamento da portaria, para explicitar que a investigação referia-se a “apuração de irregularidades na utilização do patrimônio da SABESPREV para pagamento de cursos ‘questionáveis’ a alguns funcionários, bem como para custeio de despesas pessoais do Presidente e Diretores, através de cartão corporativo” (fls. 273); (g) o suscitado, DD 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, está prevento em função da distribuição e da prática de diligências relacionadas ao objeto da investigação (utilização de patrimônio da entidade em despesas “questionáveis” e uso de cartão corporativo para custeio de despesas do Presidente e Diretores da entidade); (h) em manifestação ulterior (fls. 392/397) o suscitado, DD Promotor de Justiça ora designado na 7ª Promotoria de Justiça, determinou o desmembramento e nova distribuição para apuração, exclusivamente dos “gastos pessoais do Presidente e Diretores da SABESPREV com utilização de cartões corporativos”, permanecendo como objeto do IC nº 250/08 exclusivamente a apuração de “irregularidades na utilização do patrimônio da SABESPREV para pagamento de cursos ‘questionáveis’ a alguns funcionários”; (i) os atos de investigação precedidos de livre distribuição tornaram prevento o 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social; (j) o presente IC nº 623/09, fruto do desmembramento, deveria, por força da prevenção, e do princípio do promotor natural, ter sido remetido ao suscitado; (k) entendimento diverso poderá induzir, ao menos no plano hipotético, a situação em que se determine o desmembramento com nova distribuição para atendimento a interesses “pessoais” do órgão de execução que determina tal providência.

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

Está configurado, no caso, o conflito de atribuições.

Isso decorre do posicionamento de diversos órgãos de execução do Ministério Público, quando “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487). No mesmo sentido Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196/197.

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

E na hipótese, o que há de essencial na argumentação do suscitante, pode ser resumido na seguinte questão: uma vez tendo realizado diligências relativas ao objeto de determinada investigação, e percebendo ser conveniente seu desmembramento devido à pluralidade de fatos em apuração, estará o órgão ministerial prevento para todos os feitos desmembrados?

Apenas para clareza, note-se, em síntese, que a investigação iniciou-se com o IC nº 498/06, cujo desmembramento deu margem ao IC nº 250/08, com duplo objeto: (a) apuração de irregularidades na utilização do patrimônio da SABESPREV para pagamento de “cursos questionáveis” a alguns funcionários; e (b) custeio de despesas pessoais do Presidente e Diretores da referida entidade, com cartões corporativos.

O IC nº 250/08, por sua vez, foi também desmembrado, de modo a nele prosseguir a apuração do item “a” acima (irregularidades na utilização do patrimônio da SABESPREV para pagamento de “cursos questionáveis” a funcionários), ficando o presente IC nº 623/09 destinado à investigação do item “b” acima (gastos pessoais do Presidente e Diretores do SABESPREV com utilização de cartões corporativos).

Diante desse quadro, o fato inequívoco é que o objeto da investigação deste procedimento já havia sido alvo de conhecimento e diligências do suscitado, DD. 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social, nos autos de outro feito (IC nº 250/08).

É oportuno, diante do ensejo da elucidação da hipótese em exame, indagar se Membro do Ministério Público, oficiando em Promotoria de Justiça que contemple mais de um Órgão com iguais atribuições, pode requisitar documentos, instaurar inquérito civil e continuar na sua instrução a despeito da existência de critério prévio de distribuição de serviços.

Não se pode olvidar, nesse passo, o princípio do promotor natural, cuja existência pode ser extraída, ainda que indiretamente, do sistema de garantias de independência dos membros do Ministério Público, em especial da inamovibilidade (art.128, §5º, I, b da CR/88), do próprio princípio do juiz natural (art. 5º, LIII da CR/88), bem como de dispositivos da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público que contém aplicações do tema (v.g. o art. 225 e §§ da Lei Complementar Estadual nº 734, de 26 de novembro de 1993).

A regra do promotor natural deve encontrar aplicação em todos os casos, quer nas hipóteses em que determinado membro do Ministério Público quer atuar, quanto naquela em que, eventualmente, não pretende fazê-lo. Trata-se de garantia imediata do Promotor de Justiça, e mediata da sociedade conjuntamente considerada, assegurando-se que a investigação será levada a efeito por aquele Órgão previamente determinado, segundo critérios fixados e aprovados pela Administração Superior da instituição.

É estreita a correlação entre o promotor natural e a garantia constitucional da inamovibilidade. Esta, por sua vez, deve ser compreendida de forma adequada.

Sua interpretação restrita pode ensejar a equivocada idéia de que ela se resume a garantir que o membro do Ministério Público não será transferido da comarca ou da seção judiciária em que atua. Tal garantia tem espectro mais amplo e abrange bem mais que esse aspecto meramente territorial, vinculando-se às funções relacionadas ao cargo do qual o promotor não pode ser movido.

Conjuga-se, desse modo, a inamovibilidade com o princípio do promotor natural, segundo o qual, como salienta Hugo Nigro Mazzilli: “(...) deve existir um órgão do Ministério Público previamente investido nas atribuições legais, o qual não poderá ser afastado do cargo e das funções a ele agregadas. Isso significa que a lei deve discriminar previamente as atribuições do órgão ministerial, não se aceitando designações ilimitadas e discricionárias só a pretexto da unidade e chefia da instituição. (...). Caso contrário, a inamovibilidade seria uma falácia: bastaria que o procurador-geral, mantendo o promotor na comarca, lhe suprimisse as funções.” (Regime jurídico do Ministério Público, 5ª ed. , São Paulo, Saraiva, 2001, p. 278).

Apenas a própria Constituição da República pode, validamente, estabelecer ressalvas à garantia da inamovibilidade. E o faz ao admitir a transferência do membro do Ministério Público se, por motivo de interesse público, assim o decidir o órgão colegiado competente, integrante do próprio Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, assegurada a defesa ampla. A inamovibilidade e, em conseqüência, o promotor natural, são valores essenciais à dinâmica de atuação funcional do Ministério Público.

A inamovibilidade e o promotor natural devem ser observados sob qualquer ângulo que se apresente dúvida associada à sua aplicação.

Será pertinente sua observância tanto naqueles casos em que determinado órgão ministerial possa ver-se afastado de suas funções, quanto naqueles em que Membro do Ministério Público se recusa a atuar.

Pois bem.

Há casos em que a investigação encontra-se em andamento, e surgem novos fatos, que, configurando hipóteses concretas diversas, ensejam nova apuração, que vai além do objeto originário do inquérito civil.

Nessas circunstâncias, o princípio do promotor natural impede que o investigante instaure procedimento reservando a si – com exclusividade e a priori – a tarefa de conduzir as investigações nos casos não compreendidos nos limites da apuração inicial.

Exemplo desse quadro é aquele em que no curso de determinado inquérito são requisitados documentos, dos quais advém o conhecimento de fatos novos, que demandam apuração distinta e não são objeto da portaria de instauração.

Em tal circunstância, a requisição de informações por força da qual vieram à tona os novos fatos ilícitos não fixa o órgão ministerial requisitante como promotor natural para o caso. Diversamente, é razoável que, em tais circunstâncias, dada a necessidade de instauração de novo procedimento de investigação, ocorra livre distribuição das novas peças informativas, em obséquio, precisamente, à idéia a preservar com o princípio antes destacado.

Essa afirmação pode ser extraída do art. 26, § 5º da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei nº 8625/93), pelo qual “toda representação ou petição formulada ao Ministério Público será distribuída entre os membros da instituição que tenham atribuições para apreciá-la, observados os critérios fixados pelo Colégio de Procuradores”, regra esta reproduzida pelo art. 103, § 3º da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público.

Essa lógica deve ser observada tanto nos casos em que os órgãos de execução recebem representações encaminhadas por terceiros, como naqueles em que, agindo de ofício, adotam providências iniciais que precedem a instauração formal de inquérito civil; ou ainda, finalmente, quando determinam a extração de cópias de certo inquérito, dada a notícia de fatos novos que não eram objeto, ainda, de perquirição.

Pensamento diverso criaria risco de se tangenciar a regra que colima a impessoalidade na atuação do Ministério Público, legitimando a conclusão de que, em Promotorias com vários cargos com idênticas atribuições, aquele que se antecipasse aos demais, requisitando informações ou mesmo instaurando procedimento investigatório quanto a certo caso concreto, estaria sempre prevento.

Essa interpretação não seria legítima, na medida em que a prevenção é um mecanismo para solucionar dúvidas quanto à competência de órgão jurisdicional ou atribuições de órgãos ministeriais, mas não para burlar o esquema legal, previamente estabelecido, de repartição da atividade funcional dos órgãos envolvidos.

Não fosse assim, adite-se, a regra da prevenção – de extração infraconstitucional – seria utilizada para burlar a própria garantia da inamovibilidade (corretamente compreendida, abrangente das funções do cargo), que, em última análise, tem assento na Constituição da República.

O Ato Normativo nº 484-CPJ, de 5 de outubro de 2006, por sua vez, ao regular as investigações civis do Ministério Público, prevê no art. 7º, inciso X, como regra geral, a necessidade de que a atividade de investigação civil seja norteada pelos princípios gerais da atividade administrativa, observando ainda a necessidade de distribuição de feitos entre os órgãos ministeriais dotados de atribuição fixada, previamente, por critérios objetivos.

De outro lado, a Resolução nº 23, de 17 setembro de 2007, do C. Conselho Nacional do Ministério Público, ao fixar diretrizes para a investigação civil, estipulou, em seu art. 4º, parágrafo único, que fatos novos devem render ensejo a nova distribuição. Confira-se:

“(...)

Art. 4º. (...)

Parágrafo único. Se, no curso do inquérito civil, novos fatos indicarem necessidade de investigação de objeto diverso do que estiver sendo investigado, o membro do Ministério Público poderá aditar a portaria inicial ou determinar a extração de peças para instauração de outro inquérito civil, respeitadas as normas incidentes quanto à divisão de atribuições.

(...)”

A norma do parágrafo único, para atender ao princípio do promotor natural, deve ser compreendida teleológica e sistematicamente.

Se há um único órgão com atribuição na matéria (o que normalmente ocorre em Promotorias cumulativas) é viável o simples aditamento da portaria inaugural, para ampliar o objeto da investigação.

Entretanto, se há vários órgãos com atribuição, em tese, para a investigação dos novos fatos (o que se verifica nas Promotorias especializadas) deverá ser obedecida a regra da prévia distribuição.

Resta ainda dizer que nem mesmo a prevenção decorrente da conexão é critério absoluto, de sorte a abalar a necessidade de respeito à distribuição.

Como se sabe, a reunião de feitos em razão da prevenção, decorrente da conexão ou continência, tem como razão de ser a economia processual, com o aproveitamento da prova, a maior probabilidade de acerto na solução final, e para evitar-se conflitos lógicos entre decisões.

Guardadas as devidas adaptações, essas idéias são aplicáveis também às hipóteses de reunião de inquéritos civis por prevenção decorrente de conexão ou continência, que tem por objetivo otimizar a investigação e, num segundo momento, evitar soluções logicamente conflitantes nas eventuais ações civis públicas.

Essa razão é assente em doutrina.

Anote-se, por exemplo, o pensamento de Enrico Tullio Liebman, no sentido de que a conexão de ações leva, dentro do possível, à sua propositura conjunta, com “notevole economia di attività e di spese, particolarmente quando la loro decisione pressuppone l’esame di una o più questioni comuni alle varie azione, com l’ulteriore vantaggio di evitare in questo caso decisioni contradditorie” (Manuale di diritto processuale civile, 6ª ed., atual. a cura di Vittorio Colesanti, Elena Merlin, Edoardo F. Ricci, Milano, Giuffrè, 2002, p.180).

No mesmo diapasão o pensamento clássico externado por Giuseppe Chiovenda (Instituições de direito processual civil, 2º vol., 2ª ed., trad. J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.215 e ss), ressaltando, entretanto, a imposição de limites sistemáticos à união de feitos, como por exemplo, na hipótese em que um dos feitos tramita em segundo grau de jurisdição (op. cit., p. 224).

Pode-se mesmo afirmar, sem temor, que a conveniência é critério determinante para aferir se, em determinada hipótese, deverá ou não ocorrer a reunião de feitos conexos em razão da prevenção

É bem verdade que boa parte da doutrina reconhece na regra que prevê a reunião de feitos em razão da conexão ou continência uma imposição, e não uma faculdade (Nesse sentido, v.g., Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, vol. I, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 350, em comentários ao art. 105 do CPC; bem como Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código de processo civil comentado, 10ª ed., São Paulo, RT, 2008, p. 362, nota n. 7 ao art. 105 do CPC).

Mas, com o devido respeito, essa posição não pode ser aplicada em termos absolutos. A interpretação das regras processuais e procedimentais não pode perder de vista seus fins. Se a aplicação de uma norma determinada leva a resultado diverso daquele que inspirou sua edição, deve ser mitigada sua incidência.

Nesse sentido, pondera Patrícia Miranda Pizzol, ao comentar o art. 105 do CPC, afirmando que a não observância da regra determinante da reunião de feitos conexos não deve levar ao reconhecimento de qualquer vício processual, “se o tribunal verificar que, muito embora havendo conexão, a sentença proferida, por seu conteúdo, não tem o condão de causar lesão às partes, uma vez que não há o risco de julgados contraditórios, o pronunciamento não deverá ser anulado. Pode-se fundamentar o entendimento ora esposado no princípio da instrumentalidade das formas, bem como na súmula nº 235 do STJ” (Código de Processo civil interpretado, coord. Antônio Carlos Marcado, São Paulo, Atlas, 2004, p. 301).

Aliás, nesse sentido tem decidido o E. STJ (RESP 5.270/SP, 4ªT., rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 11.2.1992, DJU 16.3.1992, p. 3100).

Essa é, também, a essência do fundamento que ensejou a edição da súmula acima mencionada, no E. STJ:

“Súmula nº 235: A conexão não determina a reunião dos processos se um deles já foi julgado”.

A interpretação sistemática também legitima tal conclusão.

Sabe-se que um dos fundamentos do litisconsórcio é, em observação singela, a conexão entre as demandas cumuladas pelos litisconsortes. Em outras palavras, fossem elas propostas separadamente, seria, em tese, viável a reunião, desde que identificada a conexão.

Entre tanto, a lei abre ensejo para solução contrária, na hipótese do denominado “litisconsórcio multitudinário”, previsto no art. 46 parágrafo único do CPC. Como prevê referido dispositivo, “o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa”.

Defendendo o acerto do legislador ao prever a possibilidade de limitação ao litisconsórcio, pondera Cândido Rangel Dinamarco que “a conveniência do cúmulo termina, porém, onde começam os embaraços mais graves, que o número muito grande de litisconsortes pode ocasionar” (Litisconsórcio, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, 1994, p. 347).

Assim, é possível afirmar, por identidade de razões, que se a reunião de procedimentos investigatórios ou de ações conexas levará à inviabilidade do proveito prático desejado, dever-se-á evitar a junção de feitos.

Também a interpretação analógica e extensiva levaria à solução aqui propugnada, bastando consultar a solução contida, ao propósito, na legislação processual penal.

Conexão e continência são determinantes da reunião de feitos criminais, com ressalvas, contudo, que incluem a conveniência (cf. art. 80 e 82 do CPP).

Tais idéias, singelamente alinhavadas, são inteiramente aplicáveis à análise da pertinência da reunião, ou não, de investigações civis a respeito de casos que apresentem, em maior ou menor grau, conexão de qualquer sorte, ainda que probatória.

Desse modo, em princípio, conexão de ações, ou de objetos de investigação, devem render ensejo à fixação de atribuições do órgão ministerial responsável pela investigação através da prevenção. Mas, como visto, essa diretriz está sujeita a ressalvas, que residem essencialmente na eventual inconveniência dessa reunião.

Tais observações são aqui formuladas, na medida em que em outros precedentes, esta Procuradoria-Geral de Justiça decidiu pela livre distribuição de inquéritos civis instaurados por força de desmembramento, dado o surgimento de novos fatos, distintos do objeto da investigação originária. Assentou-se, naquelas ocasiões, a necessidade de respeito à regra da inamovibilidade, do promotor natural, e a ausência de conveniência na reunião de investigações, dada a multiplicidade de fatos e pessoas envolvidas, em que pese a conexão.

Confira-se, a título de exemplificação, o que ficou decidido no Pt. nº 117.698/08, e no Pt. nº 3.364/06.

Em síntese: (a) a regra da prevenção, como forma de definição de competência jurisdicional ou atribuição de órgãos ministeriais não é absoluta; (b) sua aplicação não pode descurar de valores mais relevantes, em especial a preservação da garantia da inamovibilidade, e a regra do promotor natural; (c) não se deve promover a reunião de feitos por prevenção quando isso significar, em prognóstico formulado com amparo em peculiaridades do caso concreto, risco de maiores dificuldades que vantagens tanto para a investigação, como para ulterior ação em juízo.

A hipótese do presente inquérito civil, entretanto, é diversa.

Duas ordens de fatos já eram objeto da investigação, que vinha sendo realizada por meio do IC nº 250/08: (a) apuração de irregularidades na utilização do patrimônio da SABESPREV para pagamento de “cursos questionáveis” a alguns funcionários; e (b) custeio de despesas pessoais do Presidente e Diretores da referida entidade, com cartões corporativos.

Esse fato fez com que o suscitado, DD. 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital ficasse prevento para a apuração das duas questões.

A determinação de desmembramento do IC nº 250/08, dando ensejo à instauração deste IC nº 623/09 destinado à investigação dos “gastos pessoais do Presidente e Diretores do SABESPREV com utilização de cartões corporativos”, era algo que podia realmente ser analisado, com certa margem de liberdade para decisão, por parte do suscitado, dada a relatividade da diretriz de reunião de feitos por força da conexão do objeto investigado.

Entretanto, como já havia conhecido dos fatos sob investigação, realizando diligências a esse propósito no IC nº 250/06, chega-se à conclusão de que o suscitado, DD. 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, efetivamente, ficou prevento para dar seguimento ao feito desmembrado, nos termos do art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93.

Daí a conclusão de que, na hipótese em exame, a atribuição para a investigação é do suscitado.

3)Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito positivo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 7º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se a ementa. Comunique-se.

Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 09 de novembro de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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